A crueldade na psicanálise e o pensamento do incondicional em Jacques Derrida
- Martha Bernardo
- 25 juin 2022
- 32 min de lecture
Resumo: o presente artigo busca analisar as implicações do pensamento da crueldade em Artaud e Freud para a psicanálise. Para isso, recorre ao filósofo Jacques Derrida, que as pensou, sobretudo, no campo da ética e da prática psicanalítica. A crueldade impõe ainda uma revisão do conceito de sujeito – sobre a qual nos deteremos, que já havia sido posta em marcha por Derrida desde 1967, em Freud e a cena da escritura. Em seguida, abordaremos o conceito de incondicionalidade formulado por Derrida, como um novo horizonte para a compreensão do sujeito e para a prática ético-política e social da psicanálise.
Palavras-chave: Derrida, psicanálise, sujeito, incondicional, Artaud. La cruauté en psychanalyse et la pensée de l'inconditionnel chez Jacques Derrida*
Résumé: cet article cherche à analyser les implications de la pensée de la cruauté chez Artaud et Freud pour la psychanalyse. Pour cela, ellerecourt au philosophe Jacques Derrida, qui les a pensé, avant tout, dans le champ de l’éthique et de la pratique psychanalytique. La cruauté exige encore une révision du concept de sujet – sur laquelle nous nous attarderons, ce qui avait déjà été mis à l’ouvrepar Derrida dès 1967, dans Freud et la scène de l’écriture. Par la suite, nous aborderons le concept d’inconditionnalité formulé par Derrida, comme un nouvel horizon pour la comprehénsion du sujet et pour la pratique éthico-politique et sociale de la psychanalise.
Mots-clés: Derrida, psychanalyse, sujet, inconditionnel, Artaud.
Mesmo que inumano signifique o outro do humano, seu antípoda ou polo negativo, seu contrário e seu antônimo, só os humanos podem fazer a experiência do inumano (os animais, os deuses, as máquinas, os espectros não são ditos inumanos em si – a não ser de uma perspectiva valorativa humana). Derrida emprega a palavra em vários contextos e parece distingui-la de a-humano e desumano, que surgem raramente em seus escritos. O a-humano (em A escritura e a diferença, 1967) parece designar um campo mais abrangente de pensamento, que ultrapassa as fronteiras do humano, onde Derrida inscreve seus conceitos, para além da antropologia, como o conceito de grafema (DERRIDA, 1967, p.19). Já o desumano, como ocorre em Políticas de Amizade (1994), é utilizado no sentido de ausência de humanos ou de humanidade (DERRIDA, 1994, p.154). Também em Psyché (1987), Derrida escreve sobre uma desumanização de Deus em Spinoza, que lhe retiraria toda subjetividade antropomórfica (DERRIDA, 2007, p.304). Desumano significaria, então, o esvaziamento de humanidade, a desantropomorfização. Não queremos, entretanto, emprestar uma estabilidade a essas significações mas, antes, mostrar que esses termos jogam na escritura de Derrida.
As ocorrências da palavra inumano não abundam, mas são mais frequentes. Ela está associada às atrocidades crescentes da guerra, à crueldade, à monstruosidade, à violência (DERRIDA, 2007, p.333-334; DERRIDA, 2009, p.14-19-73). Mas também à desmesura, à impossibilidade de aplicação de regras, como certas experiências de pensamento (nesse sentido, ela se aproxima da loucura e mesmo do desastre (DERRIDA, 1992, p.206)). Já em O animal que logo sou (2006), o inumano é sinônimo de a-humano, e designa a alteridade não-humana dos animais (DERRIDA, 2002, p.31). A partícula ou que liga inumano a a-humano (também conferir (DERRIDA, 2009, p.260)), nos faz refletir sobre o texto de 1967, indicando que certos conceitos (ou quase-conceitos) de Derrida também fazem parte do que ele designa por inumano, um para-além do antropocentrismo antropológico. Seja como experiência de pensamento, seja como abertura ao outro-animal, parece haver uma espécie de alerta da parte de Derrida para a experiência do inumano e do não-humano, como se esta fosse necessária não só ao pensamento, mas para uma ética da alteridade.
Não se trata, pois, de sublimar essas dimensões do inumano no humano, mas de atribuir-lhes uma outra significação. Pois esse inumano pode se dar como experiência do corpo próprio (lembremos do devir-animal de Deleuze), uma certa relação com a animalidade ou com o mundo vegetal (lembramos, por exemplo, a noção botânica de deiscência co-relacionada ao pensamento), pode estar ligado à sobrevivência, às religiões e práticas menores, à rituais e vivências, bem como à arte - aos processos criativos, à obra e ao desobramento. Essa experiência do inumano é traduzida com muita intensidade pela literatura.
Não se trata, no entanto, de afirmar que esse demasiado humano do inumano seja um instinto propriamente humano. A guerra, a crueldade, a monstruosidade, a violência são marcas da história da humanidade, se inscrevem, por assim dizer, no corpo humano, mas não são próprios do homem, elas se estendem para a vida e mesmo para o cosmos, desde que se instaure um ponto de vista humano. O movimento da desconstrução do humanismo em Derrida e da metafísica antropocêntrica que o acompanha visam demarcar o fantasma da essência ou da natureza humanas, assumindo deliberadamente uma perspectiva não-antropológica, o que significa também redefinir o que entendemos como o ético e o político.
Ao que tudo indica, a concepção freudiana de crueldade encontra-se circunscrita talvez ao caráter antropológico da psicanálise e à onto-teologia na qual ela se inscreve, embora Derrida deixe em suspenso a questão do não-antropológico na psicanálise – ao menos quando ele escreve Estados de alma da psicanálise (2000), conferência empreendida numa espécie de internacional psicanalítica, os Estados Gerais da psicanálise. Muito antes, em A escritura e a diferença, Derrida propõe uma outra compreensão da crueldade, apoiando-se, sobretudo, em Artaud, mas também em Nietzsche, num texto que se intitula O teatro da crueldade e o fechamento da representação. Vejamos como as proximidades e as distâncias em relação ao tema da crueldade contribuem para definir, mais ou menos, a orientação que Derrida sonha para a psicanálise – pensada não apenas como uma terapia individual, mas como base para uma epistemologia renovada que poderia contribuir para a consolidação de outra prática ético-política (DERRIDA, 1992, p.136), onde está implicada uma crítica ao antropocentrismo do humanismo onto-teológico.
