E SE O ANIMAL RESPONDESSE?
- Martha Bernardo
- 25 juin 2022
- 38 min de lecture
Jacques Derrida
à Jacques Lacan
Seria suficiente para uma ética lembrar ao sujeito, como o teria tentado, então, Levinas, seu ser-sujeito, seu ser-hópede ou refém, quer dizer, seu ser-assujeitado ao outro, ao Totalmente-Outro ou ao totalmente outro?
Não o creio. Isso não é suficiente para romper com a tradição cartesiana do animal-máquina sem linguagem e sem resposta3: isso não é suficiente, mesmo numa lógica ou numa ética do inconsciente que, sem renunciar ao conceito de sujeito, buscaria uma espécie de “subversão do sujeito”.
Com esse título lacaniano, “Subversão do sujeito”, passamos, então, de uma denegação ética a outra. Escolho, nesse contexto, fazê-lo seguindo as pistas que acabam de se abrir, aquela do outro, aquela do testemunho e aquela dos “significantes sem significados”, que Lévinas associa ao “simiesco”. Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano4” (1960), uma certa passagem nomeia “o animal” ou “um animal” – no singular e sem outra precisão. Ela marca, talvez, ao mesmo tempo, um passo além e um passo aquém de Freud quanto à relação entre o homem, o inconsciente e o animot. Essa página notável dá, de início, a impressão e a esperança de que as coisas vão mudar, notadamente quanto ao conceito de comunicação ou de informação que se atribui ao que se chama o animal, o animal em geral. Este seria apenas capaz, pensa-se, da mensagem codificada e da significação estreitamente sinalizante, estritamente limitada: fixada na sua programação. Lacan começa por se deter na banalidade da “moderna teoria da informação”. É verdade que ele fala então do sujeito humano e não do animal, mal ele escreve o seguinte, que parece anunciar, talvez deixar esperar, uma outra nota:
O Outro, como lugar prévio do puro sujeito do significante, ocupa a posição mestra, antes mesmo de vir à existência, para dizê-lo com Hegel e contra ele, de Mestre absoluto. Pois o que é omitido na banalidade da moderna teoria da informação é que só se pode falar de código quando este já é o código do Outro; ora, é de algo bem diferente que se trata na mensagem, por que é dela que o sujeito se constitui, pois é do Outro que o sujeito recebe a própria mensagem que emite5.
Retornaremos, após um desvio, a essa passagem de “Subversão do sujeito…” Ela coloca (digo bem, ela coloca, ela emite sob a forma de tese ou pressupõe sem trazer a menor prova) que o animal se caracteriza pela incapacidade de fingir que finge e de apagar seus rastros, no que ele não poderia ser “sujeito”, quer dizer, “sujeito do significante”.
O desvio que esboço agora nos permitirá de passar novamente pelos textos anteriores de Lacan, lá onde, me parece, eles anunciavam,ao mesmo tempo, uma mutação teórica e uma confirmação estagnante da herança, de seus pressupostos e de seus dogmas.
O que permitia ainda esperar um deslocamento decisivo da problemática tradicional era, por exemplo, o que, em “O estádio do espelho”, desde 1936, levava em conta uma função especular na sexualização do animal. A coisa era bastante rara à época. E isso, mesmo se, limitação massiva, essa passagem pelo espelho imobilizasse para sempre o animal, segundo Lacan, nas malhas do imaginário, privando-o, assim, de todo acessoao simbólico, quer dizer à lei e a tudo o que supõe-se ser o próprio do homem. O animal não será nunca, como o homem, uma “presa da linguagem”. “É necessário colocar - lê-se mais tarde, em “A direção da cura” – que, obra de um animal presa da linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro6”. Essa figura da presa caracteriza de forma sintomática e recorrente a obsessão “animalesca” em Lacan, no momento mesmo em que ele se esforça tanto para dissociar o antropológico do zoológico: o homem é um animal, mas ele fala, e ele é menos um animal de rapina que um animal submetido (en proie) à palavra. Só há desejo e, então, inconsciente do homem, de maneira alguma do animal, a menos que seja pelo efeito do inconsciente humano, como se, por alguma transferência contagiosa ou alguma interiorização muda (da que seria necessário ainda prestar contas, aliás), o animal, domesticado ou adestrado, traduziria nele o inconsciente do homem. Preocupado em distinguir a pulsão inconsciente do “instinto” e do “genético”, nos quais ele confina o animal, Lacan mantém então, em “Posição do inconsciente”, que o animal não poderia ter um inconsciente seu, próprio a ele, se posso dizer, e se a lógica dessa expressão não fosse ridícula. Mais ridícula, ela o seria, de início, no próprio Lacan, talvez, por que ele escreve:
No tempo propedêutico, podemos ilustrar o efeito de enunciação perguntando ao aluno se ele imagina o inconsciente no animal, a não ser por algum efeito de linguagem, e de linguagem humana7.
Cada palavra dessa frase mereceria um exame crítico. A tese é clara: o animal não tem nem inconsciente nem linguagem, nem o outro, salvo por um efeito da ordem humana, por contágio, por apropriação, por domesticação.
Sem dúvida, a consideração da especularidade sexualizante no animal é um avanço notável, mesmo se ela captura o animot no espelho, e mesmo se ela retém a pomba ou o gafanhoto-do-deserto em cativeiro no imaginário. Referindo-se, então, aos efeitos de uma Gestalt atestada por uma “experimentação biológica” que repugna à linguagem da “causalidade psíquica”, Lacan concede mérito a essa teoria por reconhecer,apesar de tudo, que “a maturação da gônada na pomba” supõe “a vista de um congênere”, logo, de um outro pombo, qualquer que seja seu sexo. E isso é verdade a ponto que o simples reflexo num espelho basta. Basta ao gafanhoto-do-deserto uma imagem visual similar para passar da solidão ao gregarismo. Lacan diz, para mim, de forma significativa, passagem da forma solitária à forma “gregária” e não à forma social, como se a diferença entre o gregário e o social fosse a diferença do animal ao homem. Esse motivo e essa palavra “gregário”, talvez gregarismo, reaparecem com força mais ou menos dez anos mais tarde, à propósito da animalidade, em “Proposta sobre a causalidade psíquica”8(1946), texto no fim do qual Lacan considera aliás Descartes inultrapassável. A análise do efeito especular no pombo é, aí, mais desenvolvida, mas vai mais ou menos no mesmo sentido: a ovulação da pomba, segundo os trabalhos então recentes de Harrisson (1939), se produz pela simples vista de uma forma evocando o semelhante congênere, de uma vista refletidora, em suma, mesmo na ausência do macho real. Trata-se bem de olhar especular, de imagem, e de imagem visual, não de identificação pelo odor ou pelo grito. Mesmo se o jogo do acasalamento é fisicamente interdito por uma placa de vidro, e mesmo se o casal se compõe de duas fêmeas, a ovulação advém. Ela advém ao fim de doze dias quando o casal é heterossexual, se posso dizer, e num intervalo que pode ir até dois meses para duas fêmeas. Um espelho pode bastar9.
Um dos interesses dessa interpretação é que, como Descartes, em suma, e segundo essa experimentada tradição bíblico-prometéica, em direção à qual retorno regularmente, ela põe em relação a fixidez do determinismo animal, na ordem da informação ou da comunicação, com uma certa perfeição originária do animal. Inversamente, se o “conhecimento humano” é “mais autônomo que aquele do animal no campo de forças do desejo10”, e se “a ordem humana se distingue da natureza11” é em razão, paradoxalmente, de uma imperfeição, de um defeito originário do homem que apenas recebeu a palavra e a técnica, em suma, lá onde lhe falta alguma coisa. Trata-se aqui do que Lacan coloca no centro do seu “Estádio do espelho”, a saber, o “dado de uma verdadeira prematuração específica do nascimento no homem”12. O defeito ligado a essa prematuração corresponderia à “noção objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal”, a que os embriologistas nomeiam “fetalização”, em relação a qual Lacan relembra a ligação a um certo “espelho intra-orgânico13”. Uma especularidade autotélica do dentro está ligada a um defeito, a uma prematuração, a um inacabamento do pequeno homem.
