top of page
Rechercher

Crueldade, soberania e direitos humanos em Jacques Derrida

  • Martha Bernardo
  • 19 janv. 2022
  • 36 min de lecture

Resumo

Nosso intuito é o de entrecruzar duas correlações, fundadas num certo debate sobre o que é o homem (seu próprio, seu conceito) em Derrida: 1) a correlação entre o inumano (tratada aqui sob o signo da crueldade) e a reflexão que Derrida propõe sobre a psicanálise; 2) a questão dos direitos humanos (supra-nacional) e a soberania dos Estados-nação. A experiência do inumano deve ser integrada – para Derrida – pelo saber psicanalítico, onde reside a possibilidade de uma outra ética e uma outra política atuantes no campo social, problema que toca também a questão dos direitos humanos (como definir o humano e delimitar, portanto, suas violações). Esse pensamento ético-político exige a desconstrução do conceito de soberania e, como tentaremos mostrar, uma travessia do pensamento da crueldade. Nossa questão aqui será a de transpor uma aporia: como a crueldade e a soberania – que escapam à ética – podem ser pensadas de um ponto de vista ético, abrindo-se à perspectiva dos direitos humanos?

Palavras-chave: Derrida; Crueldade; Soberania; Direitos humanos; Inumano


Abstract

Our aim is to intersect two correlations, based on a certain debate about what man is (his own, his concept) in Derrida: 1) the correlation between the inhuman (treated here under the sign of cruelty) and the reflection that Derrida proposes about psychoanalysis; 2) the issue of human rights (supra-national) and the sovereignty of nation-states. The experience of the inhuman must be integrated – for Derrida – by psychoanalytic knowledge, where there is the possibility of another ethics and another politics acting in the social field, a problem that also touches on the issue of human rights (how to define the human and therefore delimit its violations). This ethical-political thought requires the deconstruction of the concept of sovereignty and, as we will try to show, a crossing of the thought of cruelty. Our question here will be to overcome an aporia: how cruelty and sovereignty – which escape ethics – can be thought of from an ethical point of view, opening up to the perspective of human rights?

Keywords: Derrida; Cruelty; Sovereignty; Human rights; Inhuman


1. Introdução: inumano, a-humano, desumano


Mesmo que inumano signifique o outro do humano, seu antípoda ou polo negativo, seu contrário e seu antônimo, só os humanos podem fazer a experiência do inumano (os animais, os deuses, as máquinas, os espectros não são ditos inumanos em si – a não ser de uma perspectiva valorativa humana). Derrida emprega a palavra em vários contextos e parece distingui-la de a-humano e desumano, que surgem raramente em seus escritos. O a-humano (em A escritura e a diferença, 1967) parece designar um campo mais abrangente de pensamento, que ultrapassa as fronteiras do humano, onde Derrida inscreve seus conceitos, para além da antropologia, como o conceito de grafema (DERRIDA, 1967, p.19). Já o desumano, como ocorre em Políticas de Amizade (1994), é utilizado no sentido de ausência de humanos ou de humanidade (DERRIDA, 1994, p.154). Também em Psyché (1987), Derrida escreve sobre uma desumanização de Deus em Spinoza, que lhe retiraria toda subjetividade antropomórfica (DERRIDA, 2007, p.304). Desumano significaria, então, o esvaziamento de humanidade, a desantropomorfização. Não queremos, entretanto, emprestar uma estabilidade a essas significações mas, antes, mostrar que esses termos jogam na escritura de Derrida.

As ocorrências da palavra inumano não abundam, mas são mais frequentes. Ela está associada às atrocidades crescentes da guerra, à crueldade, à monstruosidade, à violência (DERRIDA, 2007, p.333-334; DERRIDA, 2009, p.14-19-73). Mas também à desmesura, à impossibilidade de aplicação de regras, como certas experiências de pensamento (nesse sentido, ela se aproxima da loucura e mesmo do desastre (DERRIDA, 1992, p.206)). Já em O animal que logo sou (2006), o inumano é sinônimo de a-humano, e designa a alteridade não-humana dos animais (DERRIDA, 2002, p.31). A partícula ou que liga inumano a a-humano (também conferir (DERRIDA, 2009, p.260)), nos faz refletir sobre o texto de 1967, indicando que certos conceitos (ou quase-conceitos) de Derrida também fazem parte do que ele designa por inumano, um para-além do antropocentrismo antropológico. Seja como experiência de pensamento, seja como abertura ao outro-animal, parece haver uma espécie de convite da parte de Derrida para a experiência do inumano, como se esta fosse necessária não só ao pensamento, mas para uma ética da alteridade.

Não se trata, pois, de sublimar essas dimensões do inumano no humano, mas de atribuir-lhes uma outra significação. Pois esse inumano pode se dar como experiência do corpo próprio, uma certa relação com a animalidade ou com o mundo vegetal (lembramos, por exemplo, a noção botânica de deiscência co-relacionada ao pensamento), pode estar ligado à sobrevivência, às religiões e práticas menores, à rituais e vivências, bem como à arte - aos processos criativos, à obra e ao desobramento. Essa experiência do inumano é traduzida com muita intensidade pela literatura. O exemplo clássico é a Metamorfose de Kafka, mas poderíamos lembrar do pensamento esburacado (como diz Deleuze) de Mrs. Dalloway, ou ainda da idiotia de Míchkin, em sua solidariedade e compaixão descomunais, dos experimentos de Artaud em torno do corpo-sem-órgãos, dos personagens de Genet que Derrida explora em Glas (1974), do conto São Marcos de Guimarães Rosa ou Duzu-Querença de Conceição Evaristo, para citar alguns.

Não se trata, no entanto, de afirmar que esse demasiado humano do inumano seja um instinto propriamente humano. A guerra, a crueldade, a monstruosidade, a violência são marcas da história da humanidade, se inscrevem, por assim dizer, no corpo humano, mas não são próprios do homem, elas se estendem para a vida e mesmo para o cosmos. O movimento da desconstrução do humanismo em Derrida e da metafísica antropocêntrica que o acompanha visam demarcar o fantasma da essência ou da natureza humanas, assumindo deliberadamente uma perspectiva não-antropológica, o que significa também redefinir o que entendemos como o ético e o político.

Feita essa breve introdução, dividimos nosso artigo em três partes. A primeira tratará sobre a recente - e cada vez mais crescente - questão do humanitário e o conceito de humano que ela solicita, bem como sobre as dificuldades de sua aplicação. A segunda parte abordará a significação da noção de crueldade, apoiando-se, à partir de textos selecionados de Derrida, na sua leitura de Nietzsche, Artaud e Freud, bem como suas implicações para o pensamento sobre a psicanálise. A terceira parte examinará o problema da soberania em co-relação com a questão do humanitário e dos direitos humanos, mostrando como a sua desconstrução constitui um dos eixos principais para a re-elaboração de um pensamento ético e político, o que se faz através de uma crítica dos teóricos da soberania – Bodin, Hobbes e Schimitt. Como conclusão, apontaremos como ponto de chegada – na outra margem – o pensamento do incondicional, o mais além da crueldade e da soberania.

Quanto à metodologia, nosso intuito não é o de nos deter em uma obra de Derrida em particular, mas percorrer o que já foi mencionando como um labirinto de inscrições (Haddock-Lobo), investigando as marcas e os (re-)envios da escritura derridiana com o propósito de encaminhar os entrelaçamentos propostos acima. Mesmo considerando a suspensão, o double bind e o caráter aporético do/no pensamento de Derrida, optamos ainda por tentar encaminhar algumas questões de ordem prática, pensando as implicações da teoria nas interrogações que consideramos urgentes, mesmo se isso borra a ideia da suposta neutralidade do comentador. Ao contrário, pensamos que a transparência, no que se refere a Derrida (e a alguns autores que visitaremos aqui, como Nietzsche e Artaud), é impossível, o que não só impede uma mera repetição de ideias, como a torna indesejada. No mais, apoiando-nos no próprio Derrida, toda herança parece ser um misto de tentativa de tradução e, inevitavelmente, uma traição. Nossa via é a de uma aliança com Derrida, uma aliança – como uma certa amizade de pensamento – condensada por Fernando Bernardo na forma de um quiasma, que exige sempre – e esse é o nosso propósito – uma certa re-apropriação. Assim, se escolhemos falar sobre/com Derrida, fazemo-lo por acreditar que ele traz contribuições singulares para pensar as questões que, por ora, nos agitam, não para mimetizá-lo, seja ao modo da explicação pedagógica seja ao modo de uma escrita criptográfica mas, talvez, solicitando uma e outra.


