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Os fins do homem em Derrida: da desconstrução do humanismo a uma ética por vir

  • Martha Bernardo
  • 16 mai 2020
  • 61 min de lecture

Dernière mise à jour : 14 août 2020


RESUMO
Esse trabalho defende uma perspectiva, a da existência de uma ética nos primeiros escritos de Derrida. Dentre eles, selecionamos o texto Os fins do homem (1968). Nosso objetivo é de oferecer uma interpretação ou leitura desse texto, onde veremos surgir a paisagem intelectual na qual Derrida trabalha, particularmente sua crítica ao humanismo. À partir de desse texto, apresentaremos o diálogo de Derrida com Sartre e Heidegger sobre a formulação do «nós» no discurso filosófico. Quando um filósofo escreve «nós» ou «nós somos» e «nós devemos», a quem ele se refere? Que concepção de «nós – a humanidade» revela-se no emprego de um simples pronome pessoal? O «nós» envolve, uma relação, um comum com o outro, Veremos como essa questão engloba todo o problema do humanismo onto-teológico, que abordaremos, através da leitura de Derrida de O existencialismo é um humanismo de Sartre e Carta sobre o humanismo de Heidegger. A crítica violenta que este último dirige ao humanismo, como metafísica, não impede, no entanto, para Derrida, sua proximidade a ela, pela primazia dada ao questionamento do Ser. Veremos, em seguida, algumas estratégias pensadas por Derrida para sair desse impasse. Finalmente,  defenderemos a existência de um campo pré-ético, propulsor de um humanismo por vir, habitado por temas como a alteridade, o dever e a questão. Para isso, nós percorreremos a recepção de Derrida sobre o problema da ética, como os trabalhos de Simon Critchley e Jean Luc Nancy. O objetivo principal desse trabalho é de saber se é possível  ressaltar uma ética depois do trabalho de desconstrução do humanismo em Derrida (ao que nós respondemos «sim»).
Palavras-chave: Derrida; ética; humanismo; alteridade; dever

RÉSUMÉ

Ce travail défend une perspective, celle de l'existence d'une éthique dans les premiers écrits de Derrida. Parmi eux, on a sélectionné le texte Les fins de l'homme (1968). Notre objectif est d'offrir une interprétation ou lecture de ce texte, où on verra apparaître le paysage intellectuel dans laquelle Derrida travaille, particulièrement sa critique à l'humanisme. À partir de ce texte, nous allons présenter le dialogue de Derrida avec Sartre et Heidegger sur la formulation du «nous» dans le discours philosophique. Quand un philosophe écrit «nous» ou «nous sommes» et «nous devons», de qui parle-t-il? Quelle conception de «nous – l’humanité» se dévoile dans l'emploi d'un simple pronom personnel? Le «nous» enveloppe une relation, un commun avec l'autre. Nous allons voir comme cette question englobe tout le problème de l'humanisme ontothéologique, qu'on abordera à travers la lecture de Derrida de L'existentialisme est un humanisme de Sartre et Lettre sur l'humanisme de Heidegger. La critique violente que ce dernier à dirigé à l'humanisme, en tant que métaphysique, n'empêche pas, pourtant, pour Derrida, sa proximité avec elle, par la primauté donné au questionnement de l'Être. Nous allons voir, en suite, quelques stratégies pensées par Derrida pour sortir de cet impasse. Finalement, on défendra l'existence d'un champ pré-éthique propulsif d'un humanisme à venir, habité par des thèmes comme l’altérité, le devoir, la question. Ainsi, nous allons parcourir la réception de Derrida sur le problème de l'éthique, avec les travaux de Simon Crithley et Jean-Luc Nancy. L’enjeu principal de ce travail est de savoir s’il est possible de faire ressortir une éthique après le travail de déconstruction de l’humanisme et du finalisme chez Derrida (à quoi nous répondons «oui»).
Mots-clés: Derrida; éthique; humanisme; altérité, devoir


INTRODUÇÃO

	Nosso objetivo é oferecer, à partir de uma análise mais detalhada do texto Os fins do homem – escrito para o Colóquio Filosofia e Antropologia de 1968 – uma perspectiva ética sobre a obra de Derrida, abordando o problema do humanismo.
              Abordaremos, de início, o contexto em que se desdobra a escritura de Derrida. O problema é a elaboração de um «nós» que não passe pelos pressupostos onto-teo-teleológicos que informaram a tradição humanista. Essa tradição tende a definir o «nós» - em última instância, a humanidade – à partir de sua relação com Deus (ver, por exemplo, Petrarca, Marsílio Divino e Pico de la Mirandola) – o que produz sempre margens na humanidade (como foi o caso do debate precedente entre Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas à propósito da humanidade dos indígenas (evidentemente não cristãos), acusados de não possuir alma).  
                Tendo como solo de debate o humanismo na França contemporânea, Derrida considera a imagem do homem em Sartre como próxima daquela de Deus, evocando os célebres debates e discursos da primeira metade do século XV, onde os humanistas defendiam o papel intermediário e único do ser humano enquanto ser divino, por seu espírito, e enquanto ser corporal, com o poder de agir sobre a Criação. O homem de Sartre evoca o homem do humanismo, encarregado do contrôle e da dominação da natureza por sua liberdade.
	Derrida constata uma mudança de perspectiva, particularmente no trabalho de Foucault, As palavras e as coisas e na filosofia de Nietzsche.
                  Em Foucault, é o fundamento que sustenta a humanidade do homem desde Descartes (passando por Kant, Hegel e Husserl) – o «Eu», a «subjetividade moderna» - que é contestado face à emergência do fora na literatura moderna (Sade, Nietzsche, Artaud, Bataille etc.), em que se coloca a possibillidade de outras formas de subjetividade ou mesmo de um desaparecimento do sujeito. A ausência aparece como uma alternativa à presença. Ele considera que certas formas de pensamento (agrupadas por ele sob o título «pensamento do fora») foram marginalisadas em função da interiorização do sujeito moderno própria à cultura ocidental (inclusive o humanismo1). Apesar dessa explosão do fora – que contesta os pressupostos antropológicos do humanismo – Derrida não adere à tese de fazer uma filosofia do fora. Para ele, a desconstrução deve recusar o teologismo do humanismo, mas sem rejeitar a possibilidade de elaboração de um «nós» à partir de uma nova escritura. O problema de uma filosofia do fora é o de estabelecer uma larga descontinuidade em relação à tradição filosófica e aos seus sistemas que acabam por enquadrar as novas perspectivas em antigos modelos conceituais. A tarefa é, assim, dupla: desconstruir a tradição e produzir uma abertura ao fora.  
	A elaboração do «nós» é feita à partir de uma crítica do essencialismo e do finalismo. Os fins (o programa, o horizonte a esperar) sacrificam o questionamento, o contato e a experiência viva da alteridade. Aí, o dever se desfigura: ele se sacrifica pela Ideia. A finalidade é, em certo sentido, a morte da filosofia, uma vez que ela substitui o questionamento pelo dever.
	Nietzsche, Hegel, Marx propuseram filosofias escatológicas. Derrida mesmo fala do fim do falogocentrismo. Pode-se escapar ao reino dos fins? A resposta de Derrida é que não, pois há sempre um limite na crítica do finalismo. Veremos que o finalismo aparece como uma condição transcendental de todo discurso. O objetivo de Derrida é, então, desconstruir o pensamento tradicional do fim e, ao mesmo tempo, propor uma nova finalidade, baseada no conceito de democracia por vir (que se apóia fortemente no conceito de alteridade): a desconstrução da tradição, o fim do falogocentrismo e do etnocentrismo, a abertura de fronteiras, a hospitalidade em direção do outro, a exigência de democracia, entre outras pautas..
	Finalmente, nosso objetivo é propor, como chave de leitura, o problema ético. Consagraremo-nos a compreender os problemas que permeiam a formulação de uma ética derridiana. Seguindo Nancy, falaremos de um campo pré-ético, quer dizer, que questiona as condições de possibilidade de uma ética, na qual estão compreendidas as noções de alteridade, dever e questão. Através do trabalho de Critchley e Bernardo, veremos que a alteridade, o outro, é um objeto de reflexão comum a Levinas e Derrida, que permite sair do impasse de uma impossibilidade da ética nesse último, que, segundo Caputo, teria, em verdade, motivações heideggerianas. Com Nault, defendemos a ideia de que não é pertinente falar de uma viragem ética em Derrida, da perspectiva de nossa hipótese de trabalho (que segue nesse ponto Critchley, Nancy e Nault) que é que existe uma preocupação ética desde seus primeiros escritos, entre os quais destaca-se Violência  e metafísica. Trata-se de percorrer com os comentadores os conceitos e algumas noções centrais dessa ética: a alteridade, o dever, a questão.
  1. Quem, «nós»?

	Dividimos esse tópico em quatro partes. A primeira examina o contexto de escritura do texto Os fins do homem, sublinhando os principais acontecimentos políticos que o acompanham. Na segunda parte, trata-se de abordar os limites do conceito de «realidade humana», no pensamento de Sartre, tal qual é formulado por Derrida, que questiona a suposta neutralidade do discurso humanista sartreano na determinação da humanidade do homem. Esse questionamento revela uma proximidade, reforçada pelo próprio Derrida2, entre seu projeto e o projeto heideggeriano, exposto, por exemplo, na Carta sobre o humanismo, que é de fazer a crítica do humanismo como ontoteologia3. 
	À partir desse quadro, opondo Sartre a Heidegger, Derrida faz uma distinção entre dois momentos do humanismo: 1. A vaga francesa humanista e antropologista, com a «desfiguração» do pensamento de Hegel, Heidegger e Husserl; 2. O refluxo anti-humanista e anti-antropologista, que abandona enquanto fonte crítica os filósofos alemães mencionados. Para Derrida, o problema do anti-humanismo é que ele não engendra uma leitura mais rigorosa desses autores e os considera como fazendo já parte de uma metafísica humanista através de uma recepção mediatizada pelas interpretações francesas. A terceira parte aborda a elaboração do «nós» em Heidegger. Trata-se de mostrar que o Dasein não é mais o homem da tradição humanista. Mas, trata-se também de reconhecer a pertença do projeto heideggeriano ao humanismo quando ele formula que a humanidade do homem repousa no que há de mais próprio: sua essência. A quarta parte abordará a «estratégia da desconstrução»: como «ultrapassar» o caráter ontoteológico do humanismo?

Uma rápida digressão: as citações de Kant e Sartre que abrem o texto de Derrida põem o problema da finalidade do homem, de seus fins. Quanto a de Foucault, ela questiona o fim do humanismo (palavra que teria surgido no século XVIII, ao menos no sentido em que a compreendemos hoje). A primeira citação é do Fundamento da metafísica dos costumes de Kant:

Ora, digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente como fim. (DERRIDA, 1972; p.131)

	Kant considera o homem, problema fundamental4, um «ser racional» que é em si um organismo dotado de uma organização interna e de uma vontade que guardam em si o princípio de sua finalidade: a vida racional. O homem é, então, «seu próprio fim último» (KANT, 1993 p.41). Seu ato de nascimento está marcado pela afirmação do «Eu», à partir do qual «o egóísmo progride irresistivelmente» (KANT, 1993; p.53). O «nós» da humanidade surge, assim, em Kant, da formulação egoísta.
	A segunda citação é de Sartre, em O ser e o nada: «Ela [a ontologia] nos permitiu simplesmente determinar os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentais e o valor que a assombra» (DERRIDA, 1972; p.131). Assim, a ontologia fenomenológica de Sartre deve explicitar as estruturas do ser do existente à partir do ser tal qual ele aparece5.
	A terceira citação é de Foucault em As palavras e as coisas: «O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo» (DERRIDA; 1972, p.131). A pesquisa de Foucault examina a constituição do conceito «homem», sua emergência na modernidade e na constiuição das ciências humanas, seus limites («o pensamento do fora» é um exemplo), sua historicidade. É nesse sentido que Foucault pode prever um fim do homem, como um acabamento ou uma transformação das condições que permitiram a aparição das ciências humanas.
	Essas três citações marcam, assim, três momentos importantes no desenvolvimento da questão do homem.
 O contexto
	Três acontecimentos importantes marcam o ano da conferência escrita por Derrida: A Guerra do Vietnã, o assassinato de Martin Luther King, as revoltas de Maio em Paris.
	Nesse momento, a formulação de um «nós» que escape ao etnocentrismo ou, na linguagem de Derrida, ao falogocentrismo6, devém cada vez mais problemática. A questão da insurreição das margens ganha um novo sopro com a luta dos negros, dos estudantes, das mulhreres etc. A afirmação da universalidade do anthropos pelos direitos humanos torna-se um meio de combater as atrocidades e violações cometidas pelos Estados. De um lado, há, nos movimentos de descolonização, o questionamento da universidade do anthropos, considerado como um projeto local exercendo violência colonizadora. De outro, nos direitos do homem, a reafirmação de sua universalidade, fundada sobre princípios fundamentais (e notadamente específicos).
	O signo da presença desse humanismo nessa cena francesa contemporânea é, como mencionamos, o existencialismo sartreano, que convive com outras tendências humanistas, como as marxistas, cristãs e atéias. O humanismo havia sido descredibilizado com as duas grandes  guerras mundiais e a ascensão do nazismo e do fascismo. A emancipação, as luzes que deveriam ser portadas pela Razão, na qual grande parte do humanismo se apóia, não impediu os horrores da guerra, os campos de concentração, etc. Apesar de sua crítica às concepções tradicionais do humanismo, Sartre elabora uma fusão entre existencialismo e humanismo que se exprime na fórmula - «o existencialismo é um humanismo». O humanismo de Sartre é aquele da praxis, do engajamento, onde o indivíduo se joga no mundo para mudar a realidade.
	Derrida  escreve contra certos aspectos da filosofia de Sartre. Para ele, o pai do existencialismo substitui os conceitos de essência e de natureza pelo de «realidade humana». Conceito presente em Hegel e Kojève, a «realidade humana» está ligada, em Sartre, à uma busca do ser humano pela liberdade, projeto onde o homem é o ser que se projeta Deus. O segundo problema em Sartre é o fundamento egóico dessa experiência que os aproxima. 				***
	O Colóquio Filosofia e Antropologia visa uma mudança de terreno, mas uma certa continuidade com a tradição humanista permanece presente: a promessa de um elemento comum. Ora, é necessário questionar, abaixo desse «éter transparente», desse «elemento diáfano comum», a violência do Ocidente sobre as margens na reformulação histórica desse elemento universal. Além disso, é preciso considerar a existência desse impulso universalizate como meio de domesticar o que vem - o peso das margens sobre as fronteiras intra-filosóficas. De outro lado, como dialogar com as margens, como interiorizá-las sem perder sua singularidade, sem fazer desse movimento, um movimento etnocêntrico?
 	Tradicionalmente, esse «para-além das fronteiras filosóficas», é compreendido como uma miragem: um deserto, um terreno inculto, virgem. Derrida prefere, ao contrário, não considerar esse outro espaço (as margens)  como filosófico ou como inculto, mais como uma fonte visando o apagamento das distinções entre interior/exterior, dentro/fora7.

 O «nós» em Sartre
	O humanismo existencialista de Sartre aparece, segundo Derrida, como uma reação contra um certo humanismo considerado por ele como intelectualista ou espiritualista em Brunschvicg, Alain, Bergson, apoiando-se no conceito maior de «realidade humana», «tradução monstruosa de Corbin do Dasein hedeggeriano», escreve Derrida8 (DERRIDA, 1972; p.136).
	O projeto humanista sartreano e o conceito de realidade humana traduzem, segundo Derrida, o projeto de pensar sob um novo ângulo o sentido de homem, de sua humanidade, se desembaraçando de pressuposições que constituiam o conceito de unidade do homem (com suas heranças metafísicas e substancialistas). A ideia de uma «realidade humana                                                                                                                    9» aparentemente se distancia dessas heranças enquanto noção neutra e indeterminada. Segundo Cabestan10, trata-se de uma antropologia fenomenológica. Assim como Derrida, Cabestan pensa que essa antropologia depende de pressupostos ontológicos.

Sabemos de uma maneira geral da importância que Sartre concede à antropologia. Em uma intrevista dada em 1966, em resposta à questão: «a antropologia esposa todo campo filosófico?», Sartre sustenta «que o campo filosófico é o homem, quer dizer, que todo problema só pode ser concebido em relação ao homem». Com essa afirmação, Sartre se opõe nitidamente de Heidegger: para o autor de Ser e tempo, uma tal afirmação mostra o esquecimento do ser e, correlativamente, o desconhecimento do homem de seu próprio ser, quer dizer, o «antropologismo». No entanto, (…), a antropologia – não mais que a ética – não constituiriam para Sartre a filosofia primeira, e se uma antropologia é ainda possível é sempre e ainda à partir da ontologia (…) (CABESTAN, 2015; p.233)

	Para Derrida, o problema do projeto sartreano reside no estatuto ontológico do conceito de realidade humana: «apesar da neutralisação pretendida dos pressupostos metafísicos, é necessário reconhcer que a unidade do homem não é interrogada em si mesma» (DERRIDA, 1972 ; p.136). A realidade humana está enraizada no devir histórico e marcada por estruturas, em relação às quais o homem se libera para realizar a liberdade que o define. A unidade entre os homens devém possível através da unidade da realidade humana como fundamento e fim da reflexão. Fundamento, como nós vimos na passagem citada de Cabestan, onde o homem aparece como plano-de-fundo do pensamento; fim, pois a reflexão se confunde com uma promessa de homem e de humanidade. Apesar das discontinuidade e rupturas entre a antropologia sartreana e as antropologias clássicas, uma familiaridade metafísica não seria interrompida: «o nós do filosófo» se confunde com o «nós-homens», com «o nós no horizonte da humanidade» (DERRIDA, 1972 ; p.137). A partir do conceito de «realidade humna», Sartre pode esquecer o caráter subjetivo inseparável da determinação de fins, em nome do programa e, em certo sentido, engajar toda a humanidade nele. Mas não é apenas através do conceito de realidade humana que Sartre participa da onto-teo-teleologia. Um outro ponto em comum entre eles, é que o sentido do conceito de «homem» não é questionado, partindo antes de uma evidência, aparecendo como um dado: signo sem origem, sem limite histórico, cultural ou linguístico, sem limite metafísico11. Derrida se aproxima aqui de Foucaut, para quem a antropologia, que tem como objeto o homem, é uma produção moderna, historicamente localisada, inscrita numa visão científica e metafísica do mundo.
O que havia sido nomeado, de maneira pretensamente neutra e indeterminada, não era outra coisa que a unidade metafísica de homem e de Deus, a relação de homem a Deus, o projeto de se fazer Deus como projeto constituindo a realidade humana. O ateísmo não muda em nada essa estrutura fundamental. O exemplo da tentativa sartreana verifica memoravelmente essa proposição de Heidegger segundo a qual «todo humanismo permanece metafísica», a metafísica sendo o outro nome da ontoteologia  (DERRIDA, 1972; p.137).

	O existencialismo de Sartre seria uma antropologia metafísica, onde a figura de Deus não é simplesmente aquela das religiões mas aquela que religa o homem a uma totalidade pressuposta. Vemos aqui que a formulação do «nós» em Derrida não se confunde com a formulação de um programa a sustentar. A ação desconstrutiva visa desconstruir essas imagens do homem, não por uma perspectiva niilista, mas para repensar seu conceito à partir do fora, que não obedece a imagens pré-estabelecidas.

 O «nós» em Heidegger
	Heidegger, e mais particularmente sua analítica do Dasein, foi interpretado em termos antropológicos. A marca dessa leitura é a publicação de O ser e o nada, de Sartre, onde a antropologia existencialista é descrita como herança da hermenêutica heideggeriana e, particularmente, do conceito de Dasein. Contra o humanismo sartreano, Heidegger publica a Carta sobre o humanismo (1947), em que faz desse último o alvo contra o qual se dirige a «destruição» da metafísica ou da ontologia clássica.
	Heidegger não tem, como ponto de partida (como Sartre), o homem; mas o Ser. É por isso que o existencialismo não compreende o pensamento do ser em Heidegger, pois ele se mantém nos limites da relação sujeito-objeto, enquanto que, para Heidegger, a humanitas não é fundada sobre o sujeito (com efeito, em seu sentido etimológico, que remonta ao latim, humanitas designa um projeto educacional com a finalidade de tornar o homem humanos). «O pro-jeto em Heidegger, é o ser-jogado no ser, do qual o sujeito não é o produtor (…). A essência do homem repousa na verdade essencial em seu  por vir. O homem como Da-sein é o lugar desse advento, quer dizer, da manifestação do ser à partir do insondável»12. O humanismo é acusado por Heidegger de impor uma interpretação fixa do ente e, à partir dela, de dar um sentido à essência do homem. Antes de determinar a essência do homem, é necessário, para Heidegger colocar a questão da verdade do ser. O humanismo impediria que se possa colocar a a questão da relação entre a essência do ser e a essência do homem13. Por exemplo, a determinação do homem como animal racional repousa, para Heidegger, não na singularidade de sua essência mas na diferença entre os homens e os animais. Essa interpretação não é falsa, como o diz Heidegger, mas ela é condicionada metafisicamente (HEIDEGGER, M. Lettre sur l’humanisme; p.78). 14.
	Que dizer então, da formulação do «nós», por exemplo, na Carta sobre o humanismo? Sobre essa questão, Derrida escreve:
 Uma vez que se renunciou a colocar o «nós» na dimensão metafísica «nós-os-homens», uma vez que se renunciou a carregar o nós-homens de determinações metafísicas do próprio do homem (zôon logon ekon, etc.), resta que o homem – e eu direi mesmo, num sentido que se esclarecerá num instante, o próprio do homem -, o pensamento do próprio do homem é inseparável da questão ou da verdade do ser (DERRIDA, 1972; p. 148).

	O objetivo de Derrida é então de pôr em relevo a articulação que une o pensamento do ser e o pensamento da essência em Heidegger. Há aí, mesmo se o gesto de Heidegger marca um corte com a tradição, uma proximidade com o humanismo: a determinação do próprio do homem. O valor da propriedade é a continuidade entre o discurso metafísico e o discurso heideggeriano. Trata-se, dessa forma, de seguir uma dupla via: aquela que mostra a ruptura de Heidegger com a tradição; a que mostra as continuidades entre ele e a história da metafísica.
Pois de uma parte, a analítica existencial havia já transbordado o horizonte de uma antropologia filosófica: o Dasein não é simplesmente o homem da metafísica. E de outra parte, inversamente, na Carta sobre o humanismo e além, a imantação do «próprio do homem» não cessará de dirigir todos os caminhos dos pensamento. É ao menos o que eu queria sugerir, e reagruparei os efeitos ou índices dessa imantação sob o conceito geral de proximidade. É no jogo de uma certa proximidade, proximidade a si e proximidade ao ser, que vamos ver se constituir contra o humanismo e contra o antropologismo metafísicos, uma outra insistência do homem, liberando, relevando, substituindo o que ela destrói segundo vias nas quais nós estamos, das quais saímos penosamente – talvez – e que permanecem por interrogar.  (DERRIDA, 1979; p.148)

	O Dasein, aquele que questiona o que há de mais próximo, de mais próprio – o ser, é também aquele que guarda, pelo seu questionamento, a maior proximidade ao ser. Ele se abre ao ser. Essa dupla proximidade conduz a posição do «nós» no discurso quando Heidegger escreve que :  
Enquanto pesquisa (...), o ato de questionar tem necessidade de se deixar de antemão conduzir pelo que é pesquisado. O sentido de ser deve, então, de uma certa maneira, nos ser já disponível. Como foi indicado, nós nos movemos sempre já num entendimento do ser. É à partir dele que surge a questão expressa do sentido do ser e a tendência ao conceito de ser. Nós não sabemos o que ser quer dizer.  Mas desde que nós perguntamos «o que é o ser», nós nos mantemos num entendimento do «é», sem poder fixar conceitualmente o que «é» quer dizer (…) (DERRIDA, 1979; p.149)

	 O sentido do ser não está determinado antecipadamente, mas o «nós» o precede uma vez que é ele quem formula a questão. Derrida questiona a aparição do «nós» no discurso heideggeriano:
Evidentemente esse nós, tão simples, tão discreto, tão apagado que seja, inscreve a estrutura dita formal da questão do ser no horizonte da metafísica e mais largamente no meio linguístico indo-europeu à possibilidade do que está essencialmente ligada a origem da metafísica. É nesses limites que o factum pode ser entendido e creditado ; é nesses limites – determinados e, pois, materiais – que ele pode sustentar a dita formalidade da questão. Resta que o sentido desses «limites», não nos é dado que desde a questão do ser. (DERRIDA, 1979; p.149)

	Por que a análise de Heidegger reenvia à metafísica? Em primeiro lugar, vemos o triunfo da questão principal da metafísica  concernente ao sentido do ser, critério que define o «nós» (o questionar o sentido do ser). Em segundo lugar, vemos se desenhar o movimento universalisante, etnocêntrico, que Derrida identifica na metafísica moderna ocidental, uma vez que Heidegger submete a humanidade a uma tarefa única («sempre já»), fora da qual, ela não se reconheceria mais. Ao contrário, será que a «questão do ser» não é universal, mas localizada, quer dizer, reservada unicamete a determinadas línguas, como as línguas indo-européias – e indissociàvel de um projeto (civilizacional, linguístico, econômico)? Além disso, para Derrida, «a determinação desse ente exemplar é «fenomenológica» desde seu princípio» (DERRIDA, 1972; p.150). E o princípio fenomenológico que dirigirá a operação heideggeriana de determinação do Dasein, é a presença, «a presença na presença a si, tal como ela se manifesta ao ente e ao ente que nós somos»; «Nós, que sommes próximos de nós mesmos, nós nos interrogamos sobre o sentido do ser» (DERRIDA, 1972; p. 150). A presença é o valor supremo15 que guia a escolha do Dasein como ente exemplar, que o determaina como factum. Dessa forma, em Heidegger, a ontologia do Dasein ocupa o primeiro lugar em relação à antropologia:
Uma «ontologia completa do Dasein», é posta como a condição preliminar de uma «antropologia filosófica» (…). Vemos, então, que o Dasein, se ele não é o homem, não é, no entanto, outra coisa que o homem. Ele é (…) uma repetição da essência do homem permitindo retornar abaixo dos conceitos metafísicos da humanitas. É a sutilidade e o equilíbrio desse gesto que autorizaram evidentemente todos os esquerdismos antropologistas da leitura de Ser e tempo na França (DERRIDA, 1979; p.151).

	Explica-se na ambiguidade do gesto de Heidegger em relação ao humanismo, as reapropriações que surgiram na França. Quanto ao posicionamento político de Derrida – sua defesa de uma democracia por vir – trataremos ao longo desse trabalho.
A estratégia16  da desconstrução
O que se apaga talvez hoje, não é a segurança do próximo, essa co-pertença e essa co-propriedade do nome do homem e do nome do ser, tal qual ela habita e se habita ela mesma na língua do Ocidente, na sua oikonomia, tal que ela aí se embutiu, tal qual se inscreveu e se esqueceu segundo a história da metafísica, tal qual ela se acorda também para a destruição da ontoteologia? Mas esse apagamento – que não pode vir que de um certo fora – era já requisitado na estrutura mesma que ele solicita. Sua margem estava em seu corpo próprio marcado. No pensamento e na língua do ser, o fim do homem foi desde sempre prescrito e essa prescrição fez apenas modular o equívoco do fim, no jogo do telos e da morte. Na leitura desse jogo, podemos entender em todos esses sentidos   a série seguinte: o fim do homem é o pensamento do  ser, o fim do homem é o fim do pensamento do ser. O homem é desde dempre seu próprio fim, quer dizer, o fim de seu próprio. O ser é desde sempre seu próprio fim, quer dizer, o fim do seu próprio. (DERRIDA, 1972; p.161)

	A desconstrução mostrou como o «nós» empregado pelos filosófos – simples partícula – denuncia uma certa articulação com a metafísica onto-teológica, que buscamos explicitar nos casos de Sartre e Heidegger. Na passagem que citamos na abertura desse tópico, Derrida refere-se ao fora, ao que ultrapassa a racionalidade interna à filosofia e sua história, considerando-o como potência capaz de produz um estremecimento da narrativa humanista: ao invés do próprio, ele põe em cena também o impróprio do homem. Ele fornece um outro quadro linguístico com outras gramáticas, significações, injunções etc. Derrida sublinha alguns signos que aparecem como indícios da superação do humanismo ontoteológico na França: a redução do sentido17, a aposta estratégica, e a diferença entre o homem superior e o super-homem.
	Não é necessário insistir sobre a centralidade do conceito de estrutura entre os estruturalistas (Saussure, Lévo-Strauss, Jackbson, Lacan, Barthes, etc). Hjelmslev define a estrutura como uma «entidade de dependências internas». Para Saussure, a língua é relativa e opositiva – ela é um sistema – onde cada elemento só ganha sentido na sua relação e na sua oposição a outros elementos. Nesse texto de 1968, Derrida associa o estruturalismo a uma nova maneira de abordar a questão do homem, já que ele considera não apenas sua individualidade, mas também as «estruturas» que o atravessam. Assim, a atenção dada ao sistema e à estrutura na tradição «estruturalista» da metafísica não consiste nem em restaurar o motivo clássico do sistema e do sentido – quer dizer, a compreender, de um lado, o sistema como um conjunto de elementos interdependentes que formam um todo isolável ou como uma forma particular que visa englobar o real em sua totalidade ou, de outro lado, a compreender o sentido à partir de pressupostos subjetivos ou objetivos; nem a apagar e a destruir o sentido, optando por uma espécie de irracionalismo. Trata-se do sistema e do sentido no em seus carácteres relacionais, inacabados.
Trata-se, sobretudo, de determinar a possibiliade do sentido à partir de uma organização «formal» que nela mesma não tem sentido, o que não quer dizer que ela seja o non-sens ou a absurdidade angustiante girando em torno do humanismo metafísico. Ora, se consideramos que a crítica do antropologismo pelos últimos grandes metafísicos (Hegel e Husserl, notadamente) se fazia em nome da verdade e do sentido, si consideramos que esses «fenomenólogos» - que eram metafísicos – tinham por motivo essencial uma redução ao sentido literalmente o propósito husserliano), concebemos que a redução do sentido – quer dizer do significado – toma de início a forma de uma crítica da fenomenologia. Se consideramos, por outro lado, que a destruição heideggeriana do humanismo metafísico se produz de início à partir de uma questão hermenêutica sobre o sentido e a verdade do ser, concebemos que a redução do sentido se opera por uma espécie de ruptura com um pensamento do ser que tem todos os traços de uma superação do humanismo. (DERRIDA, 1979; p.162)

	A língua – ponto central para os estruturalistas – é o exemplo de uma organização formal que não tem sentido nela mesma (assim como a democracia). A sintaxe não tem sentido sem ser preennchida pelas palavras com suas significações, mas suas significações em si mesmas só encontram suas expressões na relação entre as palavras. Através do estudo da língua, o estruturalismo desloca conceitos centrais para o humanismo metafísico – como o de essência e de fim (uma vez que a existência do sujeito é posta em questão).O estruturalismo com essa concepção do sentido desenvolve uma crítica à perspectiva da fenomenologia. Um dos pontos dessa crítica é que a análise estrutural pareceria supeiror à redução fenomenológica no toca à questões linguísticas, onde o sujeito não é doador de sentido. Lacan, de sua parte, põe o problema do inconsciente, que não pode ser levado em conta por uma análise fenomenológica. Afirmando, depois de Saussure, que o insconsciente é estruturado como linguagem, Lacan abre a análise estrutural à psicanálise. Assim, o sujeito fenomenológico é desqualificado não apenas pela teoria linguísitica, mas também pela psicanálise.
	Derrida distingue entre a redução ao sentido, operação própria à fenomenologia, e a redução do sentido18, operação que concerne à desconstrução e que é uma crítica da fenomenologia. O que esté em jogo na redução ao sentido é ainda o sentido, que pressupõe uma certa concepção ontológica, um certo sentido de ser. Heidegger, na sua hermenêutica, retoma essa questão. Contrariamente, a redução do sentido, a crítica do significante -  da verdade, da essência fenomenológica ou do falogocentrismo – é uma das estratégias da desconstrução.
	O segundo efeito desse apagamento é a «aposta estratégica»:
2. A aposta estratégica. Um abalo radical só pode vir do fora. Aquele de que eu falo, responde não mais que um outro à uma decisão espontânea do pensamento filosófico depois de alguma maturação interior de sua história. Esse abalo se joga na relação violenta do todo do Ocidente a seu outro, que se trate de uma relação «linguística» (onde se coloca muito rápido a questão dos limites de tudo o que reconduz à questão do sentido do ser), ou que se trate de relações etnológicas, econômicas, políticas, militares, etc. O que aliás não quer dizer que a violência militar ou econômica não esteja estruturalmente solidária da violência «linguísitica». Mas a «lógica» de toda relação ao fora é complexa e surpreendente. A força e eficácia do sistema, precisamente, transformam regularmente as transgressões em «falsas saídas» (DERRIDA, 1979; p. 162)
	O segundo signo que marca o efeito desse abalo é a «segurança do próximo» - tema que será desenvolvido especialmente com os atentados terroristas de 2001 e os subsequentes escritos de Derrida a respeito). O fora aqui se aproxima do outro não-conceitualizado ou integrado. Qual a relação do Ocidente com o seu outro? A desconstrução se move nesse questionamento. Mas ela reconhece ao mesmo tempo que se instalar nesse outro, perdendo a relação crítica com o Ocidente, é se deixar engolir pela força eficaz do sistema. É por isso que diante dessa estratégia de relação com o fora, o outro, Derrida traça duas vias:

Tendo em conta esses efeitos de sistema, temos apenas, do dentro onde «nós estamos», duas escolhas estratégicas:
1. tentar a saída e a desconstrução sem mudar de tereno, repetindo o implícito dos conceitos fundadores e da problemática original, utilisando contra o edifício os instrumentos ou as pedras disponíveis na casa, quer dizer também na língua. O risco é aqui o de confirmar, de consolidar ou de enfrentar sem parar uma profundidade casa vez mais certa disso mesmo que pretendemos desconstruir. A explicitação continua em direção da abertura corre o risco de se afundar no autismo da clausura.
2. decidir mudar de terreno, de maneira discontinua e irruptiva, se instalando brutalmente fora e afirmando a ruptura e a diferença absolutas. Sem falar de todas as outras formas de perspectiva ilusória nas quais se pode deixar colar semelhante deslocamento, habitando mais ingenuamente, mais estreitamente do que nunca, o dentro do qual se declara desertar, a simples prática da língua reinstala continuamente o "novo" terreno sobre o solo mais antigo. Seria possível mostrar com exemplos numerosos e precisos os efeitos de uma tal reinstalação e de uma tal cegueira. (DERRIDA, 1979; p. 162)

	O primeiro estilo é aquele de Heidegger. O segundo, o da fiosofia francesa do início do século XX. A estratégia da desconstrução passa, sobretudo, por uma mistura entre os dois estilos. Quer dizer que, de um lado, a desconstrução preserva o contato com a tradição filosófica, mas não de forma neutra. Ela revisita a história dos conceitos para reconstruir a arquitetura conceitural da filosofia, sem se fechar nessa história. De outro, ela se instala fora, produz cortes, sem esquecer a eficacidade do sistema à reinscrever suas operação, e é por isso que a desconstrução reclama um novo estilo de escritura.
Evidentemente esses efeitos não bastam para anular a necessidade de uma «mudança de terreno». Evidentemente também que entre essas duas formas de desconstrução a escolha não pode ser simples e única. O que significa dizer que é necessário falar várias línguas e produzir vários textos ao mesmo tempo. (DERRIDA, 1979; p.163)

	O terceiro signo é o apagamento da diferença entre o homem superior e o super-homem em Assim falou Zarartustra (1885) de Nietzsche. O homem superior, com seu grito de sofrimento, critica e denuncia o humanismo. Ele sabe da morte de Deus e compreende sua significação – o mundo é um jogo de dados. Os homens superiores são atormentados pelos grandes enigmas da metafísica. Eles guardam ressentimento de Deus ( que não se desvela), eles se sentem enganados, o que mostra a conexão profunda do ateísmo ou do agnosticismo ao pensamento teológico.  Apesar do seu ateísmo, os homens superiores buscam Deus por toda parte:
Jazo, me curvo, me contorço, atormentado por todos os martírios eternos. Ferido por ti, crudelíssimo caçador, Deus desconhecido…. (…) Que olhas  ainda, não cansado de humanos tormentos, com esses olhos maliciosos de fulgores divinos? Não queres me matar, mas me martizar, martirizar somente ? Para que martirizar-me a mim, Deus maldoso, Deus incógnito ? (..) E martirizas-me, insensato! E  torturas- me o orgulho? Dá-me o amor, — quem me aquece ainda? Quem me tem amor ainda? Dá-me mãos quentes, dá-me corações ardentes (...) (NIETZSCHE,  Ainsi parlait Zarathoustra ; p.370-373)

	Zaratustra descobre que os homens superiores não poderão segui-lo, por que eles não aprenderam a rir nem a dançar. Os homens superiores são decadentes - «um moribundo a quem se aquesce os pés» (NIETZSCHE, 1900; p.369), eles fedem, diferente dos animais, pois eles fazem ainda a experiência da grande náusea. Zaratustra compreende o desespero que está na base da perspectiva do homem superior. Para Derrida, o homem superior indica a véspera, o dia que precede o dia que vem e que o prepara, como a metamorfose do camelo, pesado, carregado de peso transformado em criança, na sua leveza e espontaneidade apresentado em As três metamoforses. Apesar do fato de que o homem superior saiba que não existe sentido predeterminado para o homem, ele busca ainda um substituto que ocupe as antigas funções de Deus (poderíamos dizer, o caráter ambíguo que reenvia à teologia no conceito de realidade humana em Sartre e naqueles de presença e próprio em Heidegger).
	Zaratustra é um arauto do por vir, um crítico do humanismo e um grande humanista, que dissemina sua doutrina da superação do homem pelo super-homem (ou além-do-homem). Ele anuncia a morte de Deus como uma boa nova, que permite ao homem criar sua existência fora da partilha cristã do Bem e do Mal e dos modelos de virtude que são propagados ao longo da história da filosofia, ação indissociável de uma ética, como a espiritualização da paixões, que ele expõe em Crepúsculo dos ídolos e no eterno retorno. Zaratustra é um nome próprio, um romance, não um conceito – um «personagem conceitual», diria Gilles Deleuze – que não se inscreve na ordem da verdade, enquanto acompanha a ordem dos acontecimentos e os transforma.  Zaratustra é então o signo de uma ruptura no estilo filosófico, no modo de fazer filosofia, agindo no limite do conceito e no conceito de limite, como queria Derrida no prefácio de Margens da filosofia. A questão que se coloca é de saber se Nietzsche realmente ultrapassou os limites da onto-teo-teleologia, abrindo um outro espaço para o pensamento.
O primeiro [o homem superior] é abandonado ao seu infortúnio com um último movimento de piedade. O último [Zaratustra] - que não é o último homem - acorda e parte, sem se voltar para o que deixa atrás de si. Queima o seu texto e apaga os traços dos seus passos. O seu riso explodirá então em direção a um retorno que não terá mais a forma da repetição metafísica do humanismo nem também, sem dúvida, "para-além" da metafísica, a do memorial ou da guarda do sentido do ser, a da casa e da verdade do ser. Ele dançará, fora de casa, essa aktive Vergesslichkeit, esse "esquecimento ativo" essa festa cruel (grausam) de que fala a Genealogia da moral. Sem dúvida alguma Nietzsche apelou a um esquecimento ativo do ser: ele não teria tido a forma que Heidegger lhe imputa. (DERRIDA, 1972; p.163).
	
	Nietzsche não propõe uma definição do homem ou de sua essência, mas múltiplas fórmulas, tipos, personagens que não formam um sistema acabado. O aparente binarismo – o homem superior e o super homem -  marcam apenas duas oposições,  a do humanismo e do anti-humanismo, cujos entrecruzamentos são mais complexos, como podemos ver nas metamorfoses de Zaratustra e sua relação com os animais, ou nas profundas misturas entre essas duas tendencias filosóficas.  Mas já Zaratustra abre um outro espaço que aquele da casa do ser, da verdade e da essência: o drama de Zaratustra pode ser percebido como um espaço do pensamento, através de sonhos, símbolos, animais que falam e comungam com ele, em contato com personagens pouco comuns: como o anão, o macaco, o adivinho, o funâmbulo etc. Nesse espaço, a partilha entre o verdadeiro e o falso, a aparência e o real, o ser e o não-ser, não é clara. Nietzsche segue a via de um esquecimento do ser (que se percebe sempre na presença),  onde o Um é apenas uma miragem de multipli-cidades imanentes, como dirá o Derrida de Éperons, Les styles de Nietzsche), que se oferece às dobras e desdobramentos (a festa cruel) irredutível a uma circularidade ou figura (como Nietzsche enquanto último metafísico em Heidegger). Diferente de Heidegger que, ao inverso, lança um apelo em direção ao ser.
	O esquecimento ativo, citado por Derrida na passagem acima, é uma força ativa contra o ressentimento, um pharmakon contra a raiva e a vingança, que pode nos aproximar do amor. O homem superior muda, aquele de Genealogia da moral não é mais o mesmo do de Assim falou Zaratustra.  No primeiro, o ressentimento era o sentimento maior do homem superior, que quer desvelar o sentido do ser mesmo face à morte de Deus. Na Genealogia a moral, o homem superior ama seus inimigos (como Deus) e os esquece. Derrida explora essa evolução do personagem como uma possível transformaçao da onto-teo-teleologia que não seja uma destruição no sentido heideggeriano (que, como vimos, não pode, pela natureza mesma da linguagem, cumprir a promessa, permanecendo ligado – através da presença e do próprio – ao humanismo metafísico).
	Trata-se de ultrapassar a époché do sentido. Esquecer o ser é, então, abrir outras perspectivas diferentes daquelas da onto-teo-teleologia e que se aproximam do seu fechamento, como exemplifica a obra de Nietzsche. No mais, o esquecimento ativo é já uma ética, que exige uma outra orientação do pensamento e dos sentimentos. Tudo isso contém os sintomas de um novo homem (o homem nobre), que ascede a si mesmo por meio de uma nova humanitas, impedindo a cristalização do ser, seguindo, nas palavras de Derrida, os traços. 
	Nietzsche põe também em evidência a crueldade humana, que foi excluída desde Aristóteles até Schopenhauer, do reino da humanidade, como não-humana. A fenomelogia com o conceito de consciência, e Heidegger com o próprio do homem, tendem a excluir a crueldade. Nietzsche lhe empresta uma dimensão histórica inseparável de um instinto humanno. A «festa cruel» que Derrida menciona, evoca o sentido de uma reflexão sobre a humanidade do homem : podemos admitir os instintos mais baixos do homem no pensamento ou eles serão sempre reprimidos? Que dizer do inumano no homem? 

2. A questão da ética em Os fins do homem

           Passamos agora ao estudo da recepção da obra de Derrida por uma certa crítica filósofica e literária. Um dos principais desdobramento teóricos desse texto19 diz respeito à questão da ética. Existe uma ética em Derrida, o «nós» - que aparece no fim de Os fins do homem contém uma ética? Sua posição à propósito dessa questão foi mais de uma vez ambígua: se, de um lado, ele recusa a inscrição da desconstrução como um método ou disciplina do corpus philosophique, se distanciando da moral; de outro lado, ele insiste que o problema ético assombra seus escritos desde o início.
           Esse trabalho se posiciona contra duas leituras dominantes de Derrida. A primeira é aquela da escola de Yale, onde se defenda a ideia da desconstrução como um free play em Derrida. Derrida seria um pensador anti-realista, no limite um relativista, pois ele recusaria toda a filosofia da representação. Derrida, pensador da disseminação, faria uma espécie de ultrafenomenologia onde recusaria a existência do sentido. Nenhum sentido poderia se fixar completamente e o leitor permaneceria numa rede de jogos textuais20 (MOYSES, 2014; p.19). Desse ponto de vista, as preocupações de Derrida não diriam respeito à ética – já que o free play – não obedece a um dever – mas se voltaria em direção de uma filosofia da linguagem. A outra interpretação em relação à qual tomamos uma certa distância é a de Martin Hägglund, em Ateísmo radical21. Hägglund afirma que não há viragem ética em Derrida (o que subscrevemos) – não por causa de uma ética que atravessaria desde o início seus escritos (nossa hipótese) – mas por um ateísmo que percorre toda sua obra e que impedem a existência de uma ética (HÄGGLUND, 2008; p.I). Do contrário, encontramos uma orientação comum nos comentários de Critchley22, reafirmando sua tese de uma ética da desconstrução em Derrida, que guarda uma grande proximidade com o pensamento de Lévinas, visível desde os anos 60 em Violência e metafísica. Charles Ramond23 faz parte dos que observam igualmente a relação ética da desconstrução quando ele escreve que «Derrida não cessa, com efeito, de sustentar que a desconstrução, longe de ser uma atitude de reclusão, é o movimento de atenção ao outro» (RAMOND, 2007; p.15)
	Os trabalhos de Critchley e François Nault24 marcam essa continuidade da questão ética em Derrida, notadamente à partir dos anos 80. Nosso objetivo é de recuar um pouco essa data da preocupação com a ética em Derrida, mostrando que em Os fins do homem já está em jogo uma ética da alteridade, um ética do dever e uma ética da questão.
	Se não há fins, a ética não seria a perpetuação de uma metafísica que esconde seus pressupostas ontológicos – como o sublinham Alain Renault e Luc Ferry25 – e que devem ser infinitamente desconstruídas ? A conclusão é que não haveria ética da desconstrução. Essa última seria, ao contrário, eternamente um discurso contra os fins, como vimos na crítica do humanismo. Essa crítica se reduziria a uma crítica do finalismo e se conformaria a uma crítica de valores sem nada propor de positivo, pois fazê-lo seria já se pôr em contato com uma narrativa universalizante. E, no entanto, essa crítica seria habitada, paradoxalmente, por eles de linguagem com «é preciso», «é necessário»  que reenviam a uma ética

Por que falar de ética em Derrida ?
	O debate à propósito de uma ética em Derrida foi marcado pela interpretação de sua suposta filiação à Heidegger ou Lévinas. É a orientação de Critchley26.
 	Como regra geral, os que privilegiam as relações entre Derrida e Lévinas, defendem a existência de uma ética em Derrida, certamente longe dos pressupostos teológicos que guiaram a ética clássica. Mas há também um certo número de críticos que privilegiam a relação Heidegger- Derrida, declarando a impossibilidade de estabelecer uma ética nesse último, já que, seguindo Heidegger, Derrida teria considerado que a ética estaria sempre guiada por pressupostos ontológicos27. Ora, nas palavras de Critchley : "Supõe-se que a ética, concebida como um tronco da filosofia, a saber a filosofia moral ou a racionalidade prática, é um domínio de investigação – como a lógica ou a física – que pressupõe o fundamento filosófico ou metafísico que a desconstrução desconstrói" (CRITCHLEY, 1999; p.2)28 (CRITCHLEY, 1999; p.2).
	Nosso objetivo não é, no entanto, reviver essa querela. O próprio Derrida, mais de uma vez, anuncia as preocupações éticas que atravessam seus escritos – e não apenas aqueles dos anos 90. Simon Critchley acompanha os desenvolvimentos sucessivos do problema ético na obra de Derrida. Diferente da orientação da escola de Yale, ou daquela seguida por John Caputo e Hägglund (onde não existe ética em Derrida), Critchley reconhece a dupla influência de Heidegger e de Lévinas na formulação da ética no filósofo. Também Jean Luc-Nancy (em quem Critchley se inspira) tinha já mostrado, em Cerisy (1981), a existência do que ele chama eticidade da ética e dessa dupla presença de Lévinas e Heidegger na formulação desse campo que seria anterior à ética e sua condição de existência.
	Segundo François Nault, essa ética de Derrida já foi formulada de muitas maneiras : uma «ética da promessa», uma «ética do sobrevivente», uma «ética da hospitalidade», «uma ética do dom», uma «ética do intempestivo», uma «ética da decisão», uma «ética da literatura».  Nault admite que se espantou de ouvir Derrida falar de hospitalidade de forma ético-política, enquanto que sua experiência, como leitor de Derrida, era mais próxima da relação do filósofo francês com Heidegger e Nietzsche. Ele confirma, então, que, se é possível falar de uma data para uma viragem ética em Derrida, seria os anos 90, mas acrescenta em seguida, que esse momento nada tem de um «acontecimento», por que «ele se anunciava, se antecipava, já tinha tido lugar de qualquer forma” (NAULT, 2005; p.7).

É no início dos anos 80 que Derrida inaugurou uma série de seminários tendo todos por título geral «Questões de responsabilidade». Essa série de seminários debruçaram-se sucessivamente sobre «O testemunho» (à partir de 1992), «A hospitalidade» (à partir de 1995), «O perjúrio e o perdão» (à partir de 1997), «A pena de morte (à partir de 1999), depois «A besta e o soberano» (à partir de 2001). Mas essa série de seminários havia sido precedida de uma outra, inaugurada alguns anos antes, intitulada «A nacionalidade e o nacionalismo filósofico», onde as questões éticas e políticas tinham também encontrado um lugar de expressão. Assim, em 1985-1986, Derrida tinha abordado a questão do «teológico-político», depois, alguns anos mais tarde, ele manteve um seminário sobre «Comer o outro: retóricas do canibalismo». Falar de uma «viragem ética» e o situar no início dos anos 1990 manifesta um desconhecimento ou uma subestimação dos trabalho de ensino dos anos 80, que revelavam já fortes preocupação éticas e políticas de Derrida. (NAULT, 2005; p.8)
	
	Diferente de nós (que reconhecemos o bem fundado propósito de Nancy, de 1981, Nault conidera como elemento primeiro da crítica dedica à questão ética no filósofo da desconstrução, a de Christopher Norris (1992), que escreve que o traballho de Derrida tem o mérito de «colocar questões éticas de responsabilidade”’29 (NAULT, 2005; p.10).
	Como escreve Fuh30, o próprio Derrida mostra seu temor de uma moralização da desconstrução, de fazer da desconstrução um princípio, um método, uma lei. No entanto, ele fala de uma ética desde seus primeiros escritos como A gramatologia e A escritura e a diferença até seus últimos livros, sobre a pena de morte, a hospitalidade, a justiça. 
	Por que Derrida se opõe a que se seu pensamento seja convertido numa ética? Podemos tentar uma resposta heideggeriana: a ética foi sempre guiada por pressupostos metafísicos implícitos. A orientação de Derrida é de se colocar no espaço entre o fechamento e o fim da metafísica, quer dizer, forçar a metafísica ocidental moderna em direção do seu impensado e torná-la mais consciente de suas limitações (como o falogocarnocentrismo), forjando estratégias novas de combate contre ela (uma nova escritura, a mistura de estilo, a emergência dos traços).
	Critchley prefere falar de uma pressão crescente entre os leitores31 de Derrida para compreender as implicações da desconstrução na vida prática: «São questões postas pelo leitor que, com prazer e paciência, leu o trabalho de Derrida, mas que deseja agora, com impaciência talvez, recolocar em questão a demanda que lhes põe esse trabalho. Sustento que essas são questões que exigem uma resposta ética, que chamam a leitura desconstrutiva à responsabilidade, à ser responsável» (CRITCHLEY, 1999; p.1).
	Para Nault, diferentemente, é preciso recusar a ideia de fazer uma síntese da posição ética de Derrida: «É necessário renunciar à estabelecer uma «síntese» da posição ética de Jacques Derrida : uma tal tarefa aparece não apenas destinada ao fracasso, mas contrária àquilo mesmo que está em jogo a desconstrução, quer dizer que a desconstrução põe em jogo » (NAULT, 2005; p.2). Como vimos na citação precedente, a desconstrução não deve ser pensada no singular, é plural. Nault prefere falar de multiplicidades de estratégias e pontos de vista que coexistem em Derrida, que recusa expressamente a ideia de uma viragem ética:

Jamais houve, nos anos 1980 ou 1990, como se pretende por vezes, uma viragem política ou viragem ética da «desconstrução» tal, ao menos, que eu faça a experiência. O pensamento do político foi desde sempre um pensamento da dyferença e o pensamento da dyferença sempre também um pensamento do político, do contorno e dos limites do político, singularmente em torno do enigma do double bind auto-imunitário da democracia. O que não quer dizer, bem ao contrário, que não se passa nada de novo entre, digamos, 1965 e 1990. Simplesmente, o que se passa permanece sem relação e sem semelhança com o que poderia dar simplesmente a imaginar a figura da viragam. […] (DERRIDA, 2003 ; p. 64)32

 

Para Jean Luc Nancy, as preocupações éticas de Derrida são evidentes e atraversam a totalidade de sua obra, desde A gramatologia a A voz e o fenômeno, os dois de 1967, e seus livros mais recentes (no momento onde Nancy escreve), A carta postal e Glas. Mesmo sem o apoio de uma parte central da obra de Derrida para o debate ético – aquela dos nos anos 90 – Nancy é capaz de desenvolver o que ele chama (com Derrida), de eticidade da ética.

	A eticidade é a ideia da ética. O que quer dizer que a ética não apenas pode ser pensada como um simples prolongamento de tendências humanas. Ela repousa sobre a lei, que se dirige sempre contra uma liberdade que a precede. O interesse de Derrida não é, a partir desse fato, de enunciar uma nova lei, mas pensar, como dissemos anteriormente, as condições de possibilidade de toda lei.

 Uma ética da alteridade
	Que significa uma ética da alteridade ?
             O outro não é determinável. Ele vem, ele aparece como um acontecimento. Não podemos estar certos de sua presença, não podemos prever sua chegada. O outro, desde Derrida, fornece a imagem da transcendência que não é mais, portanto, aquela de Deus ou do «Eu», eles mesmos vistos como versões da alteridade. O outro, nessas figuações, não é mais o inimigo, submisso a uma vigilância e a um contrôle constantes – como no pensamento político fundado sobre a ideia de identidade nacional e na fortificação de fronteiras – nem o exótico romantico do fim do século XIX, que experimentava-se de forma fugaz, localisada, na busca de uma experiência momentânea de outros mundo. Derrida cristalisa numa fórmula, presente em De um tom apocalíptico adotado há pouco em filosofia a relação com o outro e o dever de acolher: «Vem!»:”33.
Ele [o Vem] não se deixa mais arrazoar por uma onto-teo-escatologia mas apenas por uma lógica do acontecimento, tão nova seja ela e qualquer que seja a política que ela anuncia. Nesse tom afirmativo, «Vem» não marca nem um desejo, nem uma ordem, nem uma prece, nem um pedido. Mais precisamente, as categorias gramaticais, linguísticas ou semânticas à partir das quais o determinaríamos são assim atravessadas pelo «Vem». Este último, não sei o que é, não por que ceda ao obscurantismo, mas por que a questão «o que é» pertence a um espaço (a ontologia, e à partir dela os sabereses gramaticais, linguísticos, semânticos, etc.) aberto por um «vem» vindo de um outro (DERRIDA, 2005; p.93)

	O outro é antes da filosofia (e sua questão fundadora segundo Heidegger – O que é...?) e, dessa forma, anterior a todas suas determinações ontológicas. O outro, mesmo só, não chega só (ele porta o acontecimento). O «Vem» que acompanha a relação com o outro é condição do acontecimento – desse acontecimento que é o face-à-face com o que não sou eu. Esse outro, herdeiro, em alguns pontos, do pensamento de Lévinas (mas também da psicanálise34) constitui uma noção central desse campo pré-ético35 que está em questão em Derrida (ao lado de outros conceitos como o dever, a justiça, a hospitalidade, o dom, o pharmakon, por exemplo). Em Violência e metafísica, Derrida reconhece na filosofia de Lévinas36 esse apelo à ética da alteridade:
Esse pensamento chama à relação ética – relação não violenta ao infinito como infinitamente outra, a outro – que apenas poderia abrir o espaço da transcedência e liberar a metafísica. Isso sem apoiar a ética e a metafísica sobre outra coisa que elas mesmas e sem misturá-las a outras águas no seu surgimento (DERRIDA, 1967; p.123).

	Vemos, pela citação, a posição singular que Lévinas ocupa na história da filosofia para Derrida.  Cricthley sublinha que essa proximidade entre Lévinas e Derrida conduz à ética: “Se o diálogo textual entre Derrida e Lévinas é, de alguma forma exemplar, então sua exemplaridade consiste na maneira em que cada momento do diálogo, a sucessão dos encontros textuais, põe em questão cada um dos dois pensadores e os conduz a um nível mais profundo que aquele da ontologia do questionamento (o que é x?) - a saber, a responsabilidade com o Outro.  (CRITCHLEY, 1999; p.12)

Critchley considera que o tema da responsabilidade (tema central, por exemplo, para o Antroposceno, que a prevê como valor moral indispensável para a mudança de atitude do homem face ao planeta) precede a importância da questão. A responsabilidade pertence também ao campo pré-ético: sem responsabilidade, a lei e as regras são simples enunciados vazios. A responsabilidade não parte da divisão entre exterior e interior: guardo (através do insconsciente) o outro em mim, de modo que a responsabilidade do outro não pode ser diferenciada de um olhar sobre si, sobre a multiplicidade herterogênea que nos constitui. Critchley repara em vários pontos comuns37 entre Lévinas e Derrida, como, por exemplo, a partilha da tradição judaica de pensamento e uma certa fenomenologia ; a concepção do texto, onde Derrida, citado por Critchley (CRITCHLEY, 1999; p.121), comenta a heterogeneidade da escritura de Lévinas, tecida por relações de alteridade; o problema ético, presente, nos anos 60, no ensaio Violência e metafísica, onde Derrida apresenta uma leitura desconstrutiva em relação com a ética de Lévinas. No sentido inverso, Lévinas escreve Tout autrement, em 1973, onde ele propõe uma leitura ética da desconstrução (CRITCHLEY; 1999; p.121). Critchley continua: “Diria que existem certas similaridades temáticas e estratégicas entre o pensamento de Derrida e de Lévinas que permetem ao mesmo tempo compreender a desoncstrução como uma demanda ética a ética como devendo ser abordada pela desconstrução» (CRITCHLEY, 1999; p.12).. Como vemos, o outro é uma questão central partilhada pelos dois pensadores. Sobre essa relação Fernanda Bernardo considera que:

Diria que a extra‑ordinária proximidade (de pensamento) entre Derrida e Lévinas se marca precisamente ao nível da hiper‑radicalidade ou da extra‑vagância do seu pensamento e daquilo que os apelou a pensar e/ou lhes deu a pensar: a saber, o outro, o absolutamente outro (tout autre) tido como o limite, como um verdadeiro limite, um limite absoluto da filosofia na sua tessitura determinantemente ontológica. Tanto a meta‑ética levinasiana como a desconstrução derridiana são, de facto, pensamentos da alteridade ab‑soluta: pensamentos ditados, inspirados, magnetizados e afectados pelo “absolutamente outro” (o “separado” ou “santo”, dirá Levinas na tradição do kaddoch hebraico, «não importa quem» («quiconque»), qualquer um/a, dirá Derrida, no segredo absoluto que o porta e o salvaguarda como outro). (BERNARDO, F. Lévinas e Derrida. “Um contato no coração de um quiasma”. Revista Filosófica de Coimbra. Nº33, 2008, p.41)

Assim, após ter examinado brevemente o sentido dessa ética da alteridade, percebido quem é o outro e considerado a influência de Lévinas sobre Derrida, na formulação dessa ética (ou campo pré-ético), passamos à segunda característica dessa ética que é a reflexão sobre o dever.

Uma ética do dever

Imaginamos que ele [Derrida] respondesse [à questão «Quando você escreverá uma ética?]: escrever uma ética? Mas que quer dizer escrever a lei? Trata-se de recopiar seu enunciado puro e transcendente, ou bem seria na escritura que a lei se traçaria? A escritura poderia ser legisladora? Como?(NANCY, 2013; p.)

	Essa passagem, em Nancy, mostra a indisposição da filosofia de Derrida de pensar a ética no mesmo quadro do pensamento tradicional. Ora, diz Nancy, se não há uma ética em Derrida, é preciso saber por que: «Perguntemos então à Derrida (…): qual é tua ética, qual é a mola avaliadora e o fim axiológico do teu pensamento? A quê tu obedeces? Qual é teu deve?» (NANCY, 2013; p.166). Nancy cita um extrato de Margens da filosofia, para mostrar como opera o dever38 no texto de Derrida ue ele cita: «A desconstrução não pode se limitar ou passar imediatamente a uma neutralisação: «ela deve por um duplo gesto, uma dupla ciência, praticar uma inversão da oposição clássica e um deslocamento geral do sistema» (DERRIDA, 1972; p.392). Ora, segundo essa passagem, a neutralisação dos pressupostos éticos não é suficiente – a desconstrução deve produzir uma inversão de valores que orientam a ética. Essa afirmação nos leva a pensar que a desconstrução não é um trabalho marcado pela negatividade, mas que ela é propositiva e deve nos dar uma outra imagem da ética. Segundo Nancy: «existe realmente um dever de outro-discurso, em vista de uma prática de outro-discurso. Toda uma ética aí se implica» (NANCY, 1981; p.167). A intenção de Nancy é de mostrar que uma exigência ética atravessa o texto derridiano. 
É então possível que venha se alojar lá (…) uma singular necessidade sem razão, de-monstração sem prova, um «é necessário» que não é necessário legitimar pelo discurso, um dever, consequentemente, de estatuto perfeitamente ambíguo ou indeciso, teórico ou moral, mas também nem teórico, nem moral. Um dever que  se distancia decididamente, permanecendo um dever, desse dever filosófico que a filosofia sempre deduziu ou quis deduzir de razões teóricas – e melhor ainda, um dever que, permanecendo um dever, se distanciaria decididamente do dever filosófico, quer dizer, desta obrigação e deste fim que a filosofia se dá sempre sobre o fundo do modelo aristotélico: ou a theoria como praxis da sophia. O dever «distanciado», nós não o produziremos filo-soficamente. Mas não é impossível que ele venha à se «demonstrar» - quer dizer, talvez, se impor (NANCY, 2013 ; p.168).

	Essa ideia de ética, esse dever – teria um outro sentido (a determinar) que não seria o mesmo do da tradição filósofica que pensa sempre o dever à partir de razões teóricas. Como esse dever não é teórico (ele não admite mais a divisão binária entre theoria e praxis), ele está em ruptura com a tradição de Aristóteles. Essa tradição havia compreendido a theoria como praxis de uma sophia, de uma sabedoria à qual apenas o sábio (e suas imagens, como a do filósofo) tem acesso e dá acesso. O dever em Derrida não seria produzido filo-soficamente, segundo as exigências de uma sabedoria e um modelo de virtude já ordenados. Seguindo um outro regime, o dever, em Derrida, não se demonstra, mas isso não quer mais dizer que ele seja dogmático, uma vez que se confunde com o questionamento.
	Segundo Nancy, Derrida teria já respondido à questão do dever. O texto de referência é Violência e metafísica e a passagem é a seguinte: 
«Que a filosofia esteja morta ontem (…) ou que ele tenha sempre vivido de seu saber moribundo (…); que ela morra um dia (…) ou que ela tenha sempre vivido em agonia (…); que para-além dessa morte ou dessa mortalidade da filosofia, talvez mesmo graças a ela, o pensamento tenha um futuro (…); mais estranhamente e ainda, que o próprio futuro tenha assim um futuro, essas questões não estão aptas para resposta» e, um pouco mais longe: «Talvez mesmo essas questões não sejam filosóficas, não são mais filosofia» (p.168; DERRIDA, p.117)
	
	A passagem traça uma relação entre a dita morte da filosofia e o futuro do pensamento, onde a primeira gera e força o segundo. O futuro é possível à partir de mortes sucessivas. Derrida se espanta face ao estrangeirismo de um tal futuro impensável. Sobre essa passagem, Nancy comenta: “Essa impossibilidade de resposta ao fim da filosofia e à questão do seu fim, ou de seus fins, é evidentemente ligada estruturalmente e por natureza à impossibilidade de provar que é necessário o fim, ou os fins da filosofia. E é aqui, precisamente, que vai surgir o dever» (NANCY, 2013; p.169). Uma questão se anuncia antes mesmos que entremos no domínio da ética: como provar a necessidade dos fins?
	 A ética é, segundo Nancy, sempre uma teleonomia – um estudo das leis da finalidade. Essa teleonomia tinha por centro o homem, um ente cuja existência é finita. O problema da ética seria de introduzir na existência humana a infinitude. Diferente de uma «ética da finitude» (NANCY, 2013; p.171), Derrida proporia a finitude como ética. Enquanto que na história da filosofia, o fim da ética é ultrapassar a finitude (se apropriando dela), em Derrida, a finitude aparece como «desapropriação do fim» (NANCY, 2013; p.171): «O dever indicaria, assim, uma abertura – e a questão – do ethos próprio do não-próprio. Abertura e questão de um ethos unheimlich, quer dizer de uma contradiction in adjecto se ethos quer dizer heim, em casa, lugar familiar, toca de animal, caverna ou antro de homem» (NANCY, 2013; p172). Não se trata mais, em Derrida, de uma ética do próprio do homem, pela qual ele alcança a transcendência – a infinitude. Não se trata, por exemplo, de eleger a razão como o mais próprio do homem e de concebê-la como a única verdadeira força que trabalha a história, como em Hegel ou Husserl. A ética em Derrida põe em evidência o não-próprio, o que foi excluído das determinações históricas do homem.  Trata-se de uma ética unheimlich, do estrangeiro, do inquietante, do problemático. Essa determinaçao da ética pode sempre ser apropriada pelo ethos metafísico, que transforma o não-próprio em próprio, no movimento próprio à filosofia e seu logos. 

 Uma ética da questão

Uma injunção se anuncia: a questão deve ser guardada. Como questão. A liberdade da questão (duplo genitivo) deve ser dita e abrigada. Permanência fundada, tradição realizada da questão que permance questão. Se esse comando tem umma significação ética, não é de pertencer ao domínio da ética, mas de autorizar ulteriormente, toda lei ética em geral. Não há lei que não se diga, não há comando que não se enderece a uma liberdade de palavra. Não há, então, lei ou comando que não confirmem e não fechem – quer dizer que não dissimulem pressupondo-na – a possibilidade da questão (DERRIDA, EED, p.119).

                Em Os fins do homem (e como é frequente nos textos de Derrida) o questionamento não pára – ele permance até o fim do texto: «Mas quem, nós». Não há a promessa de uma resposta, de uma solução final, de um ponto de parada, mas uma emersão contínua de problemas, de dificuldades de leitura e tradução, de bifurcações do pensamento, onde se jogam a crítica do humanismo e a relação entre Heidegger e a metafísica. A questão volta-se em direção do próprio discurso de Derrida, impedindo sua integração à ordem simples da verdade. Vemos que a questão exige um discurso que longe de se purificar de suas contradições, limites e impasses, os expõe ao leitor, criando múltiplas perspectivas irredutíveis a uma unidade ou síntese. 
	A palavra eticidade nos reenvia a Kant e uma certa indistinção entre eticidade e moralidade que atravessam sua obra ou mais precisamete, ao ponto onde a eticidade deve fundar a moralidade. Derrida segue, nesse ponto preciso, as  indicações de Kant? Na Crítica da razão prática, Kant se propõe a pesquisar o princípio fundamental da moralidade, tendo como objetivo de mostrar que toda doutrina moral qe se apóia sobre considerações empíricas é falsa. Ele quer dar à ética uma base exclusivamente racional e apriorística. A eticidade é o conjunto de normas, costumes e formas de vida que se apresentam como obrigatórias - o que Kant define como imperativo categórico. Sua busca foi de fundar as ações humanas sobre uma conversão da razão pura em razão prática. Para Kant, a diferença entre o bem e o mal é constitutiva da razão humana. Ele identifica uma lei moral universal válida para todos, em todas as sociedades e tempos. Essa lei universal é uma prescrição que versa sobre o comportamento. Kant considera justa a forma da ação moral, independente do seu conteúdo. A lei moral é, então, um imperativo categórico.
	Para Derrida, o domínio da ética e aquela da moralidade são diferenciados. A ética se move no seio de um questionamento, contrastando com a lei que é mais próxima, diria Kant, do comando. Em Derrida – e como o pensa Jean-Luc Nancy – a questão é de saber como o princípio pré-ético – a questão39  – é capaz de transtornar todos os princípiops pelo efeito de seu caráter anárquico e antinômico : a questão se mantém de pé face aos imperativos e os submete  a um tratamento específco (no caso de Derrida, por exemplo, a questão sobre o impensado dos conceitos na história da filosofia)
Essas questões devem ao menos ser as únicas a poder fundar hoje a comunidade daqueles que, nesse mundo, chamamos ainda de filósofos (…)
Comunidade da decisão, da iniciativa, da inicialidade absoluta, mas ameaçada, onde a questão não encontrou ainda a linguagem que ela decidiu buscar (…). Comunidade da questão sobre a possibilidade da questão. É pouco – quase nada – mas aí se refugiam e se resumem hoje uma dignidade e um dever inevitáveis. Uma responsabilidade inevitável. (NANCY; 2013, p.169/ DERRIDA; 1967; p.118)

Para Nancy, o «deveria» hipotético que Derrida utilisa nessa passagem, mostra-se, em realidade, como categórico. A comunidade – sua criação, seu destino – é indissociável da ideia de dever (de manter a questão e, particularmente, aquela dos fins) e, dessa forma, de um imperativo ético: “já então um dever – ou, se preferem, um dever se decide, um dever final em todos os sentidos da expressão, o dever da questão, de manter a questão dos fins ou questões do fim da filosofia” (NANCY, 2013; p.169) .

	Esse imperativo ético pode ser lido à partir da interpretação de Heidegger do problema da ética. Segundo Nancy, para Heidegger, o ato de questionar40 –  que não aceita normas, nem dogmas, nem princípios estáveis permanentes – ultrapassa toda ética, mas permanece como um imperativo para o pensador. Assim, como diz Nancy, «a ética suprema,e pré ou pós-ética, seria aquela do ato do pensamento, entendido em ocorrência como um «questionar infinito» (NANCY, 2013; p.170). 	Mas Nancy aproxima Heidegger de Aristóteles pelo fato da concepção de theoria como praxis. Para Nancy, essa concepção de ética não explica completamente o texto de Derrida: «O questionar não produz sozinho uma ética do pensamento, pois a questão está ela própria em questão»; «o dever é mais pobremente, de guardar a questão, como questão»  (NANCY, 2013; p.170). 
Não se trata então da theoria [teoria] como arké [princípio] e como telos [fim] da praxis, se a questão guardada só pode precisamente interromper a theoria. Trata-se do inverso, do começo ou do fim da ética aristotélica, e sem dúvida também um ultrapassamento, um desvio do motivo heideggeriano do pensamento como fazer ou como agir. A filosofia deve se guardar se perdendo, mas o que poderia ser – e o que será sempre, com efeito, inevitavalmente, no discurso de Derrida como no de um outro – um cálculo econômico, transborda de novo: pois guardando a questão trata-se de guardar a possibilidade que a filosofia não seja mais. A filosofia deve guardar o fim, ela deve guardar seu ser-finito no ad-vir da questão. (NANCY, 2013; p.171)

CONCLUSION

	Há uma ética na filosofia do “jovem” Derrida, da qual propomos três elementos centrais: a alteridade, o dever, a questão. A crítica do humanismo em Sartre e Heidegger deixou entrever um campo pré-ético na filosofia, marcado pela afirmação da responsabilidade em direção do outro. O combate cotra a onto-teo-teleologia visa a transcendência no outro. A crítica do humanismo porta a ideia de um novo humanismo, que não seja mais centrado na figura do homem, mas que se alarga em direção de todo o ente. Assim, o nós, ultrapassando as determinações onto-teo-teológicas (ou, ao menos, tornando-as cada vez mais conscientes) pode ser definido à partir de uma outra instância que o “nós” habitual: ligações familiares ou amicais, de classe, por identidade nacional, por cor de pele ou crença religiosa. 
	A ética é, então, como pensa Marc Crépon, inseparável de uma política em Derrida. Crépon41, