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Filosofia do terreno : arte como combate

  • Martha Bernardo
  • 17 mai 2020
  • 6 min de lecture

O « terreno » aparece associado a um conjunto de produções artísticas de « vanguarda ». Por um lado, ele faz face e apresenta uma alternativa aos grandes modelos que orientaram a produção precedente : podemos citar, por exemplo, a ideia de « peça bem feita » de Racine, ou mesmo a tratadística da pintura que versa sobre os bons temas, a boa forma e as técnicas a seguir para a constituição de uma obra de arte. Em ruptura com esses quadros de referência, o terreno se abre como uma fonte de novas possibilidades no campo artístico, talvez mesmo como uma relação que revoluciona a compreensão do que chamamos « arte ». Por outro lado, a experiência empírica, por oposição aos grandes Textos, a vivência, o campo, conduzem  (como pensa Mario Perniola. Cf. PERNIOLA. Estética do século XX. Editorial Estampa: Lisboa, 1998) a uma « estética da vida », uma tentativa de fusão entre arte e vida, como seria o caso entre outros povos e em outros territórios. .

Se consideramos, por exemplo, as máscaras de Janco – feitas para serem portadas e não contempladas, para produzir no corpo um estado extracotidiano ou extático, as noites no Cabaré Voltaire, que eliminam não somente a divisão entre o espectador e o artistas, mas as noções de texto, de autor e de « objeto » (BÉHAR, H. Le théâtre dada et surréaliste. Gallimard: Paris, 1979); se pensamos, por exemplo, nas viagens de Gauguin ou Tristan Tzara ou na proximidade de certos surrealistas e as pesquisas de Marcel Mauss e, entre eles, Michel Leiria que se torna etnógrafo e escreve A África fantasma – onde ele propõe uma « etnografia de si ». (LERIS, M. L'âge d'hommeprécedé del'Afrique fantôme. Ed. La Pléiade/Gallimard: Paris, 2014) - ou Antonin Artaud, que parte ao México buscando uma nova forma de teatro entre os tarahumaras  (In: Les tarahumaras. ANTONIN, A. Oeuvres Complètes tome IX. Gallimard: Paris, 1979) – vemos desenhar-se toda uma cartografia que religa diferentes perspectivas sobre a « arte  »a esses territórios, o que Clifford chama escolas selvagens  (CLIFFORD,J.

Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011) . Então, trata-se bem de uma recusa do idealismo das formas que mobiliza a inquietude desses artistas em direção ao terreno, e que tem também por consequência uma transformação no pensamento artístico.


Certo, devemos nos interrogar sobre os limites dessa recepção, sobre o olhar que associa o outro (o negro, o indígena) aos modelos de beleza e virtude. O bom negro de Tristan Tzara em «  Nota 6 sobre a arte negra  ("Meu outro irmão é simplório e bom e ri. Ele come na África ou ao longo das ilhas oceânicas". In:Sic, nº21-22, sept-oct, 1917) , os tarahumaras en Artaud   a « Raça Princípio », a « civilização pré-corteziana », os « filósofos de nascença » (ARTAUD, A. ANTONIN, A. Oeuvres Complètes tome IX. Gallimard: Paris, 1979). Mas essa recepção é habitada por uma multiplicidade de fato difusa. Quando Alfred Jarry fala de antropofagia como uma das mais nobres virtudes do espírito – a assimilação do que achamos bom – não reconhecemos uma vitimização do outro, mas uma perspectiva crítica que se volta contra a « missão européia » na Nova Guiné ("Anthropophagie". IN: JARRY, A. Gestes. Édité par la biblioteque numérique romande:https://ebooks-bnr.com/ebooks/pdf4/jarry_gestes.pdf). Da mesma forma, a exaltação da « raça vermelha » em Artaud visa questionar uma certa importação do marxismo nos quadros da Revolução Mexicana que esquece a resistência secular indígena e que não considera, na sua opinião, essas formas de resistência já presentes : os numerosos textos de Mensagens revolucionárias/Cartas do México  (ARTAUD, A. Oeuvres Complètes VIII. Gallimard: Paris, 1980) falam dessa marginalização que lhe aparece como um novo colonialismo impensado nas aspirações revolucionárias.


Essa tentação ou exigência do terreno atravessa não somente a história da filosofia (particularmente da filosofia contemporânea : Foucault, Guatarri, Arendt) : a « Filosofia do terreno » propõe modos de trabalhar em comum e busca produzir formas de escapar ou de deslocar os discursos normalizados, ocultados ou deformados pelos mass mídia – e onde o estilo se revela como uma atitude e uma estratégia : reinsuflar (na arte) a vontade de agir (como a ecosofia guattarreana).


Essa « filosofia do terreno » foi também posta em questão, em certos aspectos, pelos estudos pós-coloniais. Assim, Vollaire lembra que, apesar da enorme contribuição de Foucault para a questão das prisões (não apenas à partir de sua obra, mas também das pesquisas do GMP), não vemos nos arquivos uma tomada de palavra pelos prisioneiros. De fato, a questão « quem fala ? » permanece central nos estudos que visam uma mudança de perspectiva ou olhar. Também a crítica ao etnocentrismo dos artistas do terreno (o caráter utópico ou mediador de suas intervenções) é hoje bastante problemático para uma parte da crítica de arte (Cf. "L'artiste comme ethnographe". In : FOSTER, H. Le retour du réel : situation actuelle de l'avant-garde. Bruxelles: La lettre volée.2006).


Do contrário, se consideramos o contexto sobre o qual esses discursos e essas práticas tem lugar, podemos tentar mensurar a partir de uma outra perspectiva, a distância que separa esses discursos dos discursos em curso. Um exemplo : a exposição colonial de 1931, na França. À partir de uma reconstituição e de uma pesquisa histórica, Daenickx (DAENICKX, D. Cannibale. Gallimard

: Paris, 1999.), descreve, de forma literária, a experiência de um habitante da Nova Caledônia, exposto, ao lado de outros animais, ao público. A exposição – descrita como um grande acontecimento – recebe um grande investimento do Estado e é frequentada pelas autoridades francesas e por milhares de curiosos. Aqui, a experiência que Clifford relaciona ao século XIX – aquela do exotismo, de uma experiência momentânea com o estrangeiro, o outro, o incompreensível, o frenesi dessa vivência – é mais que nunca atual. Vemos ainda o eco das teorias rascistas do século XVIII ou evolucionistas que traçam uma linha de separação entre o homem dito civilizado e o homem primitivo e que associam esse último à natureza, de modo a figurá-lo entre os animais no zoológico, para a apreciação dos espectadores.


Também as pesquisas científicas, a genética associada à antropologia biológica, recebem, no início do século XX, uma atenção crescente das políticas públicas e da propaganda. O discurso eugênico que visa o melhoramento e o progresso da civilização à partir de um contrôle genético – positivo : a seleção de caracteres desejados ; negativo : a eliminação de traços ruins – estabelece uma hierarquia perversa entre o bom modelo e a humanidade inferior condenada a desaparecer : a esterilização de homens imperfeitos, o abandono de crianças defeituosas à morte eram uma prática comum da medicina (documentário "Homo Sapiens 1900" -https://www.youtube.com/watch?v=TPSjjElIIZM&t=1s).


A distância entre o discurso institucional, as práticas sociais e o discurso e práticas dessas artistas é considerável. Mas as escolas selvagens servem também para marcar uma fronteira, um limite no que se considera a ação, o agir revolucionário – a crítica ao poder. A adesão do surrealismo ao Partido Comunistas a expulsão de vários membros pode indicar um exemplo dessa divisão.  Ao paradigma da revolução como horizonte e telos da ação revolucionária (e sua moral), opomos a existência de territórios como abertura de um espaço de diálogo, de práticas e de formas de conhecimento que podem ser orientadas em direção a um trabalho comum. A crítica ao artista de terreno ou, como diz Foster, ao artista-etnógrafo, torna sempre presente o risco do etnocentrismo. No entanto, considerando sempre o artista como um medium entre os excluídos, marginalizados e o público, corremos o risco de assumir uma posição semelhante àquela que considera que o « outro » é sempre « representado » ou « inventado » segundo os interesses de uma fantasmagórica subjetiva, como lembra Viveiros de Castros ("Uma notável reviravolta". In: CASTROS, V. Metafísicas Canibais : elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naif, 2015). A essa tese paternalista – onde o outro é apenas o fruto da imaginação ocidental (ou do artista-etnógrafo como medium), reduzindo o outro a um espelho do « nós-civilizados », ao narcisismo de ver sempre o Mesmo no Outro. Castros opõe o anti-narcisismo que vê nas trocas, na co-participação criadora, nas relações e aproximações com o outro, as transformações dos discursos e das práticas.

Nessa perspectiva, a questão posta ao artista de terreno seria, por exemplo : em que sentido ou como essas aproximações entre o artista e esses territórios se contaminam uns aos outros, servindo para mudar práticas artísticas e deslocá-las ? Em que medida, eles já produziram um questionamento das fronteiras – como é o caso da arte de vanguarda do início do século – e como dar lugar a novas ultrapasagens e dobras ?


 
 
 

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