2. Humanitarismo: direitos humanos ou ferramenta ideológica?


Em Políticas de amizade, Derrida introduz um questionamento sobre o humanitário, sob o pano de fundo da discussão com Schmitt sobre o outro como inimigo. O humanitarismo é descrito nas Convenções de Genebra, como garantia para a neutralidade de atores para tratar doentes e feridos num contexto de guerra, baseada em um sentimento de humanidade (a assistência humanitária), proibindo também a tortura e o tratamento desumano a prisioneiros de guerra, e preconizando a proteção dos civis. Derrida observa que muitas instituições humanitárias não podem ser ditas neutras pela relação que entretêm com os Estados ou com instituições privadas. Por que o número dessas organizações aumenta progressivamente? Em que medida o humanitário participa da humanização dos homens? Como definir, a partir do humanitário, o crime contra a humanidade? São problemas que ele coloca.

A questão se complica quando a intervenção humanitária envolve nações (reunidas, por exemplo, na ONU) e o direito de ingerência que estabelecia uma intervenção direta de outros estados em caso de constatação massiva de violações dos direitos humanos e de crime contra a humanidade (como na guerra de Biafra). A intervenção humanitária faria, assim, o uso da violência (mediada pela potência bélica dos Estados) para garantir o tratamento humanitário. Derrida questiona: qual seria, então, a definição de humanitário que, no século XX, vem se constituindo em direito – como o humanitário, nesse caso, pode ser sinônimo de violência? Pode ele servir a outros fins como, por exemplo, forjando inimigos inumanos para invadir territórios por motivações econômicas, militares, políticas, religiosas? A monstruosidade que porta, assim, a palavra humanitário, exige, para Derrida, uma revisão conceitual e prática (DERRIDA, 1994, p.303).

A definição do humanitário e dos crimes contra a humanidade têm como base os direitos humanos e o limite destes é justamente o próprio sistema imperialista no qual estão inscritos: “Nada (…) poderia ser menos humano do que esse imperialismo no qual, agindo sob o nome dos direitos humanos e da humanidade do homem, exclui-se o homem e a humanidade, e impõe-se para o homem tratamentos inumanos” (DERRIDA, 2009, p.73). Assim, a questão do humanitário (da assistência, da ingerência, dos direitos humanos e do crime contra a humanidade) esbarra na soberania nacional (e seus interesses). Tudo se passa como se, dependendo do contexto, fosse conveniente ou não apelar para esse conceito (DERRIDA, 2007, p.385), como no caso do apartheid na África do Sul, declarado crime contra a humanidade em 1973, e coniventemente tolerado pelos demais Estados, que nada fizeram pela sua abolição (mesmo simbolicamente), cenário que só se modificou por motivações econômicas (DERRIDA, 2007, p.382).

Portanto, o próprio conceito de humanidade pode funcionar como arma ideológica. Por que a definição do humano, da humanidade do homem, automaticamente estabelece limites, fronteiras, entre o humano e o não-humano. Fora do campo da humanidade, do monopólio no uso desse conceito, a este outro não-humano não é concedida nenhuma ética (ele se aproxima do conceito de “vida nua” de Agamben, explorado pelo próprio Derrida), mas um tratamento ou mesmo guerras inumanos, que converte também o agente da violência em inumano, em cruel e bestial. Por isso, para Derrida, humanidade não pode se tornar um conceito unicamente político (ele não pode ser dissociado de uma ética) e ele cita Proudhon: “quem invoca a humanidade trapaceia”, pois nenhuma sociedade lhe é correspondente (DERRIDA, 2009, p.72). A questão dos migrantes, dos exilados, dos expatriados etc no mundo contemporâneo traduz singularmente o problema do humanitário, uma vez que os direitos humanos esbarram necessariamente nas soberanias estatais e, particularmente, num conceito de cidadania fundado nas identidades nacionais. Como mostra Derrida em Cosmopolitas de todos os países, ainda um esforço! (1997), essa situação aporética do humanitário – percebida já por Hanna Arendt na década de 40 do século passado, exige uma nova formulação da ideia de cosmopolitismo, e uma definição do humano além das fronteiras nacionais, o que significa também a criação de novas instituições internacionais que pudessem fazer avançar esse processo.

Seria preciso, pois, repensar o conceito de homem, tarefa para a qual é convidada a psicanálise.


3. Da crueldade cósmica à crueldade humana: o inumano do homem e a psicanálise como discurso sobre a crueldade


Ao que tudo indica, a concepção freudiana de crueldade encontra-se circunscrita talvez ao caráter antropológico da psicanálise e à onto-teologia na qual ela se inscreve, embora Derrida deixe em suspenso a questão do não-antropológico na psicanálise – ao menos quando ele escreve Estados de alma da psicanálise (2000), conferência empreendida numa espécie de internacional psicanalítica, os Estados Gerais da psicanálise. Muito antes, em A escritura e a diferença, Derrida propõe uma outra compreensão da crueldade, apoiando-se, sobretudo, em Artaud, mas também em Nietzsche, num texto que se intitula O teatro da crueldade e o fechamento da representação. Vejamos como as proximidades e as distâncias em relação ao tema da crueldade contribuem para definir, mais ou menos, a orientação que Derrida sonha para a psicanálise – pensada não apenas como uma terapia individual, mas como base para uma epistemologia renovada que poderia contribuir para a consolidação de outra prática ético-política (DERRIDA, 1992, p.136).

A crueldade é um dos pivôs dessa problemática. Ela envolve justamente o questionamento de uma humanidade própria do homem em função do inconsciente, envolvendo uma crítica da ideia de sujeito autônomo ou de uma soberania do Eu (através da compreensão da psiquê como uma rede aberta e complexa de traços diferenciais) – o que põe em jogo a dimensão do inumano. Para Derrida, a crueldade, em Freud, comporta uma ambiguidade, já que esta é indissociável da soberania (DERRIDA, 2001, p.10-13), de um certo exercício de poder (como a crueldade exercida pelo Estado1) e de um sofrimento pelo poder. Ele explica que, em Freud, a significação de crueldade não é clara, embora ela esteja inscrita em uma lógica psicanalítica de pulsões destrutivas indissociáveis da pulsão de morte, estando relacionada ao prazer obtido na agressão e na destruição (DERRIDA, 2001, p.6). Esse prazer volta-se para o outro, mas também para si. Mas – ajunta Derrida – a crueldade não é apenas a-histórica (como pensam Nietzsche e Freud), ao contrário, descobrir suas mutações (técnicas, científicas, jurídicas, econômicas, éticas, políticas, militares, terroristas) – considerada como uma das tarefas revolucionárias da psicanálise (onde o encontro internacional evoca os estados gerais, acontecimento-chave para a Revolução Francesa) - confunde-se com a tarefa mesmo de induzir ou de fundar uma ética, um direito, uma política. Essa mutação cruel da crueldade, suas figuras históricas novas atualizam uma crueldade mais velha que o homem (DERRIDA, 2001, p.72), mais velha inclusive que o princípio de prazer (DERRIDA, 2001, p.35).

