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Os difusores do apocalipse:Uma leitura de De um tom apocalíptico adotado há pouco em filosofia de D

  • Martha Bernardo
  • 20 janv. 2022
  • 28 min de lecture
RESUMO:  Pensaremos a «morte da filosofia» e a «crítica do finalismo» em De um tom apocalíptico adotado há pouco em filosofia (1981) de Derrida, a partir de três pontos: 1) a «neutralidade do tom»: trata-se da articulção, na querela entre Kant e os mistagogos, entre o bom tom do discurso filosófico e seus desvios;  2)  «o filósofo e seu outro», aborda as exigências políticas e morais motivadoras do discurso desses dois oponentes; 3) «A crítica do finalismo e seus limites», expõe a tese de Derrida: o tom apocalíptico é um elemento não-filosófico transcende intrínseco ao discurso filosófico. Seguiremos o movimento da desconstrução, mostrando seus principais momentos, impasses e articulações, mas também rastros da reconstrução do discurso filosófico e sua estratégia: re-pensar as plasti-cidades entre razão-mito-poesia (contra o obscurantismo e o fascismo), através de uma crítica ao logocentrismo e à usurpação das potências racionais e míto-poéticas pelo discurso religioso.

ABSTRACT: We will think the ‘death of Philosophy’ and the ‘critique of finalism’ in Of an Apocalyptic Tone Recently Adopted in Philosophy (1981) by Derrida from three entry points: 1) the ‘neutrality of tone’ portrays the articulation of the good tone of the philosophical discourse and its deviations in the dispute between Kant and the mystagogues; 2)‘the philosopher and his Other’ addresses the political and moral demands which motivate the discourse of those two opponents; 3) ‘the critique of finalism and its limits’, sets out Derrida’s thesis: the apocalyptic tone is a non-philosophical transcendental element intrinsic to the philosophical discourse. We will follow the deconstructive movement, showing not only its most important moments, dilemmas and arguments, but also the traces of the reconstruction of the philosophical discourse and its strategy. We will re-think the plasti-cities of reason-myth-poetry (against obscurantism and fascism), criticizing logocentrism and the usurpation of the rational and mythopoetic potencies by the religious discourse.PALAVRAS-CHAVE: Derrida. Apocalipse. Finalismo. Kant. Religião. KEYWORDS: Derrida. Apocalypse. Finalisme. Kant. Religion.

Introdução

No instante em que o nome filosofia perde sua significação ou sua referência original [como sabedoria científica da vida (KANT, 2010, p.152)], esse nome, desde então vazio ou usurpado, esse pseudônimo ou criptônimo, que é de início um homônimo, os mistagogos dela se apropriam. (DERRIDA, 2005, p.24)1	De um tom apocalíptico adotado há pouco em filosofia (1981) é uma travessia em torno do elemento apocalíptico que ronda todo discurso, seja o discurso racional de Kant, seja o discurso místico dos mistagogos. Esse elemento apocalíptico é o «fim» do discurso, tanto no sentido teleológico de finalidade (seus objetivos, que podem sempre ser apropriados para outros fins), como no sentido de fechamento (clôture) ou fim da história. Estranha propriedade do discurso, que nele injeta seu outro, seu impróprio: sua morte. Multidão e expansão contínuas dos fantasmas apocalípticos ao longo dos tempos. Essa travessia não tem apenas um caráter histórico (ancorado na materialidade do texto e na interpretação dos acontecimentos, contra aqueles que defendem uma a-historicidade da desconstrução): ela põe a questão da genealogia das intenções que percorrem esses discursos (histórias, como crítica da subjetividade, que assombram o presente e imantam o futuro). Mas, sobretudo, de temporalidade: tempo cronológico de um progresso do conhecimento ou co-existência de espectros? Historicamente, a filosofia paulatinamente teria se desembaraçado da poesia e do mito, constituindo um território à parte, interno, que seria o plano racional filosófico –  aquele, sobretudo, dos conceitos. Mas seria possível isolar o elemento racional do mito e da poesia, como queria Kant? Em que medida a razão, no filósofo alemão, assume ela própria as feições de um mito (a crença na razão)? O que acontece à razão quando submetida a esses elementos (o mito e a poesia)? Se a estetização do discurso, por parte dos mistagogos, aporta novos elementos de linguagem ao discurso filosófico, que não se pode ignorar, quais os efeitos políticos e sociais de uma tal transformação? Se se trata de acolher os mistagogos na cidade filosófica, até onde aliar-se a eles?	