A crueldade é um dos pivôs dessa problemática. Ela envolve justamente o questionamento de uma humanidade própria do homem em função do inconsciente, envolvendo uma crítica da ideia de sujeito autônomo ou de uma soberania do Eu (através da compreensão da psiquê como uma rede aberta e complexa de traços diferenciais) – o que põe em jogo a dimensão do inumano. Para Derrida, a crueldade em Freud comporta uma ambiguidade, já que esta é indissociável da soberania (DERRIDA, 2001, p.10-13), de um certo exercício de poder (como a crueldade exercida pelo Estado1) e de um sofrimento pelo poder. Ele explica que, em Freud, a significação de crueldade não é clara, embora ela esteja inscrita em uma lógica psicanalítica de pulsões destrutivas indissociáveis da pulsão de morte, estando relacionada ao prazer obtido na agressão e na destruição (DERRIDA, 2001, p.6). Esse prazer volta-se para o outro, mas também para si. Mas – acrescenta Derrida – a crueldade não é apenas a-histórica, ao contrário, descobrir suas mutações (técnicas, científicas, jurídicas, econômicas, éticas, políticas, militares, terroristas) – considerada como uma das tarefas revolucionárias da psicanálise (onde o encontro internacional evoca os estados gerais, acontecimento-chave para a Revolução Francesa) - confunde-se com a tarefa mesmo de induzir ou de fundar uma ética, um direito, uma política. Essa mutação cruel da crueldade, suas figuras históricas novas atualizam uma crueldade mais velha que o homem (DERRIDA, 2001, p.72), mais velha inclusive que o princípio de prazer (DERRIDA, 2001, p.35).
Essa última frase nos conduz ao pensamento de Niezstche e de Artaud, para além de Freud. Com efeito, como explica Artaud, o teatro da crueldade não é um teatro psicanalítico, fundado num limite humano: “Disse então crueldade [cita Derrida em A escritura e a diferrença] como teria dito “vida”” (DERRIDA, 1967, p.343). O teatro da crueldade não é uma representação centrada na palavra ou na sua interpretação, mas o irrepresentável mesmo da vida. No Teatro da Crueldade, a palavra (mais tarde as glossolalias) transforma-se em hieróglifo, produzindo uma multiplicação e não um fechamento do sentido. Ela atinge o corpo, agindo-o, não segundo um processo racional, mas segundo uma ordem afetiva, uma certa inteligência da/na carne – ela percorre os nervos, em vez de ser capturada por um saber que a antecede (um texto prévio, de onde toda a luta de Artaud contra o Dramaturgo-Demiurgo), aparecendo como um saber sem álibi. Ao fazê-lo, a palavra-imagem dilui o lugar do espectador passivo, transformando-o em ator/autor, em atleta afetivo, em atleta do coração, o que envolve também uma estranha aprendizagem, sobre si e sobre o outro (de que modo aplico a crueldade sobre mim? Até onde o outro é capaz de levar a crueldade e o que isso diz dele?). O Teatro da Crueldade é esse processo cirúrgico, terapêutico – como escreve Artaud em O teatro e o seu duplo (1939) – que visa acordar as forças vitais do homem, adormecido, doente, mole, acabrunhado, separado de Si mesmo. E ele o faz apesar desse rasgo na carne (que não é algo propriamente sangrento), tendo em vista chegar nesse núcleo de necessidade no coração de Si mesmo, impedido de ser por razões diversas (desde As correspondências com Jacques Rivière a questão de Artaud é a da expressão sempre inacabada de Si mesmo). Seria, assim, essa cruel necessidade, um destino ainda não escrito fora das minhas forças mais vitais, mas que é solicitado justamente por elas. Essa cruel necessidade é inumana, como a necessidade de um animal por alimento, ou de um planeta em torno de sua órbita, podendo também ser metafísica, como o jogo entre ser/não-ser, entre acaso/necessidade. Inumano do homem, a crueldade é inumana também para além do homem, e pertence à vida e ao cosmos. Haveria, pois, uma a-historicidade da crueldade (embora ela só possa ser nomeada com o advento da consciência humana), uma relação imanente desta à plasticidade do que é, que se atualizaria historicamente.
Por isso, para Nietzsche e Artaud, a crueldade não tem apenas o sentido de derramamento de sangue, de prazer em causar mal ou fazer sofrer (a si mesmo ou ao outro). Nietzsche2 falará de uma certa inocência da crueldade. Artaud defenderá, como bem nota Derrida, a crueldade (uma crueldade pura) como unidade da necessidade e do acaso (que instaura o jogo da repetição e da diferença impedindo o Um, o Belo, o Universal, o Bem, como experienciamos nos processos psíquicos). Já Freud escreve sobre a crueldade como um mal, uma tendência à destruição: “Não leva a nada querer abolir os pendores agressivos dos homens (…) [escreve ele numa citação retomada por Derrida]. Os bolcheviques também esperam poder fazer desaparecer a agressão humana garantindo a satisfação das necessidades materiais e instaurando, além disso, a igualdade entre aqueles que fazem parte da comunidade. Tenho comigo que isso é uma ilusão” (DERRIDA, 2001, p.75).
Derrida se interessa por essa historicidade antropológica da crueldade, mas parece situá-la nesse contexto mais amplo. O problema é que a crueldade é difícil de limitar e delimitar (em Freud, e para além de Freud): ela teria passado da sua significação latina como cruor, crudus, crudelitas, derramamento de sangue, crime de sangue, para uma crueldade psíquica, uma crueldade não sangrenta (como seria o caso, na constituição americana, da injeção letal para a pena de morte) ou à “inumanidade de uma guerra sem guerra” (DERRIDA, 1994, p.154). Pode-se falar de uma crueldade animal ou do vivente – como se verá na passagem que segue, pois a vida exige o sacrifício do outro para se alimentar, o que pode ser pensado como benefício, satisfação, gozo com o sofrimento (distanciando-se do sentido inorgânico de crueldade cósmica ou crueldade pura). Por enquanto, cabe ressaltar a especificidade da psicanálise para pensar essas mutações psíquicas da crueldade. Nesse sentido, ele escreve:
Se há alguma coisa de irredutível na vida do ser vivo, na alma, na psique (por que não limito meu propósito a esse ser vivo que se chama homem e, portanto, deixo em suspenso a imensa e temível questão, a meu ver ainda aberta, da animalidade em geral, e de saber se a psicanálise é ou não, de fora a fora, uma antropologia), e se essa coisa irredutível na vida do vivo é bem a possibilidade da crueldade (a pulsão, se preferirem, do mal pelo mal, de um sofrimento que jogaria o jogo do gozo de sofrer, de um fazer sofrer ou de um fazer-se sofrer, pelo prazer), então nenhum outro discurso – teológico, metafísico, genético, fisicista, cognitivista etc. - saberia abrir-se para tal hipótese. Eles seriam, todos, feitos para reduzi-la, excluí-la, privá-la de sentido. Se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise (DERRIDA, 2001, p.8).