O que acabamos dedenominar um pouco rápido um avanço limitado mas incontestável, devemos, sempre no solo de “Subversão do sujeito…”, registrá-lo com a maior prudência. Pois não apenas o animal, mantido no imaginário, não saberia aceder ao simbólico, ao inconsciente e à linguagem (e então à autobiografia autodeítica, para não perder nosso fio), mas a descrição de seu poder semiótico permaneceria determinada pelo “Discurso de Roma14” (1953), do modo mais dogmaticamente tradicional, fixado no fixismo cartesiano, na pressuposição de um código que só permite reações aos estímulos e não respostas à questões. Digo “sistema semiótico” e não linguagem, pois é a linguagem que Lacan recusa, ele também, ao animal, só reconhecendo a este o que ele chama um “código”, a “fixidez de uma codagem” ou um “sistema de sinalização”. Outros modos de nomear o que, numa problemática cognitivista do animal que, parecendo a ela se opor, repete frequentemente os truísmos mais cansados da metafísica, denomina-se a “resposta pré-cabeada” ou o “componente pré-cabeado15”.
Lacan é ainda mais preciso e seguro retomando por sua própria conta o velho topos modernizado das abelhas em relação ao qual ele parece não ter, se posso dizer, a consciência tranquila. Sinto uma surda inquietação sob a autoridade desse novo, mas tão velho, tão velho discurso sobre as abelhas. Lacan pretende buscar apoio no que denomina tranquilamente o “reino animal” para criticar a noção corrente de linguagem-signo, por oposição às “línguas humanas”. Quando as abelhas “respondem” em aparência a uma mensagem, elas não respondem, elas reagem; elas só fazem obedecer à fixidez de um programa, enquanto o sujeito humano responde ao outro, à questão do outro. Discurso literalmente cartesiano. Mais longe, retornaremos a isso, Lacan opõe expressamente a reação à respostacomo o reino animal ao reino humano, e como este opõe a natureza à convenção:
Mostraremos a insuficiência da noção de linguagem-signo pela própria manifestação que melhor a ilustra no reino animal, e a qual, se não houvesse recentemente sido objeto de uma descoberta autêntica, parece que teria sido preciso inventar para esse fim.
Todos admitem agora que a abelha, ao voltar à colmeia depois de sua coleta de pólen, transmite a suas companheiras por dois tipos de danças a indicação da existência de um butim próximo ou distante. A segunda é a mais notável, pois o plano em que ela descreve a curva em 8 que fez com que lhe dessem o nome de wagging dance, bem como a frequência dos trajetos que a abelha executa num dado tempo, apontam exatamente, por um lado, a direção, determinada em função da inclinação solar (pela qual as abelhas podem se localizar permanentemente, graças a sua sensibilidade à luz polarizada), e por outro, a distância de até vários quilômetros em que se encontra o butim. E as outras abelhas respondem a essa mensagem dirigindo-se imediatamente para o lugar assim apontado.
Uma dezena de anos de paciente observação bastou a Karl von Frisch para decodificar essa modalidade de mensagem, pois se trata realmente de um código ou sistema de sinalização, do qual somente o caráter genérico nos impede de qualificá-lo de convencional.
Mas, será isso uma linguagem? Podemos dizer que se distingue desta precisamente pela correlação fixa [sublinho] entre seus signos e a realidade que eles significam. É que, numa linguagem, os signos adquirem valor por sua relação uns com os outros, tanto na divisão léxica dos semantemas quanto no uso posicional ou flexional dos morfemas, que contrastam com a fixidez[sublinho ainda] da codificação aqui exposta. E a diversidade das línguas humanas adquire à luz disso seu pleno valor.
Outrossim, se a mensagem da modalidade aqui descrita determina a ação do socius, jamais é retransmitida por ele. E isso quer dizer que continua fixada [sublinho sempre] a sua função de retransmissora da ação, da qual nenhum sujeito a isola como símbolo da comunicação em si. 16(p.298)
Mesmo se subscrevêssemos provisoriamente a essa lógica (à qual aliás não objeto nada, mas que gostaria apenas de reinscrever outramente, e além de qualquer oposição simples animal/homem), é difícil de reservar, como o faz explicitamente Lacan, a diferencialidade dos signos à linguagem humana e não ao código animal. O que ele atribui a signos que, “numa linguagem”, entendamos na ordem humana, “tomam seu valor de sua relação uns com os outros”, etc., e não somente de sua “correlação fixa […] à realidade”, isso pode e deve estar de acordo com todo código, animal ou humano.
Quanto à ausência de resposta no animal-máquina, quanto à distinção trinchante entre reação e resposta, não há nada de fortuito que a passagem mais cartesiana se encontre na sequência desse discurso sobre a abelha, sobre seu sistema de informação que não se introduziria no “campo da palavra e da linguagem”. Trata-se bem da constituição do sujeito como sujeito humano, quando ele passa o limite da informação para aceder à palavra:
Pois, nesta, a função da linguagem não é informar, mas evocar.
O que busco na palavra é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta. Para me fazer reconhecer pelo outro, só profiro aquilo que foi com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele deve assumir ou recusar para me responder.
(…) Se agora eu me coloco diante do outro para interrogá-lo, nenhum aparelho cibernético, por mais rico que vocês possam imaginá-lo, poderá fazer reação do que é resposta. Sua definição como segundo termo do circuito estímulo-resposta é apenas uma metáfora que se sustenta pela subjetividade imputada ao animal, para em seguida elidi-la no esquema físico em que ela a reduz. Foi a isso que chamamos pôr o coelho na cartola para depois fazê-lo sair desta. Mas, uma reação não é uma resposta.
Quando aperto um botão elétrico e a luz se faz, só há resposta para meu desejo17. (p.301)
Uma vez ainda, não se trata aqui de apagar toda a diferença entre o que nomeamos reação e o que nomeamos correntementeresposta. Não se trata de confundir o que se passa quando teclamos num computador e o que se passa quando pomos uma questão ao interlocutor; ainda menos de emprestar ao que Lacan denomina “animal” o que ele denomina, ele, uma “subjetividade” ou um “inconsciente” que permite, por exemplo, colocar o dito animal em situação analítica (ainda que cenários análogos não estejam forçosamente excluídos com tais animais, em tais contextos – e se o tempo nos fosse dado, poderíamos imaginar hipóteses para refinar essa analogia). Minha reserva recai somente sobre a pureza, o rigor e a indivisibilidade da fronteira que separa, já entre “nós-os-homens”, a reação da resposta: e, consequentemente, a pureza, o rigor, a indivisibilidade, sobretudo, do conceito de responsabilidade que aí se agrega. A inquietação geral que formulo se encontra, assim, agravada de três modos ao menos:
1) quando se deve levar bem em conta uma lógica do inconsciente que deveria nos interditar toda segurança imediata na consciência da liberdade que supõe toda responsabilidade;
2) sobretudo quando, e em Lacan singularmente, essa lógica do inconsciente se funda sobre uma lógica da repetição que, para mim, inscreverá sempre um destino de iterabilidade, então alguma automaticidade da reação em toda resposta, quão originária, livre, decisória e a-reacional ela pareça;
3) quando, e em Lacan em particular, consideramos a materialidade da palavra, o corpo da linguagem. Lacan o relembra na página seguinte: “A palavra, com efeito, é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. Ela é corpo sutil, mas é corpo”. E, no entanto, no intervalo, ele terá fundado toda “responsabilidade” e, para começar, toda responsabilidade psicanalítica, logo, toda ética psicanalítica, sobre a distinção que acho tão problemática entre reação e resposta. Ele terá mesmo fundado, e é isso que gostaria, sobretudo, de mostrar, seu conceito de sujeito:
Desde então, aparece a função decisiva de minha própria resposta e que não é somente, como se diz, de ser recebida pelo sujeito como aprovação ou rejeição do seu discurso, mas verdadeiramente de reconhecê-lo ou de aboli-lo como sujeito. Tal é a responsabilidade do analista cada vez que ele intervém pela palavra18.