Essa última frase nos conduz ao pensamento de Niezstche e de Artaud, para além de Freud. Com efeito, como explica Artaud, o teatro da crueldade não é um teatro psicanalítico, fundado num limite humano: “Disse então crueldade [cita Derrida em A escritura e a diferrença] como teria dito “vida”” (DERRIDA, 1967, p.343). O teatro da crueldade não é uma representação centrada na palavra ou na sua interpretação (muito menos uma representação do homem, pois a vida varre a individualidade humana, nela o homem não é mais que um reflexo (DERRIDA, 1967, p.343)), mas o irrepresentável mesmo da vida. No Teatro da Crueldade, a palavra (mais tarde as glossolalias) transforma-se em hieróglifo, produzindo uma multiplicação e não um fechamento do sentido. Ela atinge o corpo, agindo-o, não segundo um processo racional, mas segundo uma ordem afetiva, uma certa inteligência da/na carne – ela percorre os nervos, ao invés de ser capturada por um saber que a antecede (um texto prévio, de onde toda a luta de Artaud contra o Dramaturgo-Demiurgo), aparecendo como um saber sem álibi. Ao fazê-lo, a palavra-imagem dilui o lugar do espectador passivo, transformando-o em ator/autor, em atleta afetivo, em atleta do coração, o que envolve também uma estranha aprendizagem, sobre si e sobre o outro. O Teatro da Crueldade é esse processo cirúrgico, terapêutico – como escreve Artaud em O teatro e o seu duplo (1939) – que visa acordar as forças vitais do homem, adormecido, doente, mole, acabrunhado, separado de Si mesmo. E ele o faz apesar desse rasgo na carne (que não é algo propriamente sangrento), tendo em vista chegar nesse núcleo de necessidade no coração de Si mesmo, impedido de ser por razões diversas (desde As correspondências com Jacques Rivière a questão de Artaud é a da expressão sempre inacabada desse Si mesmo). Seria, assim, essa cruel necessidade, um destino ainda não escrito fora das minhas forças mais vitais, mas que é solicitado justamente por elas. Essa cruel necessidade é inumana, como a necessidade de um animal por alimento, ou de um planeta em torno de sua órbita, podendo também ser metafísica, como o jogo entre ser/não-ser, entre acaso/necessidade. Inumano do homem, a crueldade é inumana também para além do homem, e pertence à vida e ao cosmos. Haveria, pois, uma a-historicidade da crueldade (embora ela só possa ser nomeada com o advento da consciência humana), uma relação imanente desta à plasticidade do que é, que se atualizaria historicamente.

Por isso, para Nietzsche e Artaud, a crueldade não tem apenas o sentido de derramamento de sangue, de prazer em causar mal ou fazer sofrer (a si mesmo ou ao outro). Nietzsche2 falará de uma certa inocência da crueldade. Artaud defenderá, como bem nota Derrida, a crueldade (uma crueldade pura) como unidade da necessidade e do acaso (que instaura o jogo da repetição e da diferença impedindo o Um, o Belo, o Universal, o Bem). Já Freud escreve sobre a crueldade como um mal, uma tendência à destruição: “Não leva a nada querer abolir os pendores agressivos dos homens (…) [escreve ele numa citação retomada por Derrida]. Os bolcheviques também esperam poder fazer desaparecer a agressão humana garantindo a satisfação das necessidades materiais e instaurando, além disso, a igualdade entre aqueles que fazem parte da comunidade. Tenho comigo que isso é uma ilusão” (DERRIDA, 2001, p.75).

Derrida se interessa por essa historicidade antropológica da crueldade, mas parece situá-la nesse contexto mais amplo. O problema é que a crueldade é difícil de limitar e delimitar (em Freud, e para além de Freud): ela teria passado da sua significação latina como cruor, crudus, crudelitas, derramamento de sangue, crime de sangue, para uma crueldade psíquica, uma crueldade não sangrenta (como seria o caso, na constituição americana, da injeção letal para a pena de morte) ou à “inumanidade de uma guerra sem guerra” (DERRIDA, 1994, p.154). Deixamos aqui em aberto em que sentido se pode falar de uma crueldade animal ou do vivente – como se verá na passagem que segue – no sentido corrente de crueldade como prazer no sofrimento (e não no sentido de crueldade cósmica ou crueldade pura). Como bem lembra Dumoullié, os animais não podem ser ditos cruéis – ao menos para a filosofia ocidental de Aristóteles à Schopenhauer – sendo este um atributo exclusivamente humano (ver também a interpretação de Robson Crusoé por Derrida (DERRIDA, 2009, p.140-p.163). Por enquanto, cabe ressaltar a especificidade da psicanálise para pensar essas mutações psíquicas da crueldade. Nesse sentido, ele escreve:


se há alguma coisa de irredutível na vida do ser vivo, na alma, na psique (por que não limito meu propósito a esse ser vivo que se chama homem e, portanto, deixo em suspenso a imensa e temível questão, a meu ver ainda aberta, da animalidade em geral, e de saber se a psicanálise é ou não, de fora a fora, uma antropologia), e se essa coisa irredutível na vida do vivo é bem a possibilidade da crueldade (a pulsão, se preferirem, do mal pelo mal, de um sofrimento que jogaria o jogo do gozo de sofrer de um fazer sofrer ou de um fazer-se sofrer, pelo prazer), então nenhum outro discurso – teológico, metafísico, genético, fisicista, cognitivista etc. - saberia abrir-se para tal hipótese. Eles seriam, todos, feitos para reduzi-la, excluí-la, privá-la de sentido. Se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica como assunto próprio, este é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise (DERRIDA, 2001, p.8).


Se a crueldade é intrínseca à vida, então nenhuma política pode erradicá-la, mas apenas domesticá-la, diferi-la, aprender a negociar, indiretamente (DERRIDA, 2001, p.75). Mas, em sentido contrário, a crueldade já é política. Não apenas por que transgride a existência – por vezes cruel – da lei, mas por que ela é também afirmação da lei, na medida em que a lei se impõe e exige de nós obediência. Assim, o Teatro da Crueldade não diz respeito apenas à vida biológica, mas à vida do homem em comunidade e às relações entre eles. Retomando Artaud, crueldade é a vida, em todas as suas dimensões. A fronteira que separa, talvez, Artaud e Freud, é que o primeiro optará por uma travessia da crueldade e o segundo, por sua domesticação. Afirmação estranha, a princípio em Freud, que defende que o psicanalista não deve fazer uma avaliação ética das pulsões (DERRIDA, 2001, p.78). Nesse sentido, o título do encontro “Estados Gerais da Psicanálise” parece evocar uma certa memória da convocação dos estados gerais na Revolução Francesa, um quê de revolução, mas associada à teoria e à prática psicanalíticas. Junto a essa memória revolucionária, o espectro do Teatro da Crueldade vem assombrar o encontro, colocando em questão a própria origem da psicanálise. Eis por que o encontro dos “Estados Gerais da Psicanálise” evoca um primeiro teatro da crueldade, pois nele está em questão um parricídio, que envolve, sobretudo, o nome de seu pai fundador. É a essa ideia de origem, de arkhé, que o Teatro da Crueldade, em sua potência anárquica, produz uma “violência” iconoclasta. Assim, o Teatro da Crueldade – convocado pela memória das revoluções – introduz uma questão política na psicanálise, que diz respeito à própria forma de organização dessa comunidade, relacionando o teatro familiar – tema por excelência da psicanálise – ao teatro público, as representações sociais que a psicanálise atualiza por sua própria conta.