Se a crueldade é intrínseca à vida, então nenhuma política pode erradicá-la, mas apenas domesticá-la, diferi-la, aprender a negociar, indiretamente (DERRIDA, 2001, p.75). Mas, em sentido contrário, a crueldade já é política. Não apenas por que transgride a existência – por vezes cruel – da lei, mas por que ela é também afirmação da lei, na medida em que a lei se impõe e exige de nós obediência ou sua reprodução. Assim, o Teatro da Crueldade não diz respeito apenas à vida biológica, mas à vida do homem em comunidade e às relações entre eles. A fronteira que separa, talvez, Artaud e Freud, é que o primeiro optará por uma travessia da crueldade e o segundo, por sua domesticação. Afirmação estranha, a princípio em Freud, que defende que o psicanalista não deve fazer uma avaliação ética das pulsões (DERRIDA, 2001, p.78). Nesse sentido, o título do encontro Estados Gerais da Psicanálise parece evocar uma certa memória da convocação dos estados gerais na Revolução Francesa, um quê de revolução, mas associada à teoria e à prática psicanalíticas. Junto a essa memória revolucionária, o espectro do Teatro da Crueldade vem assombrar o encontro, colocando em questão a própria origem da psicanálise. Eis por que o encontro dos Estados Gerais da Psicanálise evoca um primeiro teatro da crueldade, pois nele está em questão um parricídio, que envolve, sobretudo, o nome de seu pai fundador. É a essa ideia de origem, de arkhé, que o Teatro da Crueldade, em sua potência anárquica, produz uma “violência” iconoclasta. Assim, o Teatro da Crueldade – convocado pela memória das revoluções – introduz uma questão política na psicanálise, que diz respeito à própria forma de organização dessa comunidade, relacionando o teatro familiar – tema por excelência da psicanálise – ao teatro público, as representações sociais que a psicanálise atualiza por sua própria conta.
Não há Estados Gerais sem teatro. Não houve, até aqui, Estados Gerais sem isso ao qual, na psicanálise, o teatro privado da família se liga de maneira essencial, a saber, o teatro propriamente dito, aquele que requer um espaço público. Na insistente visão que se impõe a mim, estes Estados Gerais da Psicanálise pareceriam, portanto, uma cena inédita, ou melhor, a um primeiro teatro da crueldade (…). O que se intitula, o que se chama a si mesmo Estados Gerais da Psicanálise, eis o que se meteria em cena para submetê-lo à hipótese de uma mutação, uma certa crueldade. Qual? Aquela que se exerce em nome de uma soberania ou aquela que deve sofrer uma soberania? (DERRIDA, 2001, p.42)
De que mutação da crueldade se trata, então, nessa revolução – da crueldade como poder (eu posso), ou da crueldade como sofrimento em relação ao poder? Trata-se de investir ou desinvestir o poder? A resposta mais imediata de Derrida seria um desinvestimento da soberania, mas essa resposta deve ser complexificada. Não só por que uma outra soberania é possível, mas, sobretudo – e essa será a diferença que o separa de Nietzsche, Freud e Artaud – existe, para Derrida, um mais além da crueldade: o incondicional.
Haverá, quanto ao político, ao geopolítico, ao jurídico, à ética, consequências, ao menos lições a tirar da hipótese de uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso que se chama obscuramente crueldade, em suas formas arcaicas ou modernas? Para além dos princípios, haveria ainda, dando alguns passos a mais, um para além do além, um além da pulsão de morte e, portanto, da pulsão de crueldade? (DERRIDA, 2001, p.46)
A psicanálise traz consigo, como Derrida escreve em Mal de arquivo,uma série de marcas culturais ou religiosas (o judaísmo), físicas (a circuncisão) e morais (o falocentrismo) que implicam num estatuto ambíguo da psicanálise como “ciência judia”, formulação de Yerushalmi (DERRIDA, 1991, p.59). Ora, essa identidade religiosa parece ferir o suposto estatuto universal e neutro das ciências em geral. Isso se torna ainda mais patente através da herança mitológica – que foge do escopo da evidência científica – presente nas teorias da psicanálise. Não apenas a teoria das pulsões é devedora dos entrelaçamentos entre Eros e Tanatos, considerados princípios vitais, como a centralidade da figura do pai (que imanta a ideia do parricídio e da luta pelo poder nas mitologias, como apontamos acima) envolve a crença na ideia de um progresso da ciência e da razão à partir do advento do patriarcado (DERRIDA, 2001, p.64) que teria suplantado a percepção e a sensibilidade como atributos maternos (DERRIDA, 2001, p.65).
A questão da origem – do nome do Pai – teria assim a maior importância para um re-pensar da psicanálise, mesmo que esta mantenha esse estatuto ambíguo, entre o universal e o relativo. Assim, que dizer desse acontecimento, os Estados Gerais da Psicanálise (que guarda, portanto, uma certa memória das revoluções)? São eles revolucionários ou contrarrevolucionários? Rasurar ou ressuscitar o nome do Pai se situa em qual alternativa? Ora, é precisamente nessa ambiguidade que a crueldade se situa (DERRIDA, 2001, p.51).