Por que a problemática parece aqui tanto mais grave? Ao problematizar, como eu o faço, a pureza e a indivisibilidade de uma linha entre reação e resposta e, sobretudo, a possibilidade de traçá-la, essa linha, entre o homem em geral e o animal em geral, arriscamos, como se apressarão em me contrapor, de levar à dúvida toda responsabilidade, toda ética, toda decisão, etc. Ao que responderia, por que se trata bem de responder, o seguinte, esquematicamente, principalmente, em três pontos.
1. Por um lado, duvidar da responsabilidade, da decisão, de seu próprio ser-ético, eis o que pode ser, me parece, deve talvez sempre permanecer, a essência irresilível da ética, da decisão e da responsabilidade. Todo saber, toda certeza e toda segurança assegurada e teórica a esse respeito bastariam para confirmar, justamente, isso mesmo que se quererá denegar, a saber, a reacionalidade na resposta. Insisto em “denegar”, e é por isso que coloco sempre a denegação no coração de todos os discursos sobre o animal.
2. Por outro lado, sem apagar a diferença, uma diferença não oposicional e infinitamente diferenciada, qualitativa, intensiva, entre reação e resposta, trata-se de levá-la, ao contrário, em conta, em todo o campo diferenciado da experiência e de um mundo da vida. E isso sem distribuir essa diferença diferenciada e múltipla, de modo tão massivo e homogeneizante, entre o sujeito humano de um lado, do não-sujeito do animal em geral de outro, este último vindo a ser, em outro sentido, o não-sujeito assujeitado ao sujeito humano.
3. Finalmente, trata-se de elaborar uma outra “lógica” da decisão, da resposta, do acontecimento – como tento depreendê-la também alhures, e que me parece menos incompatível com o que o próprio Lacan, em “Subversão do sujeito…”, diz do código como “código do Outro”. Trata-se desse Outro do qual “o sujeito recebe a própria mensagem que ele emite”. Esse axioma deveria complicar a distinção simples entre responsabilidade e reação, com toda sua consequência. Trata-se, então, de reinscrever essa diferença da reação à resposta e, assim, dessa historicidade da responsabilidade ética, jurídica ou política, em um outro pensamento da vida, dos viventes, em uma outra relação dos viventes à sua ipseidade, a seu autos, à sua própria autocinese e automaticidade reacional, à morte, à técnica ou ao maquínico.
Feito esse desvio, se voltarmos, então, ao texto mais tardio intitulado “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, nele encontraremos a mesma lógica, certo, e as mesmas oposições – notadamente aquela do imaginário e do simbólico, da captura especular da qual o animal é capaz e da ordem simbólica do significante ao qual ele não acede. Nessa juntura entre o imaginário e o simbólico se joga toda a questão da autobiografia, da autobiografia em geral, sem dúvida, mas também aquela do teórico ou da instituição na história da qual o dito teórico articula e assina seu discurso sobre a dita juntura, aqui, o discurso de Lacan como análise autobiográfica. (Não o podemos fazer aqui, nesses limites, mas seria necessário recolocar em sua própria perspectiva, alguns anos depois da guerra, com suas problemáticas ideológicas, todo o desenho essencialmente antropológico da época, como pretendia se conduzir além de toda antropologia positiva ou de todo antropocentrismo metafísico-humanista. E sobretudo, de modo bastante legítimo, além do biologismo, do fisicalismo behavorista, do geneticismo, etc. Para Heidegger, como para Lacan e muitos outros, tratava-se, então, antes de tudo, de se assegurar de uma nova antropologia fundamental e de responder rigorosamente à questão e da questão: “O que é o homem?”
Em “Subversão do sujeito…”, o refinamento da análise se dirigepara outras distinções conceituais. Elas me parecem também muito problemáticas como aquelas que acabamos de analisar, e elas permanecem, aliás, indissociáveis.
Trata-se aparentemente de um parêntese (“Observemos entre parênteses…”), mas de um parênteses aos meus olhos capital. Ele se interessa com efeito sobre a dimensão testemunhal em geral, a saber, do que mantém a problemática que nos interessa aqui. Quem testemunha de quem e do que? Quem prova, quem olha, quem observa quem e o quê? Que dizer do saber, da certeza e da verdade?
Observemos, entre parênteses, diz Lacan, que esse Outro, distinguido como lugar da Palavra, não se impõe menos como testemunha da Verdade. Sem a dimensão que ele constitui, o engano da Palavra não se distinguiria do fingimento que, na luta combativa ou na exibição sexual, é bem diferente dela19.
A figura do animal surge, então, dessa diferença entre o fingimento e a enganação. Distinção nítida entre o que o animal é, segundo Lacan, muito capaz, a saber, o fingimento estratégico (corrida, caça ou perseguição – guerreira, predatória ou sedutora), e o que ele é incapaz e incapaz de testemunhar, a saber, a enganação da palavra na ordem do significante e da Verdade. A enganação da palavra, veremos, é certamente a mentira (e o animal não saberia propriamente mentir, segundo o senso comum, segundo Lacan e tantos outros, mesmo se, como sabemos, ele sabe fingir); mas mais precisamente, a enganação, é a mentira na medida em que ela comporta, prometendo o verdadeiro, a possibilidade suplementar de dizer o verdadeiro para enganar o outro, para lhe fazer crer outra coisa que o verdadeiro. (Conhece-se a história judia que Freud reconta e que Lacan frequentemente cita: “Por que você me diz que vai a X, para me fazer crer que vai a Y, enquanto você vai a X?”). É dessa mentira, dessa enganação, desse fingimento em segundo grau que o animal seria, segundo Lacan, incapaz, enquanto que o “sujeito do significante” na ordem humana, teria disso o poder e, melhor, adviria como sujeito, se instituiria e viria a si mesmo como sujeito em virtude desse poder: poder reflexivo de segundo grau, poder consciente de enganar fingindo fingir. Lacan, e é um dos interesses dessa análise, concede, sem dúvida, muito mais, dessa vez, mais em todo caso que qualquer um em filosofia e mais que ele próprio em seus escritos anteriores, à capacidade do que ele nomeia sempre “o animal”, “um animal”, o que ele nomeia aqui sua “dancidade”, com um a. A dancidade é a capacidade de fingir na dança, na atração, na coreografia da caça ou da sedução, na exibição que se mostra antes de fazer amor ou se protege no momento de fazer a guerra, logo, em todas as formas do “eu sou” ou do “eu sou seguido” que despistamos aqui. Mas ainda que ele empreste ou conceda isso ao animal, Lacan o mantém no imaginário ou no pré-simbólico (como tínhamos notado à época do “estádio do espelho” e sobre o exemplo do pombo ou do gafanhoto-do-deserto). Ele mantém “o animal” prisioneiro na especularidade do imaginário: ele mantém, sobretudo, que o próprio animal se mantém nessa catividade e fala a esse respeito de “captura imaginária”. Sobretudo, ele mantém “o animal” no primeiro grau do fingimento (fingimento sem fingir fingimento) ou, o que retorna aqui ao mesmo, no primeiro grau do rastro: poder de traçar, de deixar pistas, de des-pistar, mas não de des-pistar a des-pistagem e apagarseu rastro.