Não há Estados Gerais sem teatro. Não houve, até aqui, Estados Gerais sem isso ao qual, na psicanálise, o teatro privado da família se liga de maneira essencial, a saber, o teatro propriamente dito, aquele que requer um espaço público. Na insistente visão que se impõe a mim, estes Estados Gerais da Psicanálise pareceriam, portanto, uma cena inédita, ou melhor, a um primeiro teatro da crueldade (…). O que se intitula, o que se chama a si mesmo Estados Gerais da Psicanálise, eis o que se meteria em cena para submetê-lo à hipótese de uma mutação, uma certa crueldade. Qual? Aquela que se exerce em nome de uma soberania ou aquela que deve sofrer uma soberania? (DERRIDA, 2001, p.42)


De que mutação da crueldade se trata, então, nessa revolução – da crueldade como poder (eu posso), ou da crueldade como sofrimento em relação ao poder? Trata-se de investir ou desinvestir o poder? A resposta mais imediata de Derrida seria um desinvestimento da soberania, mas essa resposta deve ser complexificada. Não só por que uma outra soberania é possível (um outro pensamento da soberania – por exemplo, no tocante às universidades, uma soberania incondicional para além da soberania estatal (DERRIDA, 2001, p.20; p.76)), mas, sobretudo – e essa será a diferença que o separa de Nietzsche, Freud e Artaud – existe, para Derrida, um mais além da crueldade: o incondicional. Mas não nos adiantemos, pois esse incondicional – não se deve a chegar ele diretamente – mas atravessando o pensamento da crueldade3.


Haverá, quanto ao político, ao geopolítico, ao jurídico, à ética, consequências, ao menos lições a tirar da hipótese de uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso que se chama obscuramente crueldade, em suas formas arcaicas ou modernas? Para além dos princípios, haveria ainda, dando alguns passos a mais, um para além do além, um além da pulsão de morte e, portanto, da pulsão de crueldade? (DERRIDA, 2001, p.46)


Esquecemos de desenvolver algo a mais sobre a crueldade, que apenas assinalamos acima: ela envolve sempre, segundo Artaud, um parricídio. Derrida escreve em Escritura e Diferença: “Um assassinato está sempre na origem da crueldade, da necessidade nomeada crueldade. E, de início, um parricídio. A origem do teatro, tal como devemos restaurá-la, é um main portée [grifo nosso: main portée é um movimento coreográfico onde o dançarino sustenta sua parceira com o peso de seus braços ou sobre uma parte do seu corpo] contra o detentor abusivo do logos, contra o pai, contra o Deus de uma cena submissa ao poder da palavra e do texto” (DERRIDA, 1967, p.350). Além do antropocentrismo, essa seria uma diferença que separa o Teatro da Crueldade (com a repetição iconoclasta da morte de Deus – nunca suficientemente morto – o grande espectro usurpador da existência de Artaud) da onto-teologia da psicanálise: o nome do Pai. Mas é também nesse instante que os Estados Gerais da Psicanálise podem se converter em um acontecimento dúbio: trata-se de decapitar ou ressuscitar4 o Rei (DERRIDA, 2001, p.51), Freud – questão edipiana do parricídio (mas também teogonia cruel do parricídio entre os gregos – Urano, Kronos, Zeus, seus filhos – indissociável da luta pela soberania e da instauração da democracia fraternal (com todos os perigos da fraternocracia (DERRIDA, 2005, p.34-p.69) – ou religioso-monárquica do Cristo?

Essa questão foi enfrentada por Derrida também em Mal de arquivo – uma impressão freudiana (1995). O nome do Pai da psicanálise traz consigo uma série de marcas culturais ou religiosas (o judaísmo), físicas (a circuncisão) e morais (a centralidade do falo, o falocentrismo) que implicam num estatuto ambíguo da psicanálise como “ciência judia”, formulação de Yerushalmi (DERRIDA, 1991, p.59). Ora, essa identidade religiosa parece ferir o suposto estatuto universal e neutro das ciências em geral. A psicanálise move-se nesse elemento indecidível do geral e do particular, do objetivo e do subjetivo. Isso torna-se ainda mais patente através da herança mitológica – que foge do escopo da evidência científica – presente nas teorias da psicanálise. Não apenas a teoria das pulsões é devedora dos entrelaçamentos entre Eros e Tanatos, considerados princípios vitais, como a centralidade da figura do pai (que imanta a ideia do parricidio e da luta pelo poder nas mitologias, como apontamos acima) envolve a crença na ideia de um progresso da ciência e da razão à partir do advento do patriarcado (DERRIDA, 2001, p.64) que teria suplantado a percepção e a sensibilidade como atributos maternos (DERRIDA, 2001, p.65).

A questão da origem – do nome do Pai – teria assim a maior importância para um re-pensar da psicanálise, mesmo que esta mantenha esse estatuto ambíguo, entre o universal e o relativo. Assim, que dizer desse acontecimento, os Estados Gerais da Psicanálise (que guarda, portanto, uma certa memória das revoluções)? São eles revolucionários ou contra-revolucionários? Rasurar ou ressuscitar o nome do Pai se situa em qual alternativa? Ora, é precisamente nessa ambiguidade que a crueldade se situa (DERRIDA, 2001, p.51).

Enorme memória sem fundo [das revoluções] em que as piores crueldades, a crueldade de um parregicídio que ainda resta por pensar, a crueldade do Terror, a crueldade da pena de morte em escala de massas, a crueldade de todas as torturas e de todas as condenações à morte dos amanhãs da Revolução de 17, a lista não concluída das crueldades as mais encarniçadas, shoah, genocídios, deportações em massa, etc., avizinha-se indissociavelmente - como se fossem dois processos fossem inseparáveis - da invenção dos direitos do homem, a fundação dos fundamentos do direito internacional moderno em vias de transformação, do qual derivam a condenação dos crimes contra a humanidade (imprescritíveis na França desde 1964), a condenação do genocídio, bem como a promessa, desde o 4 de Brumário do ano IV, pela Convenção, de abolir a pena de morte na República Francesa (...) (DERRIDA, 2001, p.64)


Tudo se passa como se as conquistas no campo do direito, da política, da ética, fossem precedidas por atos de crueldade (por uma travessia da crueldade) e buscassem situar-se para além dela. Como dizia Artaud: “No mundo manifestado e metafisicamente falando, o mal é a lei permanente, e o que é o bem é um esforço e já uma crueldade acrescentada a outra” (ARTAUD, 1978, p.99). Isso quer dizer que é possível sobreviver a esse sobrevivente (o mal), elaborar formas mais igualitárias e democráticas – que surgem, concomitante, de um sofrimento e de um poder (essa é a ambiguidade da crueldade).

A crueldade não desaparece, ela escapa ao método, reincide compulsoriamente5. O método de Freud em relação à crueldade passa por uma extrema racionalização inibidora da pulsão. Nesse método, não se trata de combater a crueldade diretamente, mas indiretamente, pondo-a em contato com sua antagonista: o amor. A crueldade não possui, pois, fim, mas possui um contrário (DERRIDA, 2001, p.74), no que Freud se distancia de Nietzsche. Para pôr em marcha esse antagonista são pensados dois tipos de laços: o laço que une uma pessoa ao objeto amado – onde seria necessário fazer uma reflexão sobre o amor para além da religião e do sexo; e a formação de certas “mentes capazes” – pela educação – que amorteça a pulsão de crueldade nas “massas dependentes”, segundo uma lógica “emocional” senhor-escravo. O ideal da comunidade seria, então, para Freud, submeter a crueldade a uma ditadura da razão6 (DERRIDA, 2001, p.77).