Para encaminhar essas questões, Derrida nos apresenta uma cena: a querela entre Kant e os mistagogos. Os mistagogos sustentam um discurso apocalíptico, um discurso do fim do homem e da filosofia (enquanto término). A mistagogia é iniciação aos mistérios da religião, da magia e do ocultismo. A época dos mistagogos é, para Kant, uma época de decadência que se abate sobre a filosofia, com a perda do seu sentido original, onde a filosofia seria igual a ela mesma, à sua essência e a seus fins. Os mistagogos – como Schlossser, que publicara as Cartas de Platão – não defendiam apenas um Platão místico e esotérico, mas também um Aristóteles, pai da filosofia, como aquele que lhe havia dado sua forma final. É por essa autoridade, por esse entronamento que eles concedem a Aristóteles, que Kant os chamará, como lembra Derrida, de «monarquistas disfarçados». Os mistagogos vêem em Aristóteles a expressão final da filosofia: «há já dois mil anos que está acabada a filosofia», dizia um discípulo de Schlosser. Derrida cita Leopold Stolberg, que escreve: «O estagirita fez tantas conquistas para a ciência que só deixou a seus sucessores bem poucas coisas notáveis sobre as quais pudessem espreitar» (DERRIDA, 2005, p.51). A transformação do sentido primeiro da filosofia teria desviado a circunscrição de sua tarefa: a vida racional. Ela devém o «pseudônimo» ou o «criptônimo» de outras empresas, como aquela dos mistagogos. Eles se apropriam, se nutrem de ideias filosóficas, utilizando-as para fins estrangeiros às filosofias às quais pertencem originalmente tais ideias. Kant escreve Sobre um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia (na tradução brasileira) contra os mistagogos. Assim, que dizer da emergência do tom apocalíptico, do discurso sobre o fim, no texto de Kant? 	Veremos que Derrida se aproxima da ideia de um dever imperativo, herdeiro da racionalidade das Luzes, mas também de uma certa estética, que consiste: 1) numa crítica da racionalidade, compreendida por Derrida como combate ao etno e ao logocentrismo; 2) na defesa de certa hospitalidade da razão, mesmo face aos perigos do obscurantismo na política, ou de sua fusão com a religião. É preciso lembrar, no entanto, que essa hospitalidade incondicional, na prática, é habitada por certa hostipitalidade, quer dizer, uma certa hostilidade. Por isso, apesar de introduzir o tema da amizade na política, Derrida foi um árduo defesor das lutas anti-coloniais (como na guerra da Argélia), defensor da Palestina contra as políticas de estado de Israel, crítico da política externa dos Estados Unidos e da relação da Europa com os migrantes, associou-se a Mandela na luta contra o apartheid etc. Isso ocorre por que, na relação com o Outro, apesar da incondicionalidade teórica  e quase-transcendental da hospitalidade, deve intervir um indescontrutível: a justiça. Assim, o discurso de Derrida não está condicionado apenas ao âmbito da linguagem (a revolução discursiva é uma chave de leitura), mas pela exigência de uma prática ético-política no mundo. 	Essa crítica da razão, que parodia o gesto kantiano, é sinônimo de acolhimento pela razão: não se trata, para Derrida, de simplesmente excluir os mistagogos do campo da reflexão filosófica, mas de estabelecer um jogo de disseminações mútuas entre a filosofia e a religião (na medida em que nela encontramos grandes Textos que orientam as relações humanas e a política, dos quais a filosofia não pode simplesmente furtar-se). A filosofia se vê, assim, ameaçada, em sua interioridade: suas fronteiras se diluem no contato com esse outro ameaçador.	A acusação de Kant contra os mistagogos é causada pelo medo face à morte da filosofia e pela defesa de valores republicanos – como a igualdade e a justiça, que pressupõem uma certa racionalidade comum – contra a autoridade dos fundadores e o acabamento da filosofia disseminados pelos mistagogos. Derrida, apesar de propagar esse diálogo com a religião, defende uma certa resistência contra as potências não-democráticas (o fanatismo e o dogmatismo) presentes nesse outro discurso: a exigência do espírito crítico, a manutenção do questionamento, a crítica à idolatria, entre outros. 	

Finalmente, longe dos mistagogos e de Kant, o fim da filosofia (suas mortes contínuas) tem também o sentido de uma transfiguração. Derrida lembra que Nietzsche, Hegel e Marx propuseram filosofias escatológicas como imantações do porvir (e não apenas como desfecho ou fim dos tempos). O próprio Derrida fala em fim do falogocentrismo. Podemos escapar ao reino dos fins? A resposta de Derrida é que não, pois há sempre um limite na crítica do finalismo, já que ele é uma condição transcendental de todo discurso – questões que detalharemos a seguir.
  	
1. A neutralidade do tom

O sonho ou o ideal do discurso filosófico, da alocução filosófica e do escrito que  deveria representá-la, não é de tornar a diferença tonal inaudível e, com ela, todo um desejo, um afeto ou uma cena que trabalham o conceito em contrabando? A neutralidade ou, ao menos, a serenidade imperturbável que deve acompanhar a relação com a verdade e com o universal, o discurso filosófico deve garanti-las também pelo que chamamos a neutralidade do tom (DERRIDA, 2005, p.18).	O sonho ou o desejo da alocução filosófica é de representar, domesticar e interiorizar as margens que lhe escapam. Derrida, como filósofo, fez a experiência de portar diferenças que nem sempre foram bem aceitas: seja no episódio da Tchecoslováquia, onde foi preso (1981), diz ele, por «tráfico de ideias», seja na sua recepção em alguns meios filosóficos: pelos franceses, como conta Searle, onde Foucault o chamava de «obscurantista terrorista», ou nos Estados Unidos, com John Ellis, que escreveu «Against deconstruction». Assim, se podemos delinear pontos de proximidade entre Derrida e Kant, não podemos excluir essa afinidade entre o filósofo argelino e os mistagogos. Além disso, se o discurso filósofico pretende garantir certa neutralidade da escrita, Derrida é conhecido como o filósofo do performativo, da experimentação no estilo e, justamente, pelos tons que ele tenta inserir num meio sem voz que é a escrita, embora se possa falar de um certo tom do discurso. Diante disso, no seu face-a-face com Kant, a intenção de Derrida é de parodiá-lo, deformar sua obra, deportá-la  (DERRIDA, 2005, p.17). 	A paródia é uma imitação burlesca (de uma obra séria), oposicão ridícula, caricatura, travestimento. Além do movimento apocalíptico baseado, segundo a tradução de Chouraqui (DERRIDA, 2005, p.9), no desvelamento, na descoberta, Derrida se aproxima do mascaramento, do mômo. Essa ridicularização de Kant – filósofo seríssimo – produz uma deformação na sua obra: a forma da exposição não obedece, assim, à rígida arquitetônica kantiana, mas joga com seus fundamentos (a razão). Mais que isso, Derrida quer deportar Kant. Que significa deportar Kant do território da filosofia? Cremos que se trata de reenviá-lo de volta «às origens» (khora): lá, onde a razão se confunde com o mito e a poesia.  	Assim, uma questão que atravessa o texto é aquela da presença de elementos não-filosóficos no texto filosófico. Derrida não considera o tom como um critério filosófico (ele o adota, portanto, em seus textos, enquanto elemento não propriamente filosófico, no sentido de pertencimento à história da filosofia) e questiona sua adoção por Kant, justamente, o filósofo da razão pura. Para Derrida, os elementos não-filosóficos fazem parte do texto filosófico. Para Kant, ao contrário, a promessa de neutralidade equivale a uma vigilância constante e à expulsão dos elementos não-filosóficos: «E se nos fizeram a promessa, não nos engajaríamos a retirar todos os rastros que num corpus não são ainda ou não são mais filosóficos, todos os desvios indesejáveis em relação à norma tonal da alocução filosófica?» (DERRIDA, 2005, p.19) – escreve Derrida, disfarçado de Kant.	