Um “Mas” vai, com efeito, dobrar em dois esse parágrafo (“Mas um animal não finge fingir”). Um balanço separa as contas do que é necessário conceder ao animal (o fingimento e o rastro, a inscrição do rastro) e disso que é preciso lhe denegar (a enganação, a mentira, o fingimento do fingimento e o apagamento do rastro). Mas isso que a articulação desse “Mas” deixa talvez inaparente, numa sombra discreta, entre todos os traços recenseados, é talvez a referência à vida, ao “vital”. Tudo o que é acordado ao animal lhe é concedido sob o título de “situações vitais”, enquanto que, seríamos tentados a concluir, o animal, seja ele caçador ou caça, seria incapaz de uma relação autêntica com a morte, de um testemunho da mortalidade também essencial no coração da Verdade ou de sua Palavra. O animal é um vivente somente vivente, um vivente “imortal”, se podemos dizer. Como diz Heidegger, do qual Lacan está mais próximo que nunca, em particular, veremos, no que liga o logos à possibilidade do “enganar” e do “se enganar”, o animal não morre20. Aliás, ele ignoraria também por essa razão o luto, a sepultura e o cadáver – do qual Lacan diz que ele é um “significante”.
Observemos, entre parênteses, que esse Outro, distinguido como lugar da Palavra, não se impõe menos como testemunha da Verdade. Sem a dimensão que ele constitui, o engano da Palavra não se distinguiria do fingimento que, na luta combativa ou na exibição sexual, é bem diferente dela. Manifestando-se na captura imaginária, o fingimento se integra no jogo de aproximação e ruptura constituindo a dança originária em que essas duas situações vitais encontram sua escansão, e nos parceiros que nelas se ordenam em sua, ousaríamos escrever, dancidade. O animal, aliás, mostra-se capaz disso ao ser acuado: consegue despistar21, esboçando uma retirada que é um engodo. Isso pode chegar a ponto de sugerir na presa a nobreza de honrar o que há na caça esportiva. [Trata-se aí, bem entendido, de uma sugestão antropomórfica e figural, o “o coelho na cartola”, pois o que vai ser precisado em breve, pelo “Mas” que segue, é que a honra e a nobreza, ligadas à Palavra dada como ao simbólico, o animal é justamente incapaz; um animal não dá sua palavra e não damos nossa palavra a um animal, salvo projeção ou transferência antropomórfica. Não lhe mentimos também, sobretudo fingindo esconder dele alguma coisa que lhe mostramos. Não é essa a evidência mesma? Talvez. Toda a organização desse discurso, eis em todo caso o que interrogamos aqui].Mas um animal não sabe fingir. Não deixa rastros cujo engodo consista em se fazerem tomar por falsos sendo verdadeiros, isto é, quando são os que dariam a pista certa. Tampouco apaga seus rastros, o que já seria, para ele, fazer-se sujeito do significante2223.
Ser sujeito do significante, do que o animal é reputado aqui incapaz, que quer dizer? Que significa? Notemos, de início, na passagem, ela confirma o velho tema (adâmico-prometéico) da inocência profunda do animal que, incapaz do “significante”, incapaz de mentira e de enganação, de fingir que finge, se encontra aqui ligado, de forma também totalmente tradicional, ao tema da crueldade que se ignora: inocência cruel, então, de um vivente estrangeiro ao mal, anterior à diferença entre o bem e o mal24.
Mas ser sujeito do significante, quer dizer também, e ainda, duas coisas indissociáveis que se acoplam na subjetividade do sujeito. Lacan não cessa de insistir sobre a “dominância” “do significante sobre o sujeito25” como sobre “a ordem simbólica que é, para o sujeito, constituinte”26.O “sujeito” não tem o controle. Sua entrada na ordem humana da lei supõe essa finitude passiva, essa enfermidade, esse defeito do qual o animal não sofre. O animal não conhece o mal, a mentira, a enganação. O que lhe falta é, justamente, o defeito em virtude do qual o homem é sujeito do significante, sujeito assujeitado do significante. Mas ser sujeito do significante, é também ser sujeito assujeitador, sujeito mestre, sujeito ativo e que decide do significante, mestre o bastante em todo caso para ser capaz de fingir que finge e, logo, de poder colocar seu poder de aniquilação do rastro. Essa mestria é a superioridade do homem sobre o animot, mesmo se ela se assegura, a partir do privilégio do defeito, da falta ou do erro, de um fracasso que é tão bem reconduzido à prematuração genérica do nascimento quanto ao complexo de castração – que Lacan, em um texto que citarei num instante, designa como a versão científica (em todo caso não mitológica) e freudiana do pecado original ou do erro adâmico.
É aí que a passagem do imaginário ao simbólico se determina como passagem da ordem animal para a ordem humana. É aí que a subjetividade, como ordem do significante vinda do lugar do Outro, teria faltado à filosofia tradicional do sujeito, como as relações entre o homem e o animal. Tal é, ao menos, a alegação de Lacan no momento em que ele reintroduz sutilmente a lógica do antropocentrismo e reforça seguramente o fixismo do cogito cartesiano como tese sobre o animal máquina em geral.
Tudo isso foi apenas confusamente articulado por alguns filósofos, ainda que profissionais. Mas está claro que a Palavra só começa com a passagem do fingimento à ordem do significante, e que o significante exige um outro lugar - o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer de seus parceiros - para que a Palavra que ele sustenta possa mentir, isto é, colocar-se como Verdade.
Assim, é de outro lugar que não o da Realidade concernida pela Verdade que esta extrai sua garantia: é da Palavra. Como é também desta que ela recebe essa marca que a institui numa estrutura de ficção27.
Essa alusão a uma “estrutura de ficção” nos reenviaria ao debate entorno de A carta roubada28. Sem reabri-lo demasiadamente, notemos aqui a acuidade reflexiva da palavra “ficção”. O conceito em direção ao qual ela se coloca, não é apenas aquele da figura ou do simples fingimento, mas aquele, reflexivo e abissal, de fingir que finge. É pelo poder de fingir que finge que acedemos à Palavra, à ordem da Verdade, à ordem simbólica, breve, à ordem humana.
(Antes mesmo de precisar uma vez mais o princípio de leitura ensaiado, gostaria de evocar ao menos uma hipótese. Mesmo que Lacan repita frequentemente que não há Outro do Outro29; apesar de que, para Lévinas, ao contrário, de um outro ponto de vista, a questão da justiça nasça dessa busca de um terceiro e de um outro do outro que não seja “simplesmente seu semelhante30”, perguntamo-nos se a implicação denegada, mas comum desses dois discursos sobre o outro e o terceiro, não situa ao menos uma instância do animal, do outro-animal, de outro como animal, do outro-vivente-mortal, do não-semelhante em todo caso, do não-irmão (do divino ou do animal, aqui inseparáveis), breve, do a-humano, no qual o deus e o animal se aliam segundo todas as possibilidades teo-zoomórficas propriamente constitutivas dos mitos, das religiões, das idolatrias e mesmo das práticas sacrificiais nos monoteísmos que pretendem romper com a idolatria. Aliás a palavra “a-humano” não faz medo a Lacan que, num post-scriptum à “Subversão do sujeito…”, nota que ele não estava minimamente afligido pelo epíteto de “a-humano” do qual um dos participantes havia qualificado seu propósito.
Que faz Lacan enquanto ele coloca “que o significante exige um outro lugar, - o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer de seus parceiros”? Esse além dos parceiros, logo, do duelo especular ou imaginário, não deve, para romper com a imagem e com o semelhante, se situar ao menos num lugar de alteridade radical o suficiente para que nele devamos romper com toda identificação de uma imagem de si, com todo vivente semelhante e, então, com toda fraternidade31 ou toda proximidade humana, com toda humanidade? Esse lugar do outro, não deve ser a-humano? Se é o caso, o a-humano, a figura, ao menos, de alguma divinanimalidade, em uma palavra, e ela era pressentida através do homem, seria o referente quasi transcendental, o fundamento excluído, forcluído, denegado, adestrado, sacrificado disso que ele funda, a saber, a ordem simbólica, a ordem humana, a lei, a justiça. Essa necessidade não age em segredo em Lévinas e em Lacan, que se cruzam, aliás, tão frequentemente, apesar de todas as diferenças do mundo? É uma das razões pelas quais é tão difícil manter um discurso da mestria ou da transcendência em relação ao animal e de pretender simultaneamente fazê-lo em nome de Deus, em nome do nome do Pai ou em nome da Lei. O Pai, a Lei, o Animal, etc., não devemos reconhecer neles, no fundo, a mesma coisa? Ou melhor, as figuras indissociáveis da mesma Coisa? Poderíamos aí conjugar a Mãe, isso não mudaria nada, sem dúvida. Nietzche e Kafka compreenderam-no talvez melhor que os filósofos ou teóricos, ao menos na tradição que tentamos analisar.