O método indireto de combate à crueldade produziria, assim, não apenas um salto no político, mas no ético – “que nenhum saber psicanalítico enquanto tal saberia autorizar” (DERRIDA, 2001, p.78), embora o próprio Freud assinale que essa oposição entre Eros e Tanatos não deva ser analisada segundo uma lógica do bem e do mal. Mas essa postura do psicanalista, num primeiro momento, envolve, em seguida, um passo fora do saber psicanalítico, que o lança num território ético-político-jurídico. Essa neutralidade metodológica (ou epistemológica) o arremessa inevitavelmente no campo da decisão prática responsável. Nesse sentido, Derrida escreve:


O psicanalista, enquanto tal, não tem de avaliar ou desavaliar, desacreditar a crueldade ou a soberania sob um ponto de vista ético. Primeiro porque ele sabe que não há vida sem a concorrência das duas forças pulsionais antagonistas [Eros e Tanatos] (…). Para passar à decisão é preciso um salto que expulse fora do saber psicanalítico enquanto tal. Nesse hiato, direi eu, abre-se a chance ou o risco da decisão responsável, para além de todo saber concernente ao possível. (…) A tarefa é imensa e é tudo o que resta a fazer (…) - é organizar esse levar em conta da razão psicanalítica sem reduzir a heterogeneidade, o salto no indecisível para além do possível, objeto do saber e da economia psicanalíticas, incluído seu discurso mitológico sobre a pulsão de morte e além dos princípios. É nesse lugar difícil de cingir, no espaço da indecisibilidade - portanto, da decisão aberta pela descontinuidade do indireto - que a transformação por vir em ética, direito e política deveria levar em conta o saber psicanalítico (o que não quer dizer que se busque nisso um programa) e que, reciprocamente, a comunidade analítica deveria levar em conta a história, notadamente a história de um direito cujas mutações performativas recentes ou em curso não lhe interessam – salvo exceção – nem para com ela contribuem (DERRIDA, 2001, p.79).


Haveria, na suposta neutralidade da psicanálise freudiana, uma instância ético-política valorativa, que Derrida qualificará como racionalista: um certo vitalismo (a economia auto-protetora da vida orgânica) que tende a restringir as pulsões destrutivas. Esse direito à vida – argumento central contra a pena de morte e os crimes contra a humanidade, mas também integrante da declaração dos direitos do homem – não é, no entanto – nas cartas que Freud escreve para Einstein – um imperativo categórico do tipo kantiano, pois as guerras não podem ser condenadas a priori (a questão do direito à vida, lembra Derrida alhures, também serviu a um certo discurso ecológico neoconservador contra o direito ao aborto, reivindicado pelas feministas). Embora com essas precauções, Freud defende o pacifismo por uma certa intolerância constitucional à guerra e à crueldade (por enquanto, marcaremos apenas que Derrida questionará o conceito biológico, idiossincrático e mitológico de vida em Freud através do quase-conceito de survie (DERRIDA, 2001, p.81), que não poderemos desenvolver aqui). A proposta de Freud é de integrar essa aneconomia, esse incalculável das potências destrutivas numa economia, num cálculo, num método, numa economia do possível.

A tentativa de Derrida – o por vir que ele propõe para a psicanálise – passa, no entanto, por um para além da economia do possível, da condicionalidade econômica em direção a uma incondicionalidade, uma incondicionalidade sem soberania nem crueldade, uma afirmação originária que se situa mais além desses princípios (de atração e de destruição):


Essa afirmação originária do mais além do mais além se dá a partir de numerosas figuras do incondicional impossível. Estudei algumas delas em outra parte: a hospitalidade, o dom, o perdão – e, em primeiro lugar,a imprevisibilidade, o “talvez”, o “e se” do acontecimento, da chegada e a chegada do outro em geral, seu advento. Sua possibilidade se anuncia sempre como a experiência de um im-possível não negativo” (DERRIDA, 2001, p.85).


Assim, a investigação – que perseguiremos num artigo subsequente – envolverá esse “para-além dos princípios” – lembrando que Khora não é origem ou fundamento (no sentido da tradição) senão sob a forma do paradoxo – que Derrida nomeia incondicionalidade e que envolve um re-pensar da psicanálise. Nesse pensamento da incondicionalidade reside, para Derrida, a possibilidade de uma nova racionalidade psicanalítica:


O que pode, talvez, converter-se em tarefa, manhã, para a psicanálise, para uma nova razão psicanalítica, para novas Luzes psicanalíticas, é uma revolução que, como todas as revoluções, cederá ao impossível, negociará o não negociável que seguirá sendo o não negociável, calculará com o incondicional como tal, com a incondicionalidade inflexível do incondicional” (DERRIDA, 2001, p.86).


Não compreendemos, entretanto, a incondicionalidade como um puro amor desinteressado do analista, um amor místico, como sugere Major, mas na possibilidade de transformação do setting analítico num equivalente do teatro da crueldade, como propõe Binkowski, como abertura incondicional ao outro que desloca as figuras hierárquicas do analista e do analisando numa experiência acontecimal comum (sem álibi).

Para essa revolução da razão psicanalítica, Derrida pensa em três instâncias: 1) uma instância teórica, que consistiria em levar em conta a totalidade do saber, sobretudo, os saberes científicos, mas também as mutações tecno-científicas, a história do direito, da moral, da política, etc.; 2) uma instância performativa, lugar da responsabilidade, onde a psicanálise deve reinventar seu direito, suas instituições, suas normas, seus estatutos etc., conjugando o saber especificamente psicanalítico com as questões econômico-jurídico-políticas da época (embora sempre atentando para um hiato entre eles); 3) a instância do impossível, do incondicional, da chegada imprevisível e indeterminável do acontecimento além de todo poder ou de todo dever, as irrupções (do outro) que “podem e devem derrotar” as ordens do saber e do simbólico (para além da crueldade) (DERRIDA, 2001, p.89).

Essa tarefa da psicanálise encontra-se dificultada pela sua própria circunscrição ocidental. Mais ainda, sua extensão para países fora da Europa teria acompanhado os processos de colonização. Ainda assim, mesmo com o processo de globalização (ou de globolatinização) a psicanálise não teria conseguido penetrar em muitos territórios (em Psyché, Derrida cita a China, uma grande porção da África, o mundo não-judaico-cristão, mas também certos enclaves na América e na própria Europa). Diante desses espaços, que não são virgens, mas que exigem ser pensados (lembremos a questão do fora – aplicada, nesse caso, à psicanálise –, do etnocentrismo, do colonialismo humanista e da mitologia branca expostos em Margens da filosofia (1972)), um futuro “estruturado de outra forma” aparece como por vir para a psicanálise (DERRIDA, 2007, p.340). Esse futuro, envolve não apenas uma disseminação de seus métodos, mas também a contaminação pelo outro – e ainda a desconstrução da soberania da própria instituição psicanalítica a nível internacional (como a Associação internacional de psicanálise), bem como uma ultrapassagem da resistência da psicanálise a si própria (seu caráter autoimunitário). Derrida também lembra que essa implantação da psicanálise na Europa e nos Estados Unidos não produziu um respeito maior aos direitos humanos (DERRIDA, 2007, p.341) e que, na América Latina, ela co-existe abertamente (com ou sem confrontação) com práticas de tortura em larga escala e sob novas formas. Essas novas formas incluem, inclusive, a apropriação de técnicas psico-simbólicas – onde o psicanalista (e o saber que ele produz) se vê como parte dessas violações (DERRIDA, 2007, p.341).

Assim, toda essa reflexão sobre a psicanálise e seu futuro relaciona-se com o pensamento da crueldade, e suas consequências ético-políticas. Essa questão já foi, em nosso conhecimento, tratada fora da psicanálise (conferir na bibliografia os livros de Dumoulié e Deleuze). Nossa intenção foi mostrar sua pertinência para a reflexão sobre a psicanálise e alguns pontos da problemática que ela envolve em Derrida, questão em relação a qual só podemos propor uma breve introdução, enviesada pela controvérsia em torno da crueldade – o inumano do homem – e a dificuldade que ela introduz para os chamados direitos humanos.


4. Soberania x intervenção humanitária ou da reinvenção de um novo pensamento da soberania


Por suas claras contradições, o direito de ingerência foi suspenso nos anos 2000. Mas como a comunidade internacional poderia se posicionar em caso de violações graves dos direitos humanos, genocídio, tortura em massa? O que dizer da não-intervenção nesses casos e, de modo contrário, o que é uma boa intervenção (seus modos, seus limites, por quem deve ser feita)?

Essas questões envolvem o conceito de soberania, tratado por Derrida em diversos momentos de sua obra, mas que abordaremos aqui através de uma leitura inicial de A besta e o soberano (2001/2002). Assim como a crueldade, a soberania é um conceito ambíguo, pois envolve uma certa monstruosidade, bestialidade, animalidade – o Leviathan de Hobbes – e também a ideia de liberdade, de invenção, de artifício e de cultura – que seriam próprios do homem na perspectiva histórica antropo-teológica, o que inclui a ideia de soberania concebida a partir da semelhança entre homem e Deus, e, portanto, seu lado divino (Bodin, por exemplo) (DERRIDA, 2009, p.14). Nosso objetivo, no entanto, não será aprofundar, por ora, essa analogia entre a besta e o soberano (este último envolvendo também a questão do falocentrismo, da ereção do poder), suas aproximações e distanciamentos, mas recorrer a passagens onde essa questão mais prática é abordada.

Um dos problemas que Derrida enfrentará nos seus seminários é, justamente, a dimensão teológica da soberania, onde o divino confunde-se estranhamente com o bestial. Essa junção sui generis ocorreria, principalmente, em Schmitt, na medida em que ele concebe a soberania como um poder de suspender a lei. Esse poder seria indivisível, sagrado e, portanto, pertence a cada Estado-nação. Esse poder, continua Derrida, colocaria o soberano (seja o rei, o presidente ou uma nação) acima do direito e do não-direito, e conduziria a soberania humana para além do humano, em direção a uma onipotência divina, que converte o soberano na “mais brutal besta que não respeita nada” (DERRIDA, 2009, p.16). Contra Schmitt, Derrida recorre a Hobbes (mas também a Bodin): se há uma dimensão artificial da soberania, se ela é artefato humano não natural, uma prótese, então a soberania é histórica e desconstrutível, sujeita a infinitas transformações, ela é precária, mortal, perfectível (DERRIDA, 2009, p. 27).

Ora, é essa concepção moderna de soberania (sobretudo em Schmitt) que vem sendo colocada em questão desde o final do século XIX, mas com maior intensidade na segunda metade do século XX e início do século XXI, o que explica o aumento progressivo das ações e organizações humanitárias. Essa revisão se dá em nome não de uma não-soberania, mas de um outro pensamento da soberania: a referência à universalidade dos direitos humanos, a evocação dos crimes contra a humanidade ou genocídio (para apelar ao direito internacional e ao tribunal penal internacional), as ações humanitárias (tendo à frente ONGs), a militância pela abolição universal da pena de morte mostram esse questionamento da soberania do Estado-nação, em nome dos humanos, do direito humano, do próprio do homem. Esse próprio do homem, escreve Derrida, é o que precisa ser pensado, pois, por enquanto, ele é “meramente prometido por um pensamento que ainda não pensa o que pensa que pensa” (DERRIDA, 2009, p.70). Por que essa promessa ainda está em estágio embrionário – por essa indeterminação do “próprio” associado ao homem ou pela impossibilidade de determiná-lo – Derrida se diz cauteloso em afirmar que essa outra soberania que se desenha no mundo contemporâneo, é uma “soberania do homem”7 além da soberania do Estado-nação (DERRIDA, 2009, p.70).

É preciso levar em conta, no entanto, a crítica de Schmitt que evoca a frase de Proudhon que citamos acima, embora os pontos de partida e as consequências dessas críticas sejam bastante diferentes. Para Schmitt, nos seus escritos dos anos 30 e, portanto, antes da ideia de globalização, no contexto do direito internacional, das Sociedades das Nações e outras iniciativas, o conceito de humanidade é, na verdade, uma despolitização, uma neutralização hipócrita de uma política ainda mais perversa, pois camuflada: um ardil de guerra, uma estratégia na luta pela hegemonia a serviço da soberania de um determinado Estado-nação, que faz passar por interesse mundial seus próprios interesses particulares (ou de um grupo). Essa guerra que não diz seu nome – que não apresenta seu inimigo, sob o nome de uma fraternidade humana que confunde, pois, amigos e inimigos – torna o conceito de humanidade perigoso na política (Schmitt tentará mostrar, aponta Derrida que, de fato, toda vez que esse conceito é usado na ou para a guerra, é como mentira retórica, disfarce ideológico (DERRIDA, 2009, p.71)).

Para Schmitt a política pressupõe o inimigo, a possibilidade da guerra (ele tem, como Hobbes, uma perspectiva pessimista do homem – o homem é mal e a política deve protegê-lo dele mesmo), e – como nota Derrida – esse papel da política, que pressupõe o medo, deve ser dissociado da ética. Por isso, para Schmitt o discurso humanitário – é temível e terrível – pois coloca em questão a soberania do Estado, que deve garantir o direito de paz e guerra. O humanitarismo, em realidade, é apenas um álibi do imperialismo fundado na soberania: “quando um imperialismo hipócrita combate seus inimigos em nome dos direitos humanos e os trata como bestas, como não-homens (...) está travando não uma guerra, mas o que poderia ser chamado hoje um terrorismo de estado” (DERRIDA, 2009, p.74). Contra o conceito despolitizante de humanitarismo ou de humanidade, para Schmitt, só há política se houver soberania, no sentido de determinação do inimigo pelo Estado (o que não pode acontecer sob o nome humanidade) (DERRIDA, 2009, p.77).

Apesar de reconhecer a crítica de Schmitt, Derrida busca uma desconstrução prudente da lógica do conceito de soberania do Estado-nação, que não seja uma despolitização ou uma neutralização do político, mas uma outra politização, uma repolitização que não conduza a uma ficção desonesta (a uma ficção onto-teológica, como ele escreve em Voyous (DERRIDA, 2005, p.6)), mas que busque uma ficção honesta (DERRIDA, 2009, p.75). Essa desconstrução do conceito de soberania é lenta, pois deve acompanhar o ritmo do que acontece no mundo e que afeta ou perturba o conceito clássico de soberania. Essa desconstrução é também diferenciada, pois não se trata de uma pura e simples oposição frontal, até por que existe uma série de soberanias (estatal, humana, individual) e de conceitos ligados a ela (liberdade, autonomia, decisão): “mesmo na política (…) a escolha não é entre soberania e não-soberania, mas entre diversas formas de partição, divisão, condições que surgem para romper uma soberania que é sempre considerada como indivisível e incondicional” (DERRIDA, 2009, p.76). Assim, o combate político revolucionário não pode ater-se simplesmente a uma transferência de soberania: é preciso atentar-se a uma economia da soberania, que pense seus deslocamentos, transmissões, heranças, distribuições e divisões. Para isso, deve-se partir não de um conceito puro de soberania, mas de conceitos como pulsão, transferência, transição, tradução, passagem, divisão (DERRIDA, 2009, p.290).

Como afirma Jean-Luc Nancy, a política, em Derrida, não é apenas a dos Estados soberanos, “ela não é mais a “política” tal como, desde há muito, nós a conhecíamos” (NANCY, 2015, p.167), já que ela envolve um direito internacional, ou melhor, um direito público não estatal. Mais ainda: a ideia de uma justiça indesconstrutível (que não é assegurada necessariamente pelo direito), ou seja, a resistência à subjugação, à dominação, torna a política indissociável de uma ética (portanto, distante de Bodin, Hobbes e Schimidt). Essa ética seria não apenas a da responsabilidade e da escolha, mas, continua Nancy, a da “arquidecisão sem horizonte de referência nem critério para além de um "querer-viver" que há que interrogar - e que poderia relevar de um impulso (Drang) ou de uma pulsão (Trieb) anterior a todo o “querer”” (NANCY, 2005, p.167). E é aqui – nestas palavras: impulso, pulsão – que a desconstrução da soberania encontra a crueldade.

Por ora, pretendemos apenas ressaltar que, nos parece, essa repolitização pretendida pela desconstrução do conceito de soberania passa pelo amálgama entre ética e política para além dos Estados soberanos, envolvendo não apenas (ou não necessariamente) as instâncias tradicionais do direito internacional, mas ONGs, movimentos por justiça social, grupos locais de resistência, etc. Assim, a questão da intervenção dos Estados ou de outros organismos em caso de crimes contra a humanidade ou genocídio, não deve ser apenas deixada de lado – sob a justificativa de um respeito sagrado à soberania ou por conta da ameaça de interesses imperialistas – ela pode ser articulada em várias instâncias e níveis de atores que compõem o conjunto da sociedade, ou seja, uma nova soberania partilhada, distribuída, transmitida, dividida, transferida – a cada vez – pode ser forjada com base na justiça. Aqui, a crueldade (o sofrimento diante do poder e a afirmação do poder) encontra sua expressão positiva e anárquica: produzir o mal a um mal em nome de um bem ainda por vir, fazer sofrer a tirania e os tiranos retirando-lhes o poder, fazer sangrar a imagem de um soberano acima da lei e seus capachos. Como Derrida escreve em Voyous, uma insurreição de contra-soberania – elevando-se à altura do Estado soberano – uma outra soberania que cultiva o mal e a transgressão (as redes internacionais que se constituíram em torno dos palestinos contra o suposto uso e monopólio legítimo da violência pelo Estado de Israel contra a “canalha”, os “marginais”, os “terroristas” palestinos, por exemplo) e que é também poética (DERRIDA, 2005, p.90; DERRIDA, 2009, p.290). Crueldade anterior e além de todo querer (no sentido de necessidade8), pois surge de um sofrimento, de uma imposição, de um im-poder, ela atravessa a si mesma parindo de suas entranhas uma nova potência em nome de um querer-viver.


5. Conclusão


Para lembrar o texto muito antigo de 1967: “A festa da crueldade remove os corrimões [rampe, também ribalta] e os parapeitos diante do “perigo absoluto” que “é sem fundo”. A festa deve ser um ato político. E o ato de revolução política é teatral” (DERRIDA, 1967, p.359). É essa ficção honesta que converte a festa da crueldade9 em imantação de uma promessa de porvir, algo muito distante do terror, da violência desmedida, do derramamento gratuito de sangue. Arriscamos aqui a hipótese de que é através dessa travessia nunca acabada da crueldade (e, portanto, do inumano) e de seu mais além, o pensamento da incondicionalidade (mais além da crueldade e da soberania incondicionais) – incondicionalidade que, por ora, só entrevemos nesse artigo –, que o humanitário pode participar de uma “humanização” dos homens (através de uma abertura do conceito histórico de homem – animal racional – ao seu fora, onde se converte também a perspectiva sobre o animal e o não-humano em geral). Em relação ao mundo animal abre-se a possibilidade de uma zooantropolítica, que Derrida explorará em A besta e o soberano e O animal que logo sou (2006). Essa zooantropolítica convida à criação de novas instituições que pensem a relação homem-animal de maneira responsável, estendendo a noção de comunidade também para os animais. Descentrando o eu através do outro, a incondicionalidade parece visar ainda a um mais além da vontade de potência (Nietzsche) e do Si mesmo (Artaud) – talvez ainda muito centrados no indivíduo e na sua liberdade –, assim como da lógica e da razão do mais forte (Hobbes, Bodin, Schimitt), em função de uma ética da alteridade e de uma justiça incondicional, que permanece uma instância, como afirma Rogozinski, teórica, mas que fornece um suplemento à praxis. A ética da alteridade e a justiça incondicional implicam, a partir desse contato com o outro humano, com o inumano do humano ou o inumano para além do humano, a noção de responsabilidade, de decisões e ações responsáveis (o que impõe uma revisão do conceito de liberdade), visando uma minimização da crueldade nas relações: “Dito isso, talvez seja mais “digno” da humanidade manter uma certa inumanidade, o rigor de uma certa inumanidade” (DERRIDA, 1992, p.290).


Bibliografia


ARTAUD, A. Oeuvres complètes (tome IV). Paris: Gallimard, 1978.

ARTAUD, A. O teatro e o seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

ARTAUD, A. Correspondance avec Jacques Rivière. In: Oeuvres Complètes (tome I). Paris: Gallimard, 1976.

BEARDSWORTH, R. Derrida & the Political (thinking the political). Londres/ New York: Routledge, 1996.

BENNINGTON, G. A besta e o soberano: três notas para Derrida. Rio de Janeiro, Alea, v.1, nº17, jan-jun, 2015, p.35-52.

BENNINGTON, G. Legislations. The politics of deconstruction. Londres: Verso, 1994.

BERNARDO, F. Do 'Tout autre' (Lévinas/Derrida) ao 'Tout autre est tout autre' (Derrida): pontos de não-contato entre “Lévinas e Derrida”. Rio de Janeiro, Revista Ítaca, nº 14 (2009).

BERNARDO, F. Limites do cosmopolitismo kantiano. Lisboa: Kant: Posteridade e Actualidade, 2006, p. 697-724.

BERNARDO, F. Uma voz de aliança por vir: Derrida e a paixão do Outro/Animal. Lisboa, Revista Kairos, nº21, 2019, p.24-36.

BINKOWSKI, G. Crueldade e álibi na técnica psicanalítica: uma leitura da carta de Derrida aos psicanalistas. São João del Rei, Analytica: Revista de psicanálise, v.7, nº13, dez, 2018, p.192-207.

BIRMAN, J. Crueldade e Psicanálise: uma leitura de Derrida sobre o saber sem álibi. São Paulo, Natureza humana, v.12, nº1, 2010, p.1-29.

BIRMAN, J. Écriture et psychanalyse: Derrida, lecteur de Freud. Toulouse, Figures de la psychanalyse, v.1, nº 15, 2017, p.201-218.

CABESTAN, P. Spectres de Freud: Derrida et la psychanalyse. Paris: Révue de métaphysique et de morale, nº 53, v.1, 2007.

CADAVA, E., CONNER, P., NANCY, J-L. Who comes after the subject?. New York; London: Routledge, 1991.

CALARCO, M. Zoographies. The question of the animal from Heidegger to Derrida. New York: Columbia University Press, 2008.

CALARCO, M. Deconstruction is not a vegetarianism: Humanism, subjectivity, and animals ethics. Suiça, Continental Philosophy Review, vol. 37, 2004, p. 175-201.

CANAVÊZ, F. Da resistência autoimunitária ao múltiplo na psicanálise. São Paulo, Psicologia USP, v.3, nº 28, set-dec, 2017, p.424-431.

CRAGNOLINI, M. Hopitalidad (con el) animal. Madrid, Revista Escritura e imagen, 2011, p. 313-324.

CRITCHLEY, S. The ethics of desconstruction. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1992.

DELEUZE, G. Pour en finir avec le jugement. In: Critique et clinique. Paris: Éditions de minuit, 1993.

DUMOULIÉ, C. Nietzsche et Artaud: pour une éthique de la cruauté. Paris: PUF, 1992.

DERRIDA, J. L’écriture et la différance. Paris: Éditions du Seuil, 1967.

DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Les éditions de minuit, 1967.

DERRIDA, J. Marges de la philosophie. Paris: Éditions de Minuit, 1972.

DERRIDA, J.Éperons: les styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978.

DERRIDA, J. Psyché. California: Stanford University Press, 2007.

DERRIDA, J. Points de suspension. Paris: Galilée, 1992.

DERRIDA, J. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994.

DERRIDA, J. Manifeste pour l’hospitalité. Paris: Éditions paroles d'aube, 1999.

DERRIDA, J. Estados-da-alma da psicanálise. O impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta, 2001.

DERRIDA, J. Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DERRIDA, J. Cosmopolites de tous les pays, encore un effort!. Paris: Galilée, 1997.

DERRIDA, J. L’animal que donc je suis. Paris: Galilée, 2006.

DERRIDA, J. L’université sans condition. Paris: Galilée, 2001.

DERRIDA, J. Artaud le Moma. Paris: Gallimard, 2002.

DERRIDA, J. The beast and the souvereign (volume 1). Chicago: University of Chicago Press, 2009.

DERRIDA, J. Canallas. Madrid: Editorial Trotta, 2005.

DERRIDA, J; NASCIMENTO, E. La Solidarité des vivants et le pardon: Derrida au Brésil. Paris: Hermann, 2016.

FRAGOZO, F. Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana. Rio de Janeiro, Ensaios filosóficos, v.6, out-2012.

FREUD, S. Au-délà du principe de plaisir. Paris: Seuil, 2014.

FREUD, S. Huit études sur la mémoire et ses troubles. Paris: Gallimard, 2010.

FREUD, S. Letters to Wilhelm Fliess (1887-1904). Buenos Aires/ Madrid: Amorrortu Editores, 2008.

FREUD, S. Le malaise dans la civilisation. Paris: Points, 2010.

GRONDIN, J. Derrida and the question of the animal. Paris, Revue Cités, nº30, v.2, 2007.

GROSSMAN, E. Modernes déhumanités. Rio de Janeiro, Alea, vol.12; nº 1, 2010.

GUALA, C. Jacques Derrida. Margenes etico-politicos de la desconstrucción. Santiago: Universitaria, 2011.

HADDOCK-LOBO. Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008.

HADDOCK-LOBO, R. Representação e crueldade: Derrida encena Artaud. Rio de Janeiro, Aisthe, n°6, 2010, p127-139.

LACOUE-LABARTHE, P.; NANCY, J-L. Les fins de l’homme: à partir du travail de Jacques Derrida. Paris: Hermann Éditeurs, 2013.

LEVADOT, L. Jacques Derrida: democrácia/sobirania. Catalunha: Gedisa Editor, 2019.

LLORED, P. Une éthique animale pour le XXIe siècle. France: Mediaspaul, 2021.

LLORED, P. Jacques Derrida, politique et éthique de l’animalité. Mons: SilsMaris, 2013.

LLORED, P. Pour une démocratie zoopolitique. Ou comment Derrida fait entrer les animaux dans la démocratie à venir. Paris, Rue Descartes nº 89-90, v.2, 2016, p. 245-252.

LLORED, P. Du droit des bêtes à la bêtise. Paris, Revue Chimères, nº18, v.3, 2013, p. 121-130.

MATOS, O. Derrida: da razão pura à razão marrana. São Paulo, Psicologia Usp, v. 17, nº 2, 2017, p.255-262.

MAJOR, R. Y a-t-il un au-delà de la cruauté pour la psychanalyse? La raison de la raison à venir. In: Estados Gerais da Psicanálise: segundo encontro mundial, Rio de Janeiro, 2003.

NANCY, J-L. Política e/ou Política. Rio de Janeiro, Alea, v.1, nº 17, jan-jun, 2015, p.166-178.

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

RAMOND, C. Derrida Artaud - Echos et forçages. Paris, Les temps modernes, nº 687-688, 2016/1-2, p.207-227.

RAFFOUL, F. Derrida et l’éthique de l’impossible. Paris, Revue de métaphysique et morale, nº 53, v.1, 2007, p.73-88.

RODRIGUES, C. É preciso comer bem - Derrida e a crítica ao sujeito. Rio de Janeiro, Analógos , v.9, 2009, p.1-10.

ZAGALO, G. Hospitalidade e soberania – uma leitura de Jacques Derrida. Coimbra, Revista filosófica de Coimbra, nº30, 2006, p.307-323.

ZARK, C. Derrida politique: la déconstruction de la souveraineté. Paris, Revue Cités, n°30, 2007.

SAAVEDRA, A.; FIDALGO, H.Hostilidades y hospitalidades. Memoria de un evento sobre Jacques Derrida. Colombia: Universidad Externado de Colombia e Universidad de los Andes, 2015.





1Essa crueldade estatal foi explorada, particularmente, pelo próprio Freud. (FREUD, S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In: Obras completas (volume 12). São Paulo: Companhia das Letras, 2010).

2 Nietzsche: “E, assim como a criança e o artista, o fogo eternamente vivo joga, constrói e destrói, na inocência” (DERRIDA, 1967, p.367).

3Segundo a observação de Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos, que Derrida cita em 1967 – de que não se trata de negar ou se purificar da crueldade (por meio da catarse, por exemplo), mas de atravessá-la: “Não se trata de se liberar do terror e da piedade, nem de se purificar de um afeto perigoso por uma descarga veemente – é o que pensava Aristóteles; mas bem, atravessando o terror e a piedade, ser em si mesmo a alegria eterna do por vir – essa alegria que encerra também nela a alegria de destruir” (DERRIDA, 1967, p.344).

4Artaud escreve: “o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências; a morte é crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade, por que em todos os sentidos e num mundo circular e fechado, não há lugar para a verdadeira morte, pois uma ascensão é um dilaceramento, pois o espaço fechado se nutre de vidas, e cada vida mais forte passa através das outras e as devora então num massacre que é uma transfiguração e um bem” (ARTAUD, 1999, p.120).

5“Mas podemos pensar o fechamento do que não tem fim. O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete indefinidamente. Quer dizer, seu espaço de jogo. O movimento é o movimento do mundo como jogo. “E no absoluto a vida é ela mesma um jogo” ([ARTAUD], IV, p. 282). Esse jogo é a crueldade como unidade da necessidade e do acaso. “O acaso que é o infinito e não deus” ([ARTAUD], Fragmentations). Esse jogo da vida é artista” (DERRIDA, 1967, p.367).

6Imensa questão que Derrida não desenvolve em Estados de alma da psicanálise e que só podemos, por ora, apontar aqui: essa política da psicanálise seria, em Freud, uma espécie de aristocracia, pautada por um hiper-racionalismo e pelo tema da humanitas pensada, desde Cícero e Sêneca como educação, como humanização do homem? Um paralelo talvez interessante poderia ser feito com Aprender a viver, de Derrida.

7 Como sugere Matos, esse para-além da soberania não se resume ao dado puramente humano, o acolhimento do outro se dá “não na lógica da razão de Estado e dos direitos humanos universais, não por ser um homem como nós, mas porque ele traz consigo aquilo que nele não se reduz ao gênero e ao cálculo do necessário, tampouco à lógica da doação e da gratidão” (MATOS, 2016, p.261).

8 Derrida escreve, em Escritura e diferença: “Entrevemos assim o sentido de crueldade como necessidade e rigor. Artaud nos convida a não pensar sob a palavra crueldade que “rigor, aplicação e decisão implacáveis”, “determinação irreversível”, “submissão à necessidade”, etc., e não necessariamente “sadismo”, “horror”, “sangue derramado”, “inimigo crucificado”” (DERRIDA, 1967, p.350).

9Nietzsche, em A genealogia da moral, também escreve sobre a “festa da crueldade” (NIETZSCHE, II, 6) – a que Derrida alude no fim do artigo “Os fins do homem”, em Margens da filosofia (DERRIDA, 1972, p.163) – além de uma “crueldade de artista” que retomamos aqui por nossa conta. Poderíamos arriscar a hipótese de uma evolução da crueldade em Nietzsche, que passaria do prazer com o sofrimento do outro (os martírios, os suplícios etc.) a uma crueldade que se volta para si, onde se reencontra novamente a ideia de travessia: “Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade de artista, esse deleite em se dar uma forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz sofrer, por prazer em fazer sofrer, essa "má consciência" ativa também fez afinal - já se percebe -, como verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a própria beleza…” (NIETZSCHE, II, 18).

 
 
 

Comments


Post: Blog2_Post
bottom of page