Enorme memória sem fundo [das revoluções] em que as piores crueldades, a crueldade de um parregicídio que ainda resta por pensar, a crueldade do Terror, a crueldade da pena de morte em escala de massas, a crueldade de todas as torturas e de todas as condenações à morte dos amanhãs da Revolução de 17, a lista não concluída das crueldades as mais encarniçadas, shoah, genocídios, deportações em massa, etc., avizinha-se indissociavelmente - como se fossem dois processos inseparáveis - da invenção dos direitos do homem, a fundação dos fundamentos do direito internacional moderno em vias de transformação, do qual derivam a condenação dos crimes contra a humanidade (imprescritíveis na França desde 1964), a condenação do genocídio, bem como a promessa, desde o 4 de Brumário do ano IV, pela Convenção, de abolir a pena de morte na República Francesa (...) (DERRIDA, 2001, p.64)
Tudo se passa como se as conquistas no campo do direito, da política, da ética, fossem precedidas por atos de crueldade (por uma travessia da crueldade) e buscassem situar-se para além dela. Como dizia Artaud: “No mundo manifestado e metafisicamente falando, o mal é a lei permanente, e o que é o bem é um esforço e já uma crueldade acrescentada a outra” (ARTAUD, 1978, p.99). Isso quer dizer que é possível sobreviver a esse sobrevivente (o mal), elaborar formas mais igualitárias e democráticas – que surgem, concomitante, de um sofrimento e de um poder (essa é a ambiguidade da crueldade).
A crueldade não desaparece, ela escapa ao método, reincide compulsoriamente3. O método de Freud em relação à crueldade passa por uma extrema racionalização inibidora da pulsão. Nesse método, não se trata de combater a crueldade diretamente, mas indiretamente, pondo-a em contato com sua antagonista: o amor. A crueldade não possui, pois, fim, mas possui um contrário (DERRIDA, 2001, p.74), no que Freud se distancia de Nietzsche. Para pôr em marcha esse antagonista são pensados dois tipos de laços: o laço que une uma pessoa ao objeto amado – onde seria necessário fazer uma reflexão sobre o amor para além da religião e do sexo; e a formação de certas “mentes capazes” – pela educação – que amorteça a pulsão de crueldade nas “massas dependentes”, segundo uma lógica “emocional” senhor-escravo. O ideal da comunidade seria, então, para Freud, submeter a crueldade a uma ditadura da razão4 (DERRIDA, 2001, p.77).
O método indireto de combate à crueldade produziria, assim, não apenas um salto no político, mas no ético – “que nenhum saber psicanalítico enquanto tal saberia autorizar” (DERRIDA, 2001, p.78), embora o próprio Freud assinale que essa oposição entre Eros e Tanatos não deva ser analisada segundo uma lógica do bem e do mal. Mas essa postura do psicanalista, num primeiro momento, envolve, em seguida, um passo fora do saber psicanalítico, que o lança num território ético-político-jurídico. Essa neutralidade metodológica (ou epistemológica) o arremessa inevitavelmente no campo da decisão prática responsável. Nesse sentido, Derrida escreve:
O psicanalista, enquanto tal, não tem de avaliar ou desavaliar, desacreditar a crueldade ou a soberania sob um ponto de vista ético. Primeiro porque ele sabe que não há vida sem a concorrência das duas forças pulsionais antagonistas [Eros e Tanatos] (…). Para passar à decisão é preciso um salto que expulse fora do saber psicanalítico enquanto tal. Nesse hiato, direi eu, abre-se a chance ou o risco da decisão responsável, para além de todo saber concernente ao possível. (…) A tarefa é imensa e é tudo o que resta a fazer (…) - é organizar esse levar em conta da razão psicanalítica sem reduzir a heterogeneidade, o salto no indecisível para além do possível, objeto do saber e da economia psicanalíticas, incluído seu discurso mitológico sobre a pulsão de morte e além dos princípios. É nesse lugar difícil de cingir, no espaço da indecisibilidade - portanto, da decisão aberta pela descontinuidade do indireto - que a transformação por vir em ética, direito e política deveria levar em conta o saber psicanalítico (o que não quer dizer que se busque nisso um programa) e que, reciprocamente, a comunidade analítica deveria levar em conta a história, notadamente a história de um direito cujas mutações performativas recentes ou em curso não lhe interessam – salvo exceção – nem para com ela contribuem (DERRIDA, 2001, p.79).
Haveria, na suposta neutralidade da psicanálise freudiana, uma instância ético-política valorativa, que Derrida qualificará como racionalista: um certo vitalismo (a economia auto-protetora da vida orgânica) que tende a restringir as pulsões destrutivas. Esse direito à vida – argumento central contra a pena de morte e os crimes contra a humanidade, mas também integrante da declaração dos direitos do homem – não é, no entanto – nas cartas que Freud escreve para Einstein – um imperativo categórico do tipo kantiano, pois as guerras não podem ser condenadas a priori (a questão do direito à vida, lembra Derrida alhures, também serviu a um certo discurso ecológico neoconservador contra o direito ao aborto, reivindicado pelas feministas). Embora com essas precauções, Freud defende o pacifismo por uma certa intolerância constitucional à guerra e à crueldade. A proposta de Freud é de integrar essa aneconomia, esse incalculável das potências destrutivas numa economia, num cálculo, num método, numa economia do possível.
A tentativa de Derrida – o por vir que ele propõe para a psicanálise – passa, no entanto, por um para além da economia do possível, da condicionalidade econômica em direção a uma incondicionalidade, uma incondicionalidade sem soberania nem crueldade, uma afirmação originária que se situa mais além desses princípios (de atração e de destruição):
Essa afirmação originária do mais além do mais além se dá a partir de numerosas figuras do incondicional impossível. Estudei algumas delas em outra parte: a hospitalidade, o dom, o perdão – e, em primeiro lugar, a imprevisibilidade, o “talvez”, o “e se” do acontecimento, da chegada e a chegada do outro em geral, seu advento. Sua possibilidade se anuncia sempre como a experiência de um impossível não negativo” (DERRIDA, 2001, p.85).
Assim, a via que Derrida nomeia incondicionalidade envolve um re-pensar da psicanálise. Nesse pensamento da incondicionalidade reside, para Derrida, a possibilidade de uma nova racionalidade psicanalítica:
O que pode, talvez, converter-se em tarefa, manhã, para a psicanálise, para uma nova razão psicanalítica, para novas Luzes psicanalíticas, é uma revolução que, como todas as revoluções, cederá ao impossível, negociará o não negociável que seguirá sendo o não negociável, calculará com o incondicional como tal, com a incondicionalidade inflexível do incondicional (DERRIDA, 2001, p.86).
Para essa revolução da razão psicanalítica, Derrida pensa em três instâncias: 1) uma instância teórica, que consistiria em levar em conta a totalidade do saber, sobretudo, os saberes científicos, mas também as mutações tecno-científicas, a história do direito, da moral, da política, etc.; 2) uma instância performativa, lugar da responsabilidade, onde a psicanálise deve reinventar seu direito, suas instituições, suas normas, seus estatutos etc., conjugando o saber especificamente psicanalítico com as questões econômico-jurídico-políticas da época (embora sempre atentando para um hiato entre eles); 3) a instância do impossível, do incondicional, da chegada imprevisível e indeterminável do acontecimento além de todo poder ou de todo dever, as irrupções (do outro) que “podem e devem derrotar” as ordens do saber e do simbólico (para além da crueldade) (DERRIDA, 2001, p.89).
Essa tarefa da psicanálise encontra-se dificultada pela sua própria circunscrição ocidental. Mais ainda, sua extensão para países fora da Europa teria acompanhado os processos de colonização. Ainda assim, mesmo com o processo de globalização (ou de globolatinização) a psicanálise não teria conseguido penetrar em muitos territórios (em Psyché, Derrida cita a China, uma grande porção da África, o mundo não-judaico-cristão, mas também certos enclaves na América e na própria Europa). Diante desses espaços, que não são virgens, mas que exigem ser pensados (lembremos a questão do fora – aplicada, nesse caso, à psicanálise –, do etnocentrismo, do colonialismo humanista e da mitologia branca expostos em Margens da filosofia (1972)), um futuro “estruturado de outra forma” aparece como por vir para a psicanálise (DERRIDA, 2007, p.340). Esse futuro, envolve não apenas uma disseminação de seus métodos, mas também a contaminação pelo outro – e ainda a desconstrução da soberania da própria instituição psicanalítica a nível internacional (como a Associação internacional de psicanálise), bem como uma ultrapassagem da resistência da psicanálise a si própria (seu caráter autoimunitário). Derrida também lembra que essa implantação da psicanálise na Europa e nos Estados Unidos não produziu um respeito maior aos direitos humanos (DERRIDA, 2007, p.341) e que, na América Latina, ela co-existe abertamente (com ou sem confrontação) com práticas de tortura em larga escala e sob novas formas. Essas novas formas incluem, inclusive, a apropriação de técnicas psico-simbólicas – onde o psicanalista (e o saber que ele produz) se vê como parte dessas violações (DERRIDA, 2007, p.341).
Assim, toda essa reflexão sobre a psicanálise e seu futuro relaciona-se com o pensamento da crueldade, e suas consequências ético-políticas. Essa questão já foi, em nosso conhecimento, tratada fora da psicanálise (conferir na bibliografia os livros de Dumoulié e Deleuze). Nossa intenção foi mostrar sua pertinência para a reflexão sobre a psicanálise, alguns pontos da problemática que ela envolve em Derrida e a dificuldade que ela introduz para os chamados direitos humanos. É através dessa travessia nunca acabada da crueldade (e, portanto, do inumano) e de seu mais além, o pensamento da incondicionalidade (mais além da crueldade e da soberania incondicionais) que o humanitário pode participar de uma “humanização” dos homens (através de uma abertura do conceito histórico de homem – animal racional – ao seu fora, onde se converte também a perspectiva sobre o animal e o não-humano em geral). Em relação ao mundo animal abre-se a possibilidade de uma zooantropolítica, que Derrida explorará em A besta e o soberano e O animal que logo sou (2006). Essa zooantropolítica convida à criação de novas instituições que pensem a relação homem-animal de maneira responsável, estendendo a noção de comunidade também para os animais. Descentrando o eu através do outro, a incondicionalidade parece visar ainda a um mais além da vontade de potência como poder (Nietzsche) e do Si mesmo como liberdade absoluta (Artaud) – talvez ainda muito centrados no indivíduo –, assim como da lógica e da razão do mais forte (Hobbes, Bodin, Schimitt), em função de uma ética da alteridade, de uma permanência em Si, e de uma justiça incondicional, que permanece uma instância teórica, mas que fornece um solo e um suplemento à praxis. A ética da alteridade e a justiça incondicional implicam, a partir desse contato com o outro humano, com o inumano do humano ou o inumano para além do humano, a noção de responsabilidade, de decisões e ações responsáveis (o que impõe uma revisão do conceito de liberdade), visando uma minimização da crueldade nas relações: “Dito isso, talvez seja mais “digno” da humanidade manter uma certa inumanidade, o rigor de uma certa inumanidade” (DERRIDA, 1992, p.290), inumanidade essa que não é mais a das crueldades, mas já é a inumanidade do incondicional.
O INCONDICIONAL
Pois o que está em jogo é a exigência incondicional de um mundo possível.5
Dessa incondicionalidade jorram, sabemos, todos os impossíveis ou todos os incondicionais da Desconstrução derridiana – a saber, a hospitalidade (incondicional), a justiça, o dom, o perdão, a morte, o amor, a amizade, o testemunho, o outro, a invenção, a responsabilidade, a decisão, o sim etc. (BERNARDO, 2017; p.274) 6
Em Do direito à filosofia, Derrida escreve sobre o incondicional como uma afirmação não-negociável, intratável, intransigente. Essa afirmação incondicional pode se dar em termos políticos, como Derrida a aplica nesse livro, no contexto de algumas exigências no ensino de filosofia, o que vai de par com certa autonomia, com a invenção de modos de ação e de resistência, com a solidariedade. Como Derrida raramente explica o conceito de incondicionalidade, partamos de alguns exemplos de sua utilização. Em A escritura e a diferença, ele escreve que, para Kant, o fim em si é um princípio incondicionado da moralidade (DERRIDA, 1967, p.162). Ou, no caso de Montaigne, em Políticas da amizade: “a obediência incondicional, se Montaigne parece aprová-la em certos casos, deve, no entanto, permanecer guiada pela virtude e pela razão sem as quais não há amizade perfeita. A incondicionalidade deve implicar a virtude e a razão. Estas não são condições empíricas mas fazem parte da estrutura da amizade soberana e incondicional” 7(DERRIDA, 1994; p.210). O pensamento do incondicional é o que se eleva acima da experiência, ou seja, da finitude (Idem, p.162) – a incondicionalidade joga com o infinito. Haveria, portanto, o condicional – as bordas do contexto e do conceito que se fecham na prática efetiva -, e o incondicional, que inscreve uma força auto-desconstrutiva (DERRIDA, 1994; p.129), uma espécie de princípio ilimitado que limita o conceito ou o contexto.
A filosofia de Levinas seria uma filosofia da incondicionalidade. Mas como inscrever o registro do incondicional – por exemplo, de uma responsabilidade infinita, de uma hospitalidade incondicional – no registro da prática jurídica ou política8 determinadas? Como ele escreve em Fé e saber, a propósito do perdão incondicional: “Esses dois pólos, o incondicional e o condicional, são absolutamente heterogêneos e devem permanecer irredutíveis um ao outro. Eles são, no entanto, indissociáveis: se quisermos, e é necessário, que o perdão se torne efetivo, concreto, histórico, se quisermos que ele [o perdão] aconteça, que ele tenha lugar mudando as coisas, é necessário que sua pureza se engaje numa série de condições de toda sorte (psico-sociológicas, políticas, etc.). (DERRIDA, 2001; p.119).
Essa é a contribuição original de Levinas ao pensamento da incondicionalidade: uma ética infinita – o que Nancy chamará a eticidade da ética, como condição de toda ética –que seria anterior à não-ética, onde o registro do incondicional se encontra num plano pré-originário, um começo antes do começo (anterior, portanto, àquele da crueldade), da ordem do “sim” performativo,não causal. A incondicionalidade, pré-política, é condição de possibilidade para a política: a guerra pressupõe, enquanto anterioridade, a paz; e a convoca, como uma exigência prática. Por isso, o conceito de incondicional é indissociável de uma ideia de quase-transcendentalidade, não-histórica, não-empírica ou natural, não racional, independente da escolha,sendo antinômica (arqué/anárquica) e anacrônica9. A incondicionalidade é a condição a partir da qual se colocam todos os problemas de ordem prática, empírica, concreta, política. A incondição seria um meta-conceito que transcenderia todas as culturas, tradições, práticas, instituições e esse movimento de transcendência significa, uma vez posta a questão básica da alteridade do outro, uma precedência a todo saber: não se pode determinar, condicionar, o acontecimento, o que vem. Trazemos, em seguida, um trecho de Adeus a Emmanuel Levinas, onde Derrida opõe o conceito de paz em Levinas – anterior a toda guerra – à formulação de uma paz perpétua em Kant, como solução para a guerra presente, onde se justifica nosso comentário acima:
O fechamento da porta, a inospitalidade, a guerra, a alergia implicam já, como sua possibilidade, a hospitalidade oferecida ou recebida: uma declaração de paz original, mais precisamente, pré-originária. Está aí talvez um desses traços assustadores que, na lógica de uma relação muito emaranhada com a herança kantiana (…) distingue a paz ética e originária (originária mas não natual: melhor seria dizer pré-originária, anárquica), segundo Levinas, da “paz perpétua” e de uma hospitalidade universal, cosmopolítica, logo política e jurídica, aquela mesmo que Kant nos lembra que deve ser instituída para interromper um estado de natureza belicoso, para romper com uma natureza que só conhece a guerra atual e virtual. Instituída como a paz, a hospitalidade universal deve, segundo Kant, pôr fim à hostilidade natural. Para Levinas, ao contrário, a própria alergia, a recusa ou o esquecimento do rosto vêm inscrever sua negatividade segunda sobre um fundo de paz, sobre o fundo de uma hospitalidade que não pertence à ordem do político, ao menos não simplesmente ao espaço político.10(DERRIDA, 1997; p.92)
A incondicionalidade não tem contrário, ela faz parte da estrutura mesma da relação ética, que a requisita. Exemplo maior da incondicionalidade em Levinas, a hospitalidade é requisitada pela hostilidade: “Quer ela queira ou não, que se saiba ou não, a hostilidade testemunha ainda da hospitalidade: “separação radical”, “relação com o outro”, “intencionalidade, consciência de, atenção à palavra ou acolhimento do rosto””11(DERRIDA, 1997; p.94).
Esse princípio transcendental, colocado no plano da prática sem condições, é descrito pelas seguintes imagens: “o desnudamento da pele exposta”, a “vulnerabilidade de uma pele aberta, na ultragem e na ferida, além de tudo que se possa mostrar…” a “sensibilidade “aberta à carícia” mas também “aberta como uma cidade declarada aberta à aproximação do inimigo”. A hospitalidade incondicional seria essa vulnerabilidade – ao mesmo tempo passiva, exposta e assumida”12(DERRIDA, 1997; p.100). Mas essa vulnerabilidade, essa fraqueza não é um defeito, mas uma virtude, no sentido de permanecer indeterminada, arqui-universal, messiânica, valendo para todos, além dos humanos, não supondo nada antes de si.
Por isso, na prática, a incondicionalidade é sempre condicionada, seja pela ética, pela política, pelo jurídico, mas fornece um outro campo para suas formulações, que aquele aberto pela crueldade, na medida em que é indissociável de um pensamento do ético. A tentativa de Derrida é manter um equilíbrio entre a incondicionalidade pura, o indecidível, e sua conversão em condicionalidade, em dever, em política, sob o risco perene de um dos polos perverter o outro. Como foi convertido o incondicional em condicional, ao longo da história, seja na política, no campo jurídico ou ético? - é uma questão que o pensamento da incondicionalidade coloca (como fazer a passagem, considerando um eterno trânsito entre os dois polos?).
Uma outra concepção do sujeito, liberto do poder, da crueldade e da liberdade absoluta, tem, então, seu lugar. Desencadeia-se um outro princípio de formação de novas subjetividades, não mais centradas no ego, mas no outro, que se sintetiza na fórmula: “o sujeito, um hóspede” (lembrando que hôte pode designar, etimologicamente, aquele que acolhe e aquele que é acolhido)(DERRIDA, 1997; p.102).
A subordinação da liberdade significa uma sujeição do subjectum, certo, mas um assujeitamento que, no lugar de privá-lo, dá ao sujeito ao mesmo tempo seu nascimento e a liberdade assim ordenada. Trata-se bem de uma subjetivação, sem dúvida, mas não no sentido de uma interiorização, sobretudo, de um retorno do sujeito a si no movimento onde ele acolhe o Totalmente-Outro como Mais-Alto. Essa subordinação ordena e dá a subjetividade do sujeito. O acolhimento do Mais-Alto no acolhimento de outrem é a própria subjetividade.13(DERRIDA, 1997; p.101)
Ou, como escreve Bernardo:
É, justamente, este “eu” incondicionalmente obrigado diante de outrem na figura de um “eu devo” que se demarca do “eu sou”, do “cogito ergo sum” e, portanto do registro ontológico, de índole substancialista ou não, da “subjetividade do sujeito”. Por outras palavras: é este “eu devo” de princípio que desconstrói o “sujeito metafísico” – ou o lembra e o mostra em autodesconstrução. É ele que diz “adeus” à soberania do “cogito, ergo sum”. (BERNARDO, 2015; p.610)
Essa nova construção subjetiva passa por uma reversão da dialética senhor-escravo em Hegel. Citamos Levinas, citado por Derrida: “O Outro não é a negação do Mesmo como gostaria Hegel. O fato fundamental da cisão ontológica em Mesmo e em Outro, é uma relação não-alérgica do Mesmo com o Outro”14(DERRIDA, 1997; p.162). O incondicional é também um conceito que se quer dissociado de toda soberania (DERRIDA, 2001; p.133) como ele escreve em Fé e saber, e de todo poder (DERRIDA, 2001; p.18), de acordo com Universidade sem condições, instaurando uma contra-soberania (ou uma outra soberania) e um contra-poder.
No fundo, essa seria talvez minha hipótese (ela é extremamente difícil e quase im-provável, inacessível a uma prova): uma certa independência incondicional do pensamento, da desconstrução, da justiça, das Humanidades, da universidade etc., deveria ser dissociada de todo fantasma de soberania indivisível e de matriz soberana15. (DERRIDA, 2001; p.76)
Nas palavras de Fernanda Bernardo: “somente essa exigência inflexível do incondicional pode notadamente inspirar e dar ao pensamento e colocar em obra uma outra concepção da ideia de sujeito (do dito sujeito consciente, livre, decididor, responsável, etc.)”16 (BERNARDO, p.272). À pulsão de morte, ao princípio de prazer, Bernardo põe em marcha uma “pulsão de incondicionalidade”, uma força invencível de resistência, ao mesmo tempo, uma “força fraca”, uma “força vulnerável”, uma “força sem poder” (BERNARDO, 2017; p.270).
Com efeito, a autora distingue entre uma pulsão de poder (“a pulsão genealógica e soberanista (autoimunitária) – que (...) está na origem da pulsão de poder e se manifesta nas situações de colonização, de imperialismo, de fundamentalismo, de totalitarismo, de guerra, de alergia e de violência em geral para com outrem, que brotam da crença (porque, é de fato, uma crença) de uma identidade una e estável, própria, que procura imunizar-se e conjurar o medo da infecção”) e uma pulsão de incondicionalidade (“da vocação para o acolhimento de todo e qualquer outro: vocação que, em Políticas de Amizade, Derrida designa por predisposição para a “amância” [aimance] – uma espécie de véspera e de condição de possibilidade para a abertura incondicional ao outro e/ou ao porvir, para a amizade e para o amor” (BERNARDO, 2015; p.614).
Não queremos, no entanto, emprestar ao pensamento do incondicional um ar angelical. A incondicionalidade é a suspensão das determinações e, portanto, à determinação do mal como origem. Ela é o campo das reversibilidades, das probabilidades e das hipóteses. Ela se situa no fechamento da metafísica onto-teológica, o que significa que a incondicionalidade encontra-se ainda inscrita nele. É incondicional, por exemplo, a superioridade dos homens sobre os animais, no interior dessa metafísica, pois infinita (DERRIDA, 2002; p.44), assim como a soberania.
A incondicionalidade, esse conceito pós-ontológico, fornece, assim, um outro espaço de pensamento, entre o fechamento do humanismo metafísico onto-teológico, ainda deveras centrado na figura do sujeito, e o humanismo por vir que não abdica do sujeito em nome de um pós-sujeito ou do fim da subjetividade, mas inscreve-no num além do sujeito moderno, cartesiano, kantiano ou hegeliano. Esse sujeito também percorre outro terreno que aquele da vontade de potência nietzscheana ou do Si mesmo artaudiano, na medida em que se constitui na abertura ao outro, e não na afirmação de si.
Da mesma forma, diferente do sujeito freudiano, esse sujeito não está marcado pelo princípio do prazer, não segue a lógica das suas pulsões íntimas, mas encontra sua liberdade no fato de ser-com outro. Finalmente, encontramo-nos numa narrativa muito distante daquela de Hobbes, Bodin e, sobretudo, Schmitt, do outro como inimigo, uma vez que este goza da suspensão de julgamento e da indecibilidade própria da incondicionalidade e que a ética, mesmo não sendo pensada como um estado de natureza, é anterior a todo estado de guerra, a todo mal. Com relação à psicanálise, a incondicionalidade é postulada, afastando-se do terreno mitológico que perfaz a teoria das pulsões. Além disso, a incondicionalidade, enquanto um questionamento sem álibi, permitiria interrogar todas as determinações – etnocêntricas, falocêntricas, patriarcais, etc. - que ainda a percorrem, abrindo o terreno de investigações, por exemplo, às contribuições dos feminismos, dos movimentos descoloniais, etc.
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*Martha Bernardo é mestre em filosofia pela Universidade Paris 8 e, atualmente, doutoranda em filosofia, com um projeto sobre a desconstrução dos humanismos em Derrida, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1 Essa crueldade estatal foi explorada pelo próprio Freud. (FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: Obras completas (volume 12). São Paulo: Companhia das Letras, 2010).
2 Nietzsche: “E, assim como a criança e o artista, o fogo eternamente vivo joga, constrói e destrói, na inocência” (DERRIDA, 1967, p.367).
3“Mas podemos pensar o fechamento do que não tem fim. O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete indefinidamente. Quer dizer, seu espaço de jogo. O movimento é o movimento do mundo como jogo. “E no absoluto a vida é ela mesma um jogo” ([ARTAUD], IV, p. 282). Esse jogo é a crueldade como unidade da necessidade e do acaso. “O acaso que é o infinito e não deus” ([ARTAUD], Fragmentations). Esse jogo da vida é artista” (DERRIDA, 1967, p.367); “Mais on peut penser la clôture de ce qui n'a pasde fin. La clôture est la limite circulaire à l'intérieur de laquelle la répétition de la différence se répète indéfiniment. C'est-à-dire son espace de jeu. Ce mouvement est le mouvement du monde comme jeu. « Et pour l'absolu la vie elle-même est un jeu » (IV, p. 282). Ce jeu est la cruauté comme unité de la nécessité et du hasard. « C'est le hasard qui est l'infini et non dieu » (Fragmentations). Ce jeu de la vie est artiste”.
4 Imensa questão que Derrida não desenvolve em Estados de alma da psicanálise e que só podemos, por ora, apontar aqui: essa política da psicanálise seria, em Freud, uma espécie de aristocracia, pautada por um hiper-racionalismo e pelo tema da humanitas pensada, desde Cícero e Sêneca como educação, como humanização do homem? Um paralelo talvez interessante poderia ser feito com Aprender a viver, de Derrida.
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6 “De cette inconditionnalitélà jaillissent, on le sait, tous les impossibles ou tous les inconditionnels de la Déconstruction derridienne – à savoir l’hospitalité (inconditionnelle), la justice, le don, le pardon, la mort, l’amour, l’amitié, le témoignage, l’autre, l’invention, la responsabilité, la décision, le oui, etc.”
7“L'obéissance inconditionnelle, si Montaigne semble l'approuver dans certains cas, doit cependant rester guidée par la vertu et par la raison sans lesquelles il n'est pas d'amitié parfaite. L'inconditionnalité doit impliquer la vertu et la raison. Celles-ci ne sont pas des conditions empiriques mais font partie de la structure de l'amitié souveraine et inconditionnelle”
8“Nous le savons trop: jamais un État-nation en tant que tel, quel que soit son régime, fût-il démocratique, ou sa majorité, qu'elle soit de droite ou de gauche, ne s'ouvrira à une hospitalité inconditionnelle ou à un droit d'asile sans réserve. Il ne serait jamais « réaliste » de l'attendre ou de l'exiger d'un Étatnation comme tel. Celui-ci voudra toujours « maîtriser les flux d'immigration »” (DERRIDA, 1997; p.159).
9Bien que cette paix ne soit ni naturelle (car, pour des raisons non fortuites, il n'y a, me semble-t-il, ni concept de nature ni référence à un état de nature chez Lévinas, et cela est de grande conséquence: avant la nature, avant l'originarité de l'archie, et pour l'interrompre, il y a l'anachronie pré-originelle de l'an-archie), ni simplement institutionnelle ou juridico-politique, tout semble « commencer », de façon justement an-archique et anachronique, par l'accueil du visage de l'autre dans l'hospitalité” (DERRIDA, 1997; p.159)
10 “La fermeture de la porte, l'inhospitalité, la guerre, l'allergie impliquent déjà, comme leur possibilité, l'hospitalité offerte ou reçue: une déclaration de paix originelle, plus précisément pré-originaire. C'est peut-être là un de ces traits redoutables qui, dans la logique d'un rapport très enchevêtré avec l'héritage kantien, nous y viendrons, distingue la paix éthique et originaire (originaire mais non naturelle: il vaut mieux dire pré-originaire, anarchique), selon Lévinas, de la « paix perpétuelle » et d'une hospitalité universelle, cosmopolitique, donc politique et juridique, celle-là même dont Kant nous rappelle qu'elle doit être instituée pour interrompre un état de nature belliqueux, pour rompre avec une nature qui ne connaît que la guerre actuelle ou virtuelle. Instituée comme la paix, l'hospitalité universelle doit, selon Kant, mettre fin à l'hostilité naturelle. Pour Lévinas, au contraire, l'allergie elle-même, le refus ou l'oubli du visage viennent inscrire leur négativité seconde sur un fond de paix, sur le fond d'une hospitalité qui n'appartient pas à l'ordre du politique, du moins pas simplement à l'espace politique.”
11 “Qu'elle le veuille ou non, qu'on le sache ou non, l'hostilité témoigne encore de l'hospitalité: « séparation radicale », « rapport avec l'autre », « intentionalité, conscience-de, attention à la parole ou accueil du visage »”
12“la « dénudation de la peau exposée », la « vulnérabilité d'une peau offerte, dans l'outrage et la blessure, au-delà de tout ce qui peut se montrer... », la « sensibilité » « offerte à la caresse », mais aussi « ouverte comme une ville déclarée ouverte à l'approche de l'ennemi... ». L'hospitalité inconditionnelle serait cette vulnérabilité - à la fois passive, exposée et assumée”
13 “La subordination de la liberté signifie une sujétion du subjectum, certes, mais un assujettissement qui, au lieu de l'en priver, donne au sujet à la fois sa naissance et la liberté ainsi ordonnée. Il s'agit bien d'une subjectivation, sans doute, mais non pas au sens de l'intériorisation, plutôt d'une venue du sujet à soi dans le mouvement où il accueille le Tout-Autre comme Très-Haut. Cette subordination ordonne et donne la subjectivité du sujet. L'accueil du Très-haut dans l'accueil d'autrui, c'est la subjectivité même”.
14 “L'Autre n'est pas la négation du Même comme le voudrait Hegel. Le fait fondamental de la scission ontologique en Même et en Autre, est un rapport non-allergique du Même avec l'Autre”
15 “Au fond, ce serait peut-être cela mon hypothèse (elle est extrê-mement difficile et presque im-probable, inaccessible à une preuve) : une certaine indépendance inconditionnelle de la pensée, de la déconstruction, de la justice, des Humanités, de l'Université, etc., devrait être dissociée de tout fantasme de souveraineté indivisible et de maîtrise souveraine”.
16 “seule cette exigence inflexible de l’inconditionnel peut notamment inspirer et donner à penser et à mettre en œuvre une autre conception de l’idée de sujet (dudit sujet conscient, libre, décideur, responsable, etc.)”.
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