Bem entendido, uma vez mais, meu propósito não é, de início, objetar frontalmente a lógica desse discurso e do que ele engaja de Lacan na época dos Escritos (1966). Devo, no momento, deixar em suspenso a questão de saber se, nos textos que se seguiram ou nos seminários (publicados ou não, acessíveis ou inacessíveis) a armação dessa lógica foi explicitamente reexaminada. Sobretudo quando a distinção oposicional entre o imaginário e o simbólico, que formam a própria axiomática desse discurso sobre o animal, parece mais e mais abandonada, senão recusada por Lacan. Como sempre tento levar em conta a organização sistemática mais forte de um discurso sob a forma onde ela se parece em um momento relativamente determinável de seu processo. Distribuídos durante trinta anos, os diferentes textos reunidos em um só volume, e fortemente ligados entre si, os Escritos, dão a essa perspectiva um acesso e uma pista fiáveis. Entre os textos publicados e acessíveis que seguem os Escritos, será necessário em particular tentar seguir o trajeto que conduz de modo interessante, mas sem ruptura, creio, por exemplo, as análises do mimetismo animal, sempre do ponto de vista da visão, justamente, da imagem e do “se ver olhar”, mesmo por uma lata de sardinhas que não me vê (“De início, se há um sentido em que Petit-Jean me diga que a lata não me olha, é por que, em um certo sentido, assim mesmo, ela me olha. Ela me olha ao nível do ponto luminoso, onde tudo o que é me olha, e isso não é uma metáfora”32).
No lugar de objetar a essa argumentação, então, eu serei tentado a sublinhar que a fragilidade lógica e, logo, racional, de algumas dessas articulações deveria nos engajar a uma refundação geral de toda essa conceitualidade.
Parece difícil, em primeiro lugar, identificar ou determinar um limite, quer dizer um limiar indivisível entre fingir e fingir que finge. Aliás, mesmo supondo que esse limite seja conceitualmente acessível, o que não creio, restaria saber em nome de que saber ou de que testemunho (e um saber não é um testemunho) podemos declarar tranquilamente que o animal em geral é incapaz de fingir que finge. Lacan não invoca aqui nenhum saber etológico (cujo refinamento crescente e espetacular é proporcional ao refinamento do animot), nem alguma experiência, observação, atestação pessoal digna de fé. O estatuto da afirmação que recusa o fingimento do fingimento ao animal é de forma simples dogmática. Mas há sem dúvida uma motivação dissimulada nesse dogmatismo humanista ou antropocêntrico, é o sentimento, sem dúvida obscuro, mas irrecusável, de que é muito difícil, talvez impossível, de discernir entre o fingimento e o fingimento do fingimento, entre a aptidão ao fingimento e a aptidão a fingir que finge. Como distinguir, por exemplo, na exibição sexual mais elementar, entre o fingimento e o fingimento do fingimento? Se é impossível estabelecer aqui um critério, podemos concluir que todo fingimento do fingimento permanece um simples fingimento (animal, ou imaginário, diria Lacan) ou, ao contrário, e também possível, que todo fingimento, por simples que seja, se repete e se coloca indecidivelmente, na sua possibilidade, como fingimento do fingimento (humano ou simbólico, segundo Lacan). Como precisarei em um instante, uma sintomatologia (e certamente uma psicanálise) pode e deve sempre concluir pela possibilidade, para todo fingimento, de ser um fingimento do fingimento e para todo fingimento do fingimento de ser um simples fingimento, Precária torna-se, então, a distinção entre a mentira e o fingimento, como entre a Palavra e a Verdade (no sentido de Lacan) e tudo isso que ele pretende distinguir. O fingimento supõe a consideração do outro; ele supõe então, simultaneamente, o fingimento do fingimento – de um simples golpe suplementar do outro na estratégia do jogo. Essa suplementaridade está em andamento desde o primeiro fingimento. Lacan não pode, aliás, negar que o animal leve o outro em conta. No artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-1958), uma observação vai nesse sentido e gostaria de colocá-la em comutação, muito pacientemente: ao mesmo tempo em tensão, mesmo em contradição, com o discurso lacaniano sobre a captura imaginária do animal (assim privado do outro, em suma) e em harmonia com o discurso da patologia, o mal, a falta ou o defeito que marcam a relação ao outro como tal no homem, mas que se anunciam já no animal:
Para retomar a fórmula que tanto agradara a Freud na boca de Charcot, "isso não impede que exista" o Outro em seu lugar A.
Pois, retirem-no dali e o homem já nem sequer consegue sustentar-se na posição de Narciso. A anima, como que pelo efeito de um elástico, reduz-se ao animus, e o animus, ao animal, o qual, entre S e a, mantém com seu Umwelt "relações externas" sensivelmente mais estreitas do que as nossas, sem que se possa dizer, de resto, que sua relação com o Outro seja nula, mas apenas que ela não nos aparece de outro modo senão em esporádicos esboços de neurose33.
Dito de outra forma, o animal só se assemelha ao homem e entra em relação com o Outro (de modo mais fraco, e em razão de uma adaptação mais “estreita”, logo, como dizíamos mais acima, mais “fixa”, mais “cabeada” ao meio) na medida de sua doença, do defeito neurótico que o aproxima do homem, do homem como defeito do animal prematuro, ainda insuficientemente determinado. Se houvesse uma continuidade entre a ordem animal e a ordem humana, como entre a psicologia animal e a psicologia humana, ela seguiria essa linha do mal, do erro e do defeito. Lacan, aliás, se defendeu de manter uma descontinuidade entre as duas psicologias (animal e humana), ao menos enquanto psicologias.
Que ao menos esta digressão dissipe o mal-entendido a que teríamos dado ensejo em alguns: o de nos imputarem a doutrina de uma descontinuidade entre psicologia animal e psicologia humana, que está muito longe de nosso pensamento34
O que isso significa? Que a descontinuidade radical entre o animal e o homem, descontinuidade absoluta e indivisível que, no entanto, ele confirma e aprofunda não se destaca mais do psicológico enquanto tal, da anima e da psiquê, mas, precisamente, da aparição de uma outra ordem.
Por outro lado, uma indecidibilidade conceitual análoga (não digo idêntica) vem perturbar a oposição, tão decisiva para Lacan, entre deixar rastros (tracer) e apagar os rastros. O animal pode deixar rastros, inscrever ou deixar rastros, mas, acrescenta Lacan, ele “não apaga seus rastros, o que seria já para ele fazer-se sujeito do significante”. Ora, ainda aí, a supor que confiemos nessa distinção, Lacan não justifica nem por um testemunho, nem por um saber etológico a afirmação segundo a qual “o animal”, como ele diz, o animal em geral não apaga seus rastros. Outrossim, eu havia tentado mostrá-lo alhures (e é por isso que, há muito tempo, eu havia substituído o conceito de rastro àquele de significante), a estrutura do rastro supõe que deixar rastros transforma-se em apagar um rastro (sempre presente-ausente) da mesma forma que em imprimi-lo, muitas formas de práticas animais, por vezes, rituais, associam, por exemplo, na sepultura e no luto, a experiência do rastro àquela do apagamento do rastro. Um fingimento, então, e mesmo um simples fingimento, consiste a tornar ilegível ou imperceptível um rastro sensível. A simples substituição de um rastro por um outro, a marcação de sua diferença diacrítica na mais elementar inscrição, a que Lacan concede ao animal, como negar que ela comparta o apagamento assim como a impressão? É tão difícil de assinalar uma fronteira entre fingimento e fingimento do fingimento, de fazer passar uma linha indivisível no meio de um fingimento fingido como entre inscrição e apagamento do rastro.
Mas vamos mais longe, e ponhamos um tipo de questão eu teria gostado, se tivesse tempo, de generalizar. Não se trata apenas de perguntar se temos o direito de recusar tal ou tal poder ao animal (palavra, razão, experiência da morte, luto, cultura, instituição, técnica, vestimenta, mentira, fingimento do fingimento, apagamento do rastro, dom, riso, choro, respeito, etc. - a lista é necessariamente indefinida, e a mais potente tradição filosófica na qual vivemos recusou tudo isso ao “animal”). Trata-se também de se perguntar se o que se denomina homem tem o direito de atribuir com todo rigor ao homem, de se atribuir, então, o que ele recusa ao animal, e se há sempre conceito puro, rigoroso, indivisível, enquanto tal. Assim, mesmo supondo, concesso non dato, que o “animal” seja incapaz de apagar seus rastros, de que direito conceder esse poder ao homem, ao “sujeito do significante”? E, sobretudo, de um ponto de vista psicanalítico? Todo homem pode certamente ter consciência, no espaço da fenomenalidade dóxica, de apagar seus rastros. Mas quem julgará jamais da efetividade desse gesto? Há necessidade de lembrar, que todo rastro apagado, em consciência, pode deixar um rastro do seu apagamento cujo sintoma (individual ou social, histórico, político, etc.) poderá sempre assegurar o retorno? Há necessidade, sobretudo, de lembrá-lo a um psicanalista? E de lembrar que toda referência ao poder de apagar o rastro fala ainda a linguagem do eu consciente, talvez imaginário? (Pressentimos todas as consequências que se vexam aqui do lado da questão do nosso sujeito, autobiográfico).
Tudo isso não significará dizer (eu me expliquei longamente alhures) que o rastro é inapagável. Ao contrário. Pertence a um rastro sempre se apagar e sempre poder se apagar. Mas que ele se apague, que ele possa sempre se apagar, e desde o primeiro instante de sua inscrição, através e além do recalcamento, isso não significa que alguém, Deus, homem, ou animal, seja o sujeito mestre e possa dispor do poder de apagá-lo. Ao contrário. Desse ponto de vista, o homem não tem mais o poder de apagar seus rastros que o dito “animal”. De apagar radicalmente seus rastros, quer dizer, da mesma forma, de radicalmente destruir, negar, matar, talvez, matar-se.
Mas que não se conclua, sobretudo, que os rastros de um e de outro sejam inapagáveis – e que a morte ou a destruição sejam impossíveis. Os rastros (se) apagam, como tudo, mas pertence à estrutura do rastro que ele não esteja sob o poder de ninguém para apagá-lo ou, sobretudo, para “julgar” seu apagamento, ainda menos de um poder constitutivo assegurado de apagar, performativamente, o que se apaga. A distinção pode parecer sutil e frágil, mas essa sutil fragilidade afeta todas as oposições que estamos des-pistando, a começar por aquela do simbólico e do imaginário que mantém finalmente toda essa reinstituição antropocêntrica da superioridade da ordem humana sobre a ordem animal, da lei sobre o vivente, etc. lá onde essa forma sutil de falogocentrismo parece testemunhar à sua maneira do pânico que fala Freud: reação machucada não ao primeiro traumatismo da humanidade, o copernicano (a Terra gira em torno do sol) não ao terceiro traumatismo, o freudiano (o descentramento da consciência da perspectiva do inconsciente), mas ainda ao segudo traumatismo, o darwiniano.
Antes de nos distanciarmos provisoriamente do texto lacaniano, gostaria de situar uma tarefa e de dar um aviso.
A tarefa nos engajaria, a partir de tudo isso que nós havíamos aqui inscrito sob o signo do cogito cartesiano, a analisar de perto a referência de Lacan a Descartes. Como para a referência a Hegel, e frequentemente associada a esta, o apelo a Descartes, ao “eu penso” cartesiano, foi constante, determinante, complexo, diferenciado. Num conjunto rico e num processo amplo, um primeiro reparo nos seria imposto por nossa problemática. Ele se encontraria nos primeiros parágrafos que seguem imediatamente o parágrafo sobre a diferença entre o fingimento não fingido do animal e o fingimento fingido do homem capaz de apagar os rastros. Lacan aí reparte o elogio e a crítica.
Por um lado, o “cogito cartesiano não desconhece” o essencial, a saber, que a consciência da existência, o sum não lhe é imanente, mas transcendente, e, então, além da captura especular ou imaginária. Isso torna a confirmar que um cogito animal permaneceria cativo da imagem identificatória, situação que se poderia formalizar dizendo que o animal apenas acede ao eu para subtrair o eu, mas um eu que apenas acede propriamente ao significante depois de uma falta: o eu (animal) falta a falta. Lacan escreve, por exemplo:
O eu, a partir daí, é função de domínio, jogo de imponência, rivalidade constituída [tantos traços que não são recusados ao animal]. Na captura que sofre de sua natureza imaginária, ele mascara sua duplicidade, qual seja, que a consciência com que ele garante a si mesmo uma existência incontestável (ingenuidade que se espraia pela meditação de um Fénelon) não lhe é de modo algum imanente, mas transcendente, uma vez que se apoia no traço unário do ideal do eu (o que o cogito cartesiano não desconhece ). Donde o próprio ego transcendental se vê relativizado, implicado como está no desconhecimento em que se inauguram as identificações do eu35.
Mas, por outro lado, então, o ego cogito, se encontra desalojado de sua posição de sujeito central. Ele perde o controle, o poder central, ele devém sujeito assujeitado do significante.
O processo imaginário se dirige assim da imagem especular até a “constituição do eu sobre o caminho da subjetivação pelo significante”. Isso parece confirmar que o tornar-se-sujeito do eu passa pelo significante, a Palavra, a Verdade, etc., quer dizer, perdendo a transparência imediata, pela consciência como consciência de si idêntica a si. O que resulta apanas num resultado aparente: confirma-se o sujeito na eminência de seu poder subvertendo-o e reconduzindo-o à seu defeito, a saber, que a animalidade está do lado do eu consciente, enquanto que a humanidade do sujeito humano está do lado do inconsciente, da lei do significante, da Palavra, do fingimento figido, etc.:
A promoção da consciência como essencial ao sujeito, na sequela histórica do cogito cartesiano, é para nós a acentuação enganosa da transparência do Eu em ato, à custa da opacidade do significante que o determina, e o deslizamento pelo qual o Bewusstsein serve para cobrir a confusão do Selbst, vem justamente demonstrar, na Fenomenologia do espírito, o rigor de Hegel, a razão de seu erro36.
A acentuação da transparência é, assim, dita enganosa. Isso não significa apenas um “se enganar” da enganação, da mentira, da mentira a si como crença, do “fazer crer” na transparência do eu ou de si a si. Residiria aí o risco de uma interpretação tradicional do cogito cartesiano, talvez aquela da auto-interpretação do próprio Descartes, de sua autobiografia intelectual, nunca se sabe. De onde a promoção lacaniana do cogito e o diagnóstico da mentira, da enganação, e da transparência enganosa no coração do próprio cogito.
“O rigor de Hegel”, diz ele. Seria necessário seguir a interpretação proposta por Lacan da luta entre o Mestre e o Escravo, lá onde ela vem “decompor o equilíbrio do semelhante ao semelhante”. O mesmo motivo da “dialética alienante do Mestre e do Escravo” aparece em “Variantes do tratamento padrão” (1955): a especularidade animal, com suas atrações e suas aberrações, vem a “estruturar duravelmente o sujeito humano” em razão da prematuração do nascimento, “fato onde se apreende essa deiscência da harmonia natural, exigida por Hegel por ser a doença fecunda, o erro feliz da vida, onde o homem, se distinguindo da sua existência, descobre sua existência37”. A reinscrição da questão do animal, na nossa reinterpretação da reinterpretação de Hegel por Lacan, poderia situar-se no ponto onde este último introduz a evocação do imaginário, da “captura especular” e da “prematuração genérica do nascimento”, “perigo (…) ignorado por Hegel”. Ainda aí está em jogo a vida, Lacan o reforça e a passagem à ordem humana do sujeito além do imaginário animal, é bem uma questão de vida e morte:
A luta que a instaura é bem denominada como de puro prestígio [no que ela não é mais animal, segundo Lacan], e o desafio, pondo em jogo a vida, é adequado para fazer eco ao perigo da prematuração genérica do nascimento, ignorado por Hegel e do qual fizemos a mola dinâmica da captura especular38. (p.824)
Como entender a palavra “genérico”, que qualifica com tanta força o conceito insistente e determinante de “prematuração”, a saber, o acontecimento absoluto sem o qual todo esse discurso perderia sua “dinâmica”, o próprio Lacan o diz, a começar pela pertinência da distinção entre o imaginário e o simbólico? O “genérico”, é um traço do “gênero humano”, como gênero animal ou um traço do humano enquanto que ele escapa ao gênero, justamente, ao genérico, ao genético – pelo defeito, justamente, de um certa geração, mais que degenerescência, por uma de-generação da qual o próprio defeito engendra a “geração” simbólica, a relação entre as gerações, a lei do Nome do Pai, da Palavra, da Verdade, a Enganação, o fingimento fingido, o poder de apagar o rastro, etc.?
A partir dessa questão que nós deixamos em suspenso, como uma tarefa, lá onde, no entanto, ela procede dessa lógica tradicional do defeito originário, volto ao que anunciava como um último aviso, a saber, o que une toda essa colocação em perspectiva do defeito na história da falta originária, de um pecado original que encontra seu legado mítico no Édipo, depois, seulegado não mítico, seu legado científico no “complexo de castração”, tal qual foi formulado por Freud. Na passagem onde sublinharei a falta e o defeito, reencontramos todas as etapas do nosso trajeto, a Gênese, a serpente, a questão do Eu, e do quem “eu sou/sigo?” (ser e seguir), uma citação de O Esboço da serpente, de Valèry (“o universo é um defeito na pureza do Não-ser”), etc.:
É isso que falta ao sujeito para se pensar esgotado por seu cogito, ou seja, o que ele é de impensável. Mas, de onde provém esse ser que aparece como que faltando no mar dos nomes próprios? Não podemos perguntá-lo a esse sujeito na condição de [Eu]. Para saber disso, falta-lhe tudo, uma vez que se esse sujeito, [Eu], estava morto, como dissemos, ele não saberia. Ele não me sabe vivo, pois. Assim, como hei de me prová-lo [Eu]? Pois, a rigor, posso provar ao Outro que ele existe, não, é claro, com as provas da existência de Deus com que os séculos o matam, porém amando-o, solução fornecida pelo querigma cristão. Essa, aliás, é uma solução por demais precária para que sequer pensemos em fundamentar nela um desvio quanto ao que constitui nosso problema, qual seja: Que sou [Eu]? Sou no lugar de onde se vocifera que "o universo é uma falha na pureza do Não-Ser" . E não sem razão, porque, para se preservar, esse lugar faz o próprio Ser ansiar com impaciência. Chama-se o Gozo, e é aquele cuja falta tomaria vão o universo. Estarei eu, pois, encarregado dele? - Sim, sem dúvida. Esse gozo cuja falta toma o Outro inconsistente, será ele, então, o meu? A experiência prova que ele me é comumente proibido, e não apenas, como suporiam os imbecis, por um mau arranjo da sociedade, mas, diria eu, por culpa do Outro, se ele existisse: não existindo o Outro, só me resta imputar a culpa ao [Eu], isto é, acreditar naquilo a que a experiência nos conduz a todos, com Freud na dianteira: ao pecado original. Pois, ainda que não tivéssemos de Freud sua confissão, tão expressa quanto desolada, persistiria o fato de que o mito - último a nascer na história - que devemos a sua pena não pode servir para nada além daquele da maçã maldita, exceto por aquilo que não entra em seu patrimônio de mito, pelo fato de que, sendo mais sucinto, ele é sensivelmente menos cretinizante.
Mas o que não é mito, e que Freud no entanto formulou tão logo formulou o Édipo, é o complexo de castração39.
1 DERRIDA, J. Et si l’animal repondait? In: L’animal que donc je suis. Paris, Gallimard, 2006.
2 Os sublinhados e grifos que acompanham o texto e as citações são provenientes do autor. As traduções das citações de Lacan seguem a tradução de Vera Ribeiro dos Escritos, a qual modificamos ligeiramente algumas passagens e expressões. As notas de rodapé são da autoria de Derrida, a menos que acompanhadas da sigla N.T. As referências que Derrida cita ao longo do texto pertencem a edição Seuil, 1996, dos Écris de Lacan. Traduzimos, nessas notas de rodapé, os títulos dos artigos de Lacan conforme sua tradução para o português, embora designando, quando se trata de uma referência feita por Derrida, o título original Écrits.
3 Em um momento anterior da conferência, e ao curso de uma leitura de Descartes, havia longamente desenvolvido o que chamarei aqui de a questão da resposta. E tinha definido a permanência hegemônica desse “cartesianismo” que domina o discurso e a prática da modernidade humana ou humanista – quanto ao animal. Do que a máquina programada, como o animal, seria incapaz, não é de emitir signos, mas, diz O Discurso do método (Quinta Parte), de “responder”. Como os animais, as máquinas que teriam os “órgãos e a figura exterior de um macaco (…) não poderiam utilizar palavras nem outros signos compondo-os, como fazemos para declarar aos outros nossos pensamentos. Pois podemos bem conceber que uma máquina seja feita de tal maneira que ela profira palavras, e mesmo que ela profiraalgumas a propósito das ações corporais que causarão alguma mudança em seus órgãos; como se a tocamos em algum lugar, que ela pergunte o que queremos lhe dizer; se, em uma outra, que ela grite quando a façamos mal e coisas semelhantes; mas não que ela as arranje diversamente para responder [sublinho] no sentido de tudo o que se dirá em sua presença, assim como os homens mais embrutecidos podem fazer”.
4Jacques Lacan, “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, em Écrits, Paris, le Seuil, 1996, p.807.
5Ibid, loc. cit. (N.A). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.821 (N.T)
6Id. “A direção do tratamento…”, em Ibid., p.628 (N.A). LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.591 (N.T).
7J. Lacan, “Posição do inconsciente”, emÉcrits, op.cit, p.834 (N.A). LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.843 (N.T).
8Id., “Formulações sobre a causalidade psíquica”, emibid, notadamente p.190-191.
9Ibid., p.189-191. Cf. também p.342, 345-346, 452.
10 Id., “O estádio do espelho”, em ibid., p.96.
11Id., “Variantes do tratamento padrão”, em ibid, p.354: “Pois convém meditar que não é apenas por uma assunção simbólica que a palavra constitui o ser do sujeito, mas que, pela lei da aliança, na qual a ordem humana distingue-se da natureza, a palavra determina, desde antes do nascimento, não apenas o status do sujeito, mas a vinda ao mundo de seu ser biológico” (N.A). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.356 (N.T.).
12Id., “O estádio do espelho”, em ibid., p.96. (Lacan sublinha).
13J. Lacan, “O estádio do espelho”, em Écrits, op. cit, p.97.
14Id., “Função do campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, em ibid., p.257 sq.
15Cf. Joëlle Proust, Comment l’esprit vient aux bêtes. Essai sur la répresentation. Paris, Gallimard, 1997, p.150. O mesmo autor faz tudo para que a própria palavra “resposta”, no caso do animal, não signifique outra coisa que uma reação programada, privada de toda responsabilidade ou mesmo de toda responsividade, se posso dizer, “intencional” – essa palavra sendo utilizada com uma imprudência, uma confiança, para não dizer uma grosseria fenomenológica que faz rir. À propósito da mosca-das-flores, inseto “programado para buscar fêmeas aplicando automaticamente uma trajetória de perseguição conforme a um certo algoritmo para interceptar o objeto perseguido”, Joëlle Proust cita Rute Millikan e comenta-a assim: “O que é interessante nesse tipo de resposta, é que ela é inflexivelmente provocada por certas características precisas do stimulus (aqui, seu tamanho e sua rapidez). O inseto não pode responder a outras características, ele não pode muito menos dispensar os alvos que manifestariam características incompatíveis com a função esperada. Ele não pode abandonar sua trajetória “percebendo” que não segue uma fêmea. Esse inseto parece não ter nenhum meio de avaliar a correção de suas próprias percepções. Parece, então, exatamente generoso atribuir a ele uma capacidade intencional propriamente dita. Ele responde a signos, mas esses signos não são característicos de estimulações próximas. Como o diz Millikan: ele segue uma “regra próxima”. Todavia, a resposta pré-cabeada tem por objetivo provocar a fecundação de uma mosca-da-flor fêmea, quer dizer, de um objeto existente no mundo…” (Ibid., p.228-229. Eu sublinho as palavras que, mais que outras, convidariam a uma leitura vigilante. A leitura crítica ou desconstrutiva, a que nós convidamos, buscaria menos a restituir ao animal ou a tal inseto os poderes que lhe são contestados (mesmo se isso parece, por vezes, possível), mas questionar-se se o mesmo tipo de análise não poderia pretender à mesma pertinência quanto ao homem, por exemplo, ao “cabeamento” de seu comportamento sexual e reprodutor. Etc.)
16 J. Lacan, “Função e campo da palavra…”, em Écrits, op. cit., p.297-298 (N.A). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.298.
17 Ibid, p.299-300. (Sublinho, salvo “meu desejo”, que Lacan sublinha).
18 J. Lacan “Função e campo da palavra…”, em Écrits, op. cit, p.300. (Lacan sublinha) (N.A). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.301. (N.T)
19 J. Lacan, “Subversão do sujeito…”, em Écrits, op. cit., p.807 (N.A). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.821 (N.T.).
20 Permito-me reenviar aqui a Aporias, Paris, Gallilée, 1966, notadamente entorno das páginas 70 e 132.
21 Lacan se explica numa nota importante do “Seminário sobre A carta roubada” (em Écrits, op., cit., p.22) sobre o uso original que ele faz aí da palavra “despistar”, para dizer, confundir as pistas apagando os rastros, des-pistar. Nessa nota, ele invoca, ao mesmo tempo, o famoso texto de Freud sobre o “o sentido antinômico de certas palavras, primitivas ou não”, a “retificação magistral” que Benveniste aporta a esse trecho, e a informação de Bloch e Wartburg, que datam de 1975, sobre o segundo emprego da palavra “despistar”. A questão do sentido antinômico de algumas palavras “permanece totalmente”, precisa então Lacan, “aliberar em seu rigor da instância do significante”. Com efeito, serei tentado a acrescentar, sobretudo se, como é aqui o caso, colocamos à prova os axiomas de uma lógica dos significantes na sua dupla relação com a distinção entre ordem animal (captura do imaginário) e a ordem humana (acesso ao simbólico e ao significante), de um lado, e com um outro trabalho interpretativo da indecidibilidade, por outro lado. A suposta diferença entre deixar pistas e despistar ou, mais ainda, entre despistar (traçar ou seguir uma pista) e des-pistar (apagar uma pista e afastar voluntariamente o seguidor) reúne e cauciona toda a distinção entre o homem e o animal, segundo Lacan. Basta que essa distinção trema para que toda a axiomática se encontre minada, em seu próprio princípio. É isso que deveremos precisar.
22 J. Lacan, “Subversão do sujeito…” em Écrits, op., cit., p. 807. (Sou eu quem sublinha, bem entendido). Estudarei alhures um texto que, obedecendo à mesma lógica (“o instinto sexual […] cristalizado sobre uma relação […] imaginária”), notadamente a propósito do peixe esgana-gato e da “dança da copulação com a fêmea”, aborda a questão da morte, do estar já morto, e não apenas do ser-mortal do indivíduo, enquanto “tipo” da espécie: não os cavalos, mas o cavalo. Cf. Les écrits techniques de Freud, Paris, le Seuil, 1975, p.140-141.
23 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.821 (N.T).
24 “Pois, se o instinto significa efetivamente a incontestável animalidade do homem, não vemos por que esta seria mais dócil por estar encarnada num ser racional. A forma do adágio homo homini lupus é enganosa quanto a seu sentido, e Balthazar Gracian, num capítulo de seu Criticon, inventa uma fábula em que mostra o que quer dizer a tradição moralista ao exprimir que a ferocidade do homem em relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os animais, e que, ante a ameaça que ela representa para a natureza inteira, os próprios carniceiros recuam horrorizados. Mas essa própria crueldade implica a humanidade. É um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie”. (“Introdução teórica às funções da psicanálise na criminologia”, em Écrits, op., cit., p.147) (N.A). Cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p. 148 (N.T,).
25 Por exemplo, no “Seminário sobre A carta roubada”, em ibid., p.61.
26 “É a ordem simbólica que é constituinte para o sujeito, demonstrando-lhes numa história a determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante”, ibid, p.12 (N.A.). Cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.14 (N.T.).
27 Lacan, “Subversão do sujeito…” em Écrits, op., cit., p. 807-808. (N.A.) Cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.822 (N.T.)
28 Cf. “O fator da verdade”. A carta postal. De Sócrates a Freud e além. Paris, Flammarion, 1979.
29 Cf, por exemplo, Subversão do sujeito…” em Écrits, op., cit., p.818.
30 “Paz e proximidade”, em Emmanuel Lévinas, op., cit., p.345; citado e comentado em Adeus - a Emmanuel Lévinas, op., cit.
31 Quanto ao valor de “fraternidade”, tal qual tentei desconstruí-lo em sua tradição e autoridade (em Políticas de amizade, op.,cit.), um estudo deveria fazer também dar lhe crédito, em Lacan,e bem além da suspeita que pesa sobre os irmãos assassinos do pai segundo a lógica de Totem e Tabu. Em muitos lugares, Lacan sonha, com efeito, com uma outra fraternidade,por exemplo, nas suas últimas palavras de “A agressividade em psicanálise”: “...; é para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação à qual sempre somos por demais desiguais” (em Écrits, op., cit., p124) (N.A.). Cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.126).
32 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Paris, le Seuil, 1973, p.89. Cf., sobretudo, 70-71.
33 J. Lacan. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, em Écrits, op., cit., p.551 (N.A.). Cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.557 (N.T.).
34 Id., “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, em ibid, p.484 (N.A.). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.487 (N.T.).
35 Lacan, “Subversão do sujeito…” em Écrits, op., cit., p.809 (N.A.). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.823 (N.T.).
36Ibid, p.809-810 (N.A.). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.824 (N.T.).
37Id., “Variantes do tratamento-padrão”, em ibid., p.345.
38Id., “Subversão do sujeito…”, em ibid, p.810 (N.A.). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.824 (N.T.).
39 Lacan, “Subversão do sujeito…” em Écrits, op., cit., p.819-820 (N.A.). LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998; p.834 (N.T.).
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