A questão do tom se camufla na do apocalipse. Se o apocalipse é um desvelamento – significação que segue, de perto, a etimologia da palavra «apocalipse» –, o tom é qualquer coisa que permanece velada num texto filosófico, pois ele é uma qualidade da voz ou uma certa maneira de escrever. Ele se opõe à pureza do logos, à voz ordenadora e classificatória da razão. O que explica a dificuldade inicial em abordar o tema do tom em Kant: o tom não é, de início, um critério filosófico, como sugerimos, pois ele não concerne ao objeto ou ao conteúdo, escreve Derrida, senão como isolar um tom, como marcar um tom, uma mudança ou uma ruptura de tom? Como reconhecer uma diferença tonal no mesmo corpus? Essa dificuldade é uma dificuldade inicial, pois torna-se claro que o propósito de Kant não é «analisar o fenômeno puro de uma tonalidade» (DERRIDA, 2005, p.19). Veremos que a crítica de Kant esconde valores propriamente políticos. Segundo Derrida,Ele [Kant] analisa menos um tom em filosofia que denuncia uma maneira de se dar ares; ora, é uma maneira ou um maneirismo que, precisamente, não lhe parecem de muito bom tom em filosofia, e que marcam, então, já um desvio em relação à norma do discurso filosófico. Mais gravemente, ele ataca um tom que anuncia algo como a morte da filosofia (DERRIDA, 2005, p.19) (grifos do autor).	Os mistagogos são o exemplo do que foge à norma do discurso filosófico, desvio que, para Kant, transmuda-se em ameaça fatal para a filosofia: morte pela religião, pela proximidade com a revelação. A iluminação promete um «suplemento, um substituto do objeto conhecível» (DERRIDA, 2005, p.20). A partir desta observação, somos conduzidos, então, a pensar o tom apocalíptico como suplemento, uma potência do fora, do exterior, subjacente ao discurso filosófico. O suplemento guarda uma afinidade com o paradoxo: ele se ajunta, por vezes, substitui, mas permanece estrangeiro, diferente daquele ao qual se agrega. Para Derrida, é nesse jogo entre o dentro da filosofia e seu fora, suas margens, que é interessante escrever. O filósofo é esse contrabandista de pensamentos, que ele recolhe em toda parte e ao longo dos tempos. É nesse sentido que Derrida – mas também outro filósofo, seu amigo, Levinas – importa e exporta «clandestinamente» (ou seja, fora de uma normativa do tipo kantiana) elementos da tradição judaica e cristã para a tradição grega que é a filosofia (ao menos, na opinião de um Husserl ou de um Heidegger) e vice-versa. Para Kant, ao contrário, o suplemento anuncia qualquer coisa que visa a  ultrapassar a filosofia, o que, no caso dos mistagogos, seria a visão e a iluminação místicas.   	

A diferença tonal é então expulsa do campo filosófico por Kant (imagem que nos lembra o gesto drástico de Sócrates na República, o da expulsão de certos artistas em prol do bem comum, embora seja forçoso reconhecer que, assim como Platão pratica formas literárias (a carta e o diálogo), a estética também tenha um papel fundamental na filosofia de Kant2). Apenas no seu confronto com Habermas, décadas depois, Derrida buscará esses aspectos menores da filosofia kantiana. Em 1981, trata-se de pensar o critério moral que regula essa estética. Para Derrida, a diferença tonal possui singularidades (afetos, desejos, outras cenas) que não somente são importantes para o discurso filosófico, mas são inseparáveis dele. O exemplo desta última afirmação é o próprio Kant. Seu discurso pretensamente neutro sobre o tom correto a adotar em filosofia é marcado por um tom satírico. A escritura satírica critica o que ela toma por objeto, debochando, para produzir uma reação de recusa ou de rejeição em seus leitores. Como veremos agora, as motivações de Kant são políticas.

2. O filósofo e seu outro	

Para Derrida, a determinação do bom tom em Kant obedece a uma crítica social com critérios propriamente políticos - ela não visa à estética ou à música como sugerem as significações da palavra «tom».  O fato está longe de ser insignificante, a primeira vez que um filósofo fala do tom de outros que se dizem filósofos, quando ele inaugura o tema e o nome em seu título mesmo [lembramos que o opúsculo de Kant tem por título Sobre um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia], é para se assustar e se indignar ante a morte da filosofia. Ele faz passar em julgamento aqueles que, pelo tom que assumem e o ar que se dão, no momento de dizer certas coisas, colocam a filosofia em perigo de morte e anunciam à filosofia ou aos filosófos a iminência de seu fim (DERRIDA, 2005, p.21).		

Kant inaugura a temática do tom como critério de julgamento filosófico - não para produzir uma abertura da norma tonal - mas para condenar aqueles que se desviam do bom tom.  Essas derivas não são concebidas como outras figuras da racionalidade, sinônimos da diversidade de pensamento e de suas formas de aparição. Assim, os mongóis e os árabes (à semelhança do que se dizia e ainda se diz dos ameríndios) têm algo em comum, escreve Kant, com os monges e os alquimistas: eles não gostam de trabalhar – agem, portanto, como senhores (KANT, 2010, p.153). Enquanto os filósofos, homens comuns, dispendiam árduos esforços para realizar pequenos avanços, estes outros são movidos por uma intensa preguiça intelectual, a qual dão o nome de intuição, considerando-se o supra-sumo da humanidade (por egoísmo e vaidade), a ponto de darem ouvidos apenas ao oráculo no interior de si mesmos para apropriar-se da sabedoria, argumenta o filósofo de Königsberg. Ao trabalho hercúleo do filósofo, eles opõem o sobrevôo apoteótico da águia. 	Agindo fora da razão, de sua suposta neutralidade, os mistagogos devem, segundo Kant, ser motivados por um interesse não-filosófico. Derrida se pergunta em vista de quais fins querem eles vir com essas proclamações calorosas sobre o fim. Eles querem atrair, seduzir, conduzir em direção ao mistério e pelo mistério.

 Mystagogein, é bem isso: conduzir, iniciar ao mistério, é a função do mistagogo ou do padre iniciador. Essa função agógica de condutor de homens, de duce, de Führer, de líder, situa-o acima da massa, que ele manipula por intermédio de um pequeno número de adeptos reunidos numa seita em linguagem criptografada, um bando, um séquito ou um pequeno partido com suas práticas ritualizadas (DERRIDA, 2005, p.27) (grifos do autor).	A crítica de Kant contra os mistagogos é a da mistificação, da substituição da razão pelo mistério. Os mistagogos se aproximam, na produção da mistificação das massas, dos grandes líderes nazistas ou fascistas, manipulando a multidão, parasitando a razão, substituindo o conceito pelo mistério, a capacidade organizadora e ordenadora da razão por uma sensibilidade em relação ao supra-sensível. Criam, assim, uma hierarquia sui generis, onde se colocam acima dos homens, desvalorizando seu instrumento comum de julgamento. Eles têm comportamentos de casta, com pequenos grupos organizados em torno deles, com sua linguagem codificada e seus rituais. É preciso ver nessa descrição dos mistagogos, não apenas o tom de Kant, mas também um certo eco de Derrida. Os mistagogos formam uma espécie de comunitarismo identitário que subsume as diferenças, em detrimento do mesmo (a experiência da revelação que decreta o fim do trabalho filosófico), podendo assumir formas perigosas (e que, poderíamos dizer, não são privilégio, nos dias atuais, apenas de uma (extrema) direita, mas também de uma certa esquerda). É preciso, pois, ter essas questões em mente na abordagem dos mistagogos. Derrida vê, portanto, com suspeição a abertura para esse Outro que pode produzir uma degeneração da democracia para regimes totalitários, autoritários, etc (de onde sua crítica contundente ao terrorismo como política, mesmo que esse terrorismo seja o estado-unidense). O uso do tom e a distorsão do sentido feitos pelos mistagogos assumem agora uma conotação estética e política. Segundo Kant, os mistagogos se autorizam a um salto mortal, um salto dos conceitos ao impensável ou ao irrepresentável, o que liberaria, escreve Derrida, uma superabundância poético-filosófica (DERRIDA, 1989, p.34).	Mesmo com esse risco que o movimento dos mistagogos traz consigo, Derrida não deixa de reconhecer neles o elemento poético-metafórico trabalhado em seus próprios escritos. Como sabemos, o tema do messianismo e da promessa também serão largamente desenvolvidos por Derrida, como o por vir de um impensável e de um irrepresentável, como um Outro que vem, ou que acontece e que, por isso, impede um fechamento da história, inscrevendo nela, ao contrário, uma pluralidade de histórias (onde poderíamos, inclusive, considerar o ponto de vista não-humano). Assim, é curioso notar que, por uma série de afastamentos e aproximações, seja em relação ao interior da filosofia (Kant) e ao seu fora (os mistagogos), Derrida vai, pouco a pouco, marcando sua posição singular, como herdeiro e traidor de ambos. 	Num registro completamente diferente, para Kant, a postura dos mistagogos é insustentável. Não só em termos políticos, mas teoricamente e praticamente: segundo sua fenomenologia (de φαινόμενον, o que se revela), não temos acesso à realidade noumenal, ao real em si (trazido pela revelação propriamente dita), mas somente às suas aparições, manifestações, aparências na forma da realidade fenomenal, que conhecemos através da elaboração de conceitos ou por uma intuição fundamentada. Os mistagogos produzem um salto mortal, pois querem chegar às coisas mesmas, abandonando o terreno da razão e da intuição que  o fenômeno «tal qual» ele aparece, bem como as etapas do conhecimento, em direção à vertigem da visão do que se furta à visão: «Em verdade não é possível penetrar o sol (o supra-sensível) com o olhar sem ficar cego» (KANT, 2010, p.162). Para Kant, não é possível ter um contato direto com a transcedência, com o que está além da experiência (no que, nos parece, ele segue uma certa tradição bíblica de Moisés a Gedeão), mas unicamente observar seus reflexos, quer dizer, a própria razão (como luz). Eles querem atingir a realidade noumenal e, para isso, desembaraçam-se dos critérios rigorosos de uma «verdadeira» pesquisa para se lançar numa deriva mito-poética oferecendo-nos, em realidade, apenas um «sol teatral» (KANT, 2010, p.162) . Já Derrida adota uma postura pós-fenomenológica: se não podemos ter acesso ao real em si, o Outro também não pode ser fenomenologizado, ele escapa aos conceitos que o entendimento formula para enquadrá-lo, limitá-lo, esquematizá-lo e, por isso, uma certa transcendência (a dita «quase-transcendentalidade») é associada a ele. Mesmo para  os que consideram certo pertencimento de Derrida à fenomenologia, esta deve ser compreendida, talvez ao modo de Husserl e Heidegger, como uma possibilidade (onde os conceitos não são considerados reais, embora não sejam também mera ficção. Derrida, de sua parte, fala em quase-conceitos como uma caixa de ferramentas – ou seja, um conceito não é eterno (embora ele espante), mas é uma determinação histórica, no sentido heideggeriano). Assim, Derrida busca desmarcar os mistagogos da fixidez da análise kantiana. E aí nos aproximamos do problema mais agudo do tom. Kant não ataca os verdadeiros aristocratas, [...] a distinção autêntica, somente aqueles que se apresentam ou se tomam por seres distintos, aos grandes ares desses pretensiosos que elevam a voz, aqueles que elevam o tom em filosofia. Kant não incrimina a altura do tom senhorial quando ela é justa, natural ou legítima. Ele visa a altura do tom, quando um esnobe nela se autoriza se dando ares e exibindo os signos usurpados de uma pertença social. A sátira visa então a mímica e não ao tom em si. Pois um tom pode ser mimicado, fingido, maqueado  (DERRIDA, 2005, p.29).	Não é o tom senhorial que é atacado diretamente por Kant, mas seu uso ilícito. Nesse sentido, ele se desvia da igualdade democrática. Platão, Aristóteles e outros, a aristocracia legítima da filosofia, permanece intocada. Seu problema é o da vulgarização da filosofia, deturpada pela massa, pela turba, pelo povo. Estranho cosmopolitismo o de Kant: a cidade dos filósofos adota um regime aristocrático. Esse poder, conferido ao panteão filosófico, em nada corresponde à proposta da desconstrução. Em seu caráter anárquico (pois desloca a arkhé em direção à khora), antinômico (pois não visa a uma síntese, segundo a lógica do senhor e do escravo, mas atravessa aporias), a desconstrução descontrói o poder (o visível, o sentido, o soberano, a Lei, a Palavra etc.): ela é contra o poder – para usar uma expressão de Antonin Artaud trabalhada por Derrida, é impoder (impouvoir). É nessa impotência criadora de dizer a verdade final (tarefa do poder) que ela desdobra suas intervenções. 	

Mas a preocupação e a saída de Kant é assegurar o sentido originário contra todo acidente em filosofia (DERRIDA, 2005, p.25). O acidente é o espaço aberto por uma série de tons que escapam à norma. Essa redução das diferenças, atribuido-lhes um sentido único, um Significante maior («os mistagogos são a morte da filosofia») revela sua indisposição ao Outro. A perspectiva de Kant permanece problemática para Derrida por que objetiva fazer a síntese filosófica do que está para além da circunscrição da filosofia (nos termos de Kant). Ela considera o outro a partir de seus próprios critérios já estabelecidos. É por isso que ela pode julgar a razão como superior ao mito e à poesia. Essa redução do sentido é reveladora, para Derrida, de uma verdadeira violência e opressão emanadas pela filosofia. 

Para Kant, os mistagogos cometem um crime «propriamente político» (DERRIDA, 2005, p.31): usurpar o tom senhorial de seu lugar legítimo. Os mistagogos seriam agitadores conservadores que impedem o progresso da razão, seu desenvolvimento. Contra eles, Kant defende uma espécie de polícia (KANT, 2010, p.166) encarregada de reconduzir às fronteiras e que deverá agir no plano simbólico para reprimir os que se dizem filosófos e os que os cercam:

Mais longe, Kant falará da «polícia do reino das ciência» [...]. Ela deverá reprimir – simbolicamente – não apenas os indivíduos que se conferem inapropriadamente o título de filósofos, se aproveitam e se revestem do tom senhorial em filosofia, mas aqueles que se aglomeram em torno deles; pois essa altivez com a qual se instalam sobre os cumes da metafísica, essa arrogância tagarela e contagiosa dá lugar a agregações, a congregações e a capelas (DERRIDA, 2005, p.31).	

Face ao crescimento do obscurantismo, a comunidade filosófica, científica, acadêmica, se desvia de sua tarefa primeira (o conhecimento) para defender (politicamente) a existência de seus campos de pesquisa. Sabemos, no entanto, que a universidade pode ser também, para Derrida, um lugar de manutenção de privilégios de certas formas de conhecimento. Por isso, a posição de Derrida face a essa proposição de Kant não é simples. De um lado, trata-se de conter a expansão dos mistagogos, re-direcionando a novidade problemática que eles introduzem (como a estetização do discurso) para a filosofia. Por outro lado, trata-se de parodiar o que Derrida chama a «polícia do saber» inaugurada por Kant, substituindo-a por um gesto de hospitalidade em relação aos mistagogos. Deportar Kant, para que este possa fazer a experiência do fora, dar direito de cidadania aos mistagogos e quem sabe contaminá-los com o discurso filosófico. 	O gesto de Derrida obedece à estratégia da desconstrução: não se trata de fazer uma oposição frontal, mas de seguir uma linha oblíqua. Essa obliquidade se apresenta na despolarização da discussão e na exploração de suas nuances, escolhas e perspectivas: «Os mistagogos da modernidade, segundo Kant, não nos dizem simplesmente que eles vêem, tocam ou sentem. Eles pressentem, eles antecipam, eles aproximam, eles farejam, eles são homens da iminência e do rastro» (DERRIDA, 2005, p.43). O que é uma crítica negativa em Kant transforma-se em elogio nas mãos de Derrida. Pare este, em certo sentido, o filósofo é um farejador de rastros, de impressões marcadas numa certa materialidade (como a escritura). Os mistagogos aprenderam a lição de Sócrates: eles se emanciparam da escrita. Por toda parte, eles deixam rastros, eles falam ao povo, recorrem à imagens, à modulações de voz, à visões; eles abusam da metáfora, das expressões figuradas para nos sensibilizar, para nos tornar pré-sensíveis a esse pressentimento (DERRIDA, 2005, p.44). Além disso, como afirma Araújo, os mistagogos não apenas «constatam a aproximação do fim», mas a «performam», «projetando-a em direção ao outro»  (ARAÚJO, 2015, p.93) (grifos do autor).Então, nossos mistagogos bricam de fantasma e de véu, eles substituem as evidências e as provas por «analogias» ou «semelhanças» […],  Kant os cita e nos toma por testemunha: vejam bem, esses não são verdadeiros filósofos, eles recorrem a esquemas poéticos. Tudo isso é literatura. Conhecemos bem essa cena hoje e é, entre outras coisas, sobre essa repetição que eu gostaria de chamar a atenção de vocês. Não para tomar parte, eu bem me conterei, entre a metáfora e o conceito, a mistagogia literária e a verdadeira filosofia, mas de início por reconhecer a velha solidariedade desses antagonistas ou protagonistas (DERRIDA, 2005, p.45).	Derrida lembra que a querela entre Kant e os mistagogos foi escolhida visando um problema atual e não por curiosidade histórica. Esse problema, o que é a filosofia – a determinação de seu sentido e de seus fins em relação ao seu outro (o não-filosófico) – atravessa a recepção da filosofia francesa – que pôs em questão uma série dessas significações – e, particularmente, da obra de Derrida, que foi recebida, em diversos meios, como literatura ou como ideologia, posições que a consideram como um free play textual, deixando escapar sua dimensão ético-política, presente desde seus primeiros escritos (e não apenas nos anos oitenta, com a dita virada ética). Essa passagem faz lembrar seu prefácio à Margens da filosofia (1972): a dificuldade em determinar um campo puramente filosófico, em definir seu dentro e fora (um fora que não é apenas um deserto despovoado, mas que traz questões para a filosofia, como a literatura ou a religião) e traçar precisamente a separação, o que exige um questionamento ético, ou, como dirá Jean-Luc Nancy em Os fins do homem, uma eticidade da ética, que pensa as condições de possibilidade de uma ética da alteridade. Finalmente, Derrida assume sua postura no debate: re-pensar as oposições entre o dentro e o fora da filosofia, retraçar as fronteiras, produzir uma democracia mais concreta na cidade filosófica (tarefa política). 	

3. A crítica do finalismo e seus limites

Levando em conta as múltiplas e profundas diferenças, talvez mutações, o Ocidente foi dominado por um potente programa que era também um contrato intransgressível entre os discursos sobre o fim. […] Será que todas as divergências não tomaram a forma de uma escalada [surenchère] na eloqüência escatológica, onde cada recém-chegado, mais lúcido que o outro, mais vigilante e mais pródigo, vem também ajuntar: eu lhes digo em verdade, não é apenas o fim disso, mas também e de início, daquilo, o fim da história, o fim da luta de classes, o fim da filosofia, a morte de Deus, o fim das religiões, o fim do cristianismo e da moral (essa, essa foi a ingenuidade mais grave), o fim do sujeito, o fim do homem, o fim do Ocidente, o fim do Édipo, o fim da terra, Apocalypse Now, eu lhes digo, no cataclismo, no fogo, no sangue, no seísmo fundamental, o napalm que desce do céu por helicópteros, como as prostitutas, e também o fim da literatura, o fim da pintura, a arte como coisa do passado, o fim da psicanálise, o fim da universidade, o fim do falocentrismo e do falogocentrismo, que sei eu ainda? (DERRIDA, 2005, p.58)	

A filosofia de Derrida questiona e combate o finalismo, apesar de reconhecer a existência de limites nessa crítica. Ao longo da história, essas finalidades mudaram segundo critérios diversos. Mas a linha comum de todas as tradições filosóficas do Ocidente é, para Derrida, a manutenção desse finalismo, como vimos na passagem acima, e que é constitutiva do que ele nomeia «metafísica onto-teo-teleológica» (como o próprio nome diz, o amálgama profundo entre ontologia, teologia e finalismo, onde uma das imagens mais recorrentes é a da semelhança entre o homem e Deus). A escatologia atravessa o discurso hegeliano, momento eterno de reapropriação da essência do homem pelo Espírito; o discurso marxista, que aponta para um fim da história com a passagem ao comunismo; a escatologia nietzscheana, através do fim do homem pelo além do homem, anunciado por Zaratustra. Mas as estratégias escatológicas de cada uma dessas filosofia é diferente, não podendo ser reduzidas a um só sentido. Por isso, o tema do fim evoca uma série de singularidades que envolvem o contexto de produção das obras, sua análise interna e sua recepção, que se furtam a um sentido final.	

A explosão dos discursos sobre o fim, listada por Derrida, mostra a atualidade e a presença dessa questão no debate contemporâneo. Hoje, como não pensar no finalismo do antropoceno (o fim do planeta Terra), nos radicalismos religiosos ou na indústria cinematográfica de filmes distópicos onde o fim do homem (talvez da vida) chega sem nenhum porvir? Mas o questionamento do finalismo coloca sempre em cena as intenções daquele que fala. Derrida se interroga sobre sua própria filosofia, orientada em direção ao fim do falogocentrismo e, portanto, vinculada de algum modo a essa metafísica ocidental, embora cada vez mais consciente desse pertencimento e forjando novas possibilidades discursivas. 	Mas essa crítica ao tom apocalíptico do finalismo esconde um aspecto menor e, de certa maneira, mais geral. Por que Derrida passa a associá-lo à própria escritura (mesmo aquela não declaradamente teleológica). Assim, uma das características do tom apocalíptico seria a qualidade de sua destinação. Os envios, a destinação são um tema caro à teoria da escritura de Derrida. Segundo essa hipótese, o texto devém areia, distanciando-se de seu emissário, da certeza do sentido originário e da verdade final. Os acontecimentos que cercam sua produção são esquecidos. Ele não tem uma trajetória previsível e sua língua, sua sintaxe, escapam-lhe. Assim, na sua estrutura mesma, o texto falta à sua destinação. É o destino do texto, sua destinerrância, que explode seu finalismo. O gênero apocalíptico leva apenas a destinerrância às últimas consequências.

Não sabemos (pois isso não é da ordem do saber) – escreve Derrida – a quem volta o envio apocalíptico, ele salta de um lugar de emissão a outro (e um lugar é sempre determinado à partir da emissão presumida), ele vai de uma destinação, de um nome e de um tom a outro, ele reenvia sempre ao nome e ao tom de um outro que está lá, mas tendo estado lá e devendo ainda vir, não estando mais ou ainda lá no presente da narrativa (DERRIDA, 2005, p.76).


	Para Derrida, quando não se sabe mais quem fala em uma narrativa ou a quem ela se destina, o texto torna-se apocalíptico. Sem origem nem fim certos, o tom apocalíptico aproxima-se do texto quando ele perde seu caráter unívoco. Um texto é sempre uma operação tensa de negociação, atravessada por linhas de forças divergentes, cuja redação é a história dos abandonos, restrições, surpresas. Intrínseca ao próprio discurso, essa potência apocalíptica (da ordem de um não-saber ou de um saber impossível, pois acontecimal) parece esquivar-se de uma abordagem unicamente racional, pois inclui séries de rastros e acasos. Assim, a tarefa de «desmistificação» encontra-se comprometida pela proliferação de espectros que emergem da materialidade dos textos e dos corpos. Além disso, Derrida lembra que os discursos propriamente apocalípticos, ao longo da história, nem sempre visaram ao caos social, mas foram muitas vezes meios de resistência para enganar a vigilância do Estado e fugir da censura (como teria sido o caso no império romano, ao que nós acrescentaríamos a produção cyberpunk dos anos 80). Por isso, a redução kantiana do tom apocalíptico revela, talvez, mais sobre os interesses de Kant do que desse gênero discursivo (se é possível reunir toda essa multipli-cidade sob esse guarda-chuva). Nesse sentido, Derrida escreve:Se de modo muito insuficiente [...] eu chamo a atenção de vocês para o envio narrativo, o entrelaçamento das vozes e dos envios na escritura ditada ou endereçada, é na hipótese ou no programa de uma desmistificação intratável do tom apocalíptico, no estilo das Luzes ou de uma Aufklärung do século XX, e se quisermos desmacarar as malícias, armadilhas, destrezas, seduções, máquinas de guerra e de prazer, breve, todos os interesses do tom apocalíptico hoje, seria necessário começar por respeitar essa desmultiplicação diferencial de vozes e de tons que os divisa para além, talvez, de uma pluralidade distinta e calculável. (DERRIDA, 2005, p.76)
		Seria preciso, começar a conhecer esse Outro da filosofia, lançando-se no seu elemento plural, imprevisível e incalculável. Lançar a razão num certo vaguear, numa navegação sem destino certo e portos já determinados.  Esse descobrir, essa descoberta, essa revelação que é o apocalipse não é, ao mesmo tempo, o próprio e o impróprio da filosofia, o Outro impensado, encoberto, não-dito que ela abriga em si ao longo de toda sua história e não diz também do caráter apocalíptico da desconstrução, na medida em que ela se dá como tarefa, imantá-lo?	O apocalipse não seria uma condição transcendental de todo discurso, de toda experiência mesmo, de toda marca ou de todo rastro? E o gênero dos escritos ditos «apocalípticos» em sentido estrito, seria então apenas um exemplo, uma revelação exemplar dessa estrutura transcendental. Nesse caso, se o apocalipse revela, ele é, de início, revelação do apocalipse, auto-apresentação da estrutura apocalíptica da linguagem, da escritura, da experiência da presença, seja do texto ou da marca em geral (DERRIDA, 2005, p.78) (grifo do autor).	O apocalipse é uma potência desestruturante que habita todo discurso. Ele se aclopa como um suplemento, como uma insistência fulgurante, apesar da vontade persistente de eliminá-lo, como uma estrutura transcendental, ao modo de uma arquitetura do relâmpago. Ele é o elemento não-filosófico presente em todo discurso filosófico. Como a filosofia se relaciona com esse elemento? Vimos que Kant pretendia instaurar uma polícia para vigiar os desvios da razão. Aqui, Derrida nos confronta com essa questão. Vamos finalmente admitir a presença do não-filosófico – estando dada a natureza própria de todo discurso e do discurso filosófico em particular – ou vamos continuar a bem delimitar as fronteiras entre filosofia e mito e poesia? Como não perder a combatividade em relação às formas mais degeneradas da mistagogia, como o nazismo e o facismo, nesse acolhimento? A conclusão do texto de Derrida é supreendente: finalmente, mascarado de filósofo e mistagogo, realizando essa fusão impossível (embora não total), parindo esse filho monstruoso (para lembrar de Deleuze) ele performa uma revelação exemplar: a estrutura transcendental do apocalipse é o quiasma onde o discurso filósofico e o discurso religioso (esses velhos antagonistas e protagonistas) se cruzam e se solidarizam num território comum. Não seria a produção desse território, tarefa política, uma via mais desejável que a guerra de extermínio?
	
	Conclusão
	
	Ora, todo ser humano encontra em sua razão a ideia do dever e estremece ao ouvir sua voz brônzea, se nele agitam-se inclinações que o tentam à desobediência contra ela. Ele está convencido que, ainda que todas as últimas conspirem unidas contra aquela, a majestade da lei, que a sua própria razão lhe prescreve, contudo tem de indubitavelmente prevalecer sobre todas elas e que, portanto, também sua vontade seja capaz de tal. Tudo isso pode e tem de ser representado ao ser humano, se não de modo cientifico, todavia nitidamente, para que esteja certo tanto da autoridade de sua razão auto-ordenadora, quanto de seus próprios mandamentos (KANT, 2010, p.165).	Chegamos, então, à intersecção entre razão e mistério. O ascetismo de Kant não se assemelha ao ascestismo religioso? O cristianismo ao qual ele era devoto não teria nada em comum com o desses pretensos filósofos, uma vez que seu conceito transcendental de Deus não é formulado à partir do pressuposto deste como fundamento de todas as coisas, nem a partir de um entendimento ou vontade de Deus, ideias que não poderíamos, segundo ele, alcançar racionalmente e que são, antes, antropomorfizações do divino. Para Kant, pela razão (não pela experiência), podemos nos fazer a ideia de uma vontade livre (Deus). Ele é fundamento não em si, mas para nós homens que supomos um entendimento do mundo. Ora, se não podemos conhecer objetivamente a natureza de Deus pela razão teórica, podemos fazer uma analogia (KANT, 2010, p.163) do que a razão elabora do divino em nossa conduta prática (onde intervém a razão prática). A filosofia ofereceria assim uma explicação racional para o conceito de Deus, distinta da explicação estética (sensível e intuitiva) do supra-sensível. É em nome de uma Aufklärung que Kant, por exemplo, empreende desmistificar o tom senhorial. Nos dias de hoje […] não podemos e não devemos, é uma lei e um destino, renunciar  à Aufklärung, dito de outra forma, ao que se impõe como o desejo enigmático da vigilância, da véspera lúcida, da elucidação, da crítica e da verdade, mas de uma verdade que, ao mesmo tempo, guarda em si o desejo apocalíptico, desta vez como desejo de claridade e de revelação, para desmitificar ou se vocês preferem, para desconstruir o próprio discurso apolítiptico e, com ele, tudo o que especula sobre a visão, a iminência do fim, a teofania, o advento, o julgamento final. Então, a cada vez, nós nos perguntamos intratavelmente onde querem chegar, e a quais fins, aqueles que declaram o fim disso ou daquilo  (DERRIDA, 2005, p.64).	Assim, se Derrida não descarta a herança das Luzes (mas a incorpora com certa desconfiança), ele chama atenção para o que Araújo denomina um desejo de verdade que se confunde com um desejo apocalíptico, de claridade e revelação (ARAÚJO, 2015, p.96), que podem dissimular um interesse ou uma intenção pessoais (longes da suposta neutralidade da investigação). Ironicamente, não partilham Kant e os mistagogos o território da fé, ainda que fosse preciso distinguir entre a fé racional do primeiro e a fé «sensível» dos segundos? Além disso, não se coadunam eles também numa certa morte da filosofia, numa visão de seu fim? Ou ainda, não haveria uma intenção religiosa em Kant em distinguir os verdadeiros fiéis dos hereges, na esteira de toda tradição filosófico-cristã?	Essa denúncia não exclui, entretanto, em Kant, uma tentativa de conciliação, em nome de uma certa civilidade. Ele escreve:Mas ora, para que toda essa disputa entre dois partidos, que no fundo têm um e o mesmo bom propósito, a saber, tornar os seres humanos sábios e probos? – Trata-se de um barulho por nada, de uma desunião por mal-entendido, na qual não se necessita nenhuma reconciliação, mas apenas um esclarecimento recíproco para concluir um acordo, que torna a harmonia para o futuro ainda mais íntima. (KANT, 2010, p.167)	E num verdadeiro gesto democrata, citando Fontenelle, ele escreve: «o Sr. N., não obstante, quer crer piamente no oráculo, ninguém pode impedi-lo» (KANT, 2010, p.169). O movimento crítico, portanto, encontra um freio na tolerância religiosa e na descoberta que tanto a filosofia como a religião têm uma mesma finalidade: a vida comum. Esse apocalipse final, essa descoberta, esse tirar do véu ao término do texto kantiano, também lhe confere um certo ato performativo (contra suas intenções, certamente, uma destinerrância apreendida por Derrida), um desfecho para a cena agônica que se tinha instaurado.  Apesar de Derrida não partilhar com Kant a ideia de uma paz perpétua, pois a relação com o outro envolve sempre uma certa violência (a violência da diferença, do que não sou eu), ele pensa a possibilidade de diminuição da intensidade de violência na vida social (pois a guerra não é pensada como fim em si – ao contrário, ela enfraquece a democracia  por produzir uma série de abusos – e exige, em algum momento, a tentativa de formulação de uma convivência comum). A questão seria, então, a seguinte: como garantir a democracia empregando um mínimo de violência? Em De um tom apocalíptico adotado há pouco em filosofia, delineia-se como possibilidade a tarefa de re-interpretação das narrativas religiosas (como o próprio Derrida o faz em inúmeros textos, como, por exemplo, Torres de Babel) bem como o abandono do caráter aristocrático da filosofia em direção à sua popularização (coisa a que Derrida também se dedica, participando intensamente da vida pública de alguns países, como a França). 	
	Essas duas formulações do «nós» (na linguagem de Kant, o filósofo e o mistagogo) co-habitam o espaço do texto de Derrida. Nossa intenção não foi de fazer uma síntese entre essas duas vozes ou de reduzir uma à outra. A posição de Derrida é mais sutil. Ele pensa as potências e os perigos de cada uma dessas tendências, suas misturas e plasti-cidades (com e contra Kant, com e contra os mistagogos), mostrando sua irredutibilidade e plurivocidade, que não impedem o pensamento da comunidade (contra o comunitarismo). Ele as aproxima, ao ponto em que não se pode mais simplesmente escolher entre a razão operando num outro nível que o mito e a poesia; e o mito da razão, ou sua poiesis. Derrida multiplica as vozes – através de dobras, torsões, forçagens – apresentando o impensado de cada uma delas e suas flores.	O fim de Derrida é o de desconstruir o pensamento tradicional do fim e substituí-lo pela promessa, que guarda qualquer coisa de um por vir, onde os fins são apenas sintoma de novos recomeçares (vida/morte, para utilizar um de seus quase-conceitos): a desconstrução da tradição logo-etnocentrista (marcada pelos conflitos de religião), a abertura de fronteiras (entre a filosofia e seus outros), a hospitalidade em relação à alteridade (que exige uma tarefa interminável de tradução), a exigência de democracia e outras pautas. 	
	
	
	Referências BibliográficasARAÚJO, Nabil. Do «viver» e do «morrer» nos estudos literários: Gayatri Spivak e a morte da literatura comparada como Aufhebung. Revista Remate de Males, v.35, n.1. 2015.CRÉPON, Marc; WORMS, Frédéric. Derrida, la tradition de la philosophie. Paris: Galilée, 2008.CRITCHLEY, S. The ethics of deconstruction. Edinbourgh: Edinbourgh University Press. 1999. DERRIDA, Jaques. D’un ton apocaliptique adopté naguère en philosophie. Paris: Galilée, 2005.KANT, Immanuel. Sobre um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia. Revista Studia Kantiana, v.8, n.10. 2010. LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Luc (org.). Les fins de l’homme: à partir du travail de Jacques Derrida. Paris: Hermann Éditeurs, 2013.

1 As traduções são nossas.

2 DELEUZE, G. La philosophie critique de Kant. Paris, PUF, 2015.

 
 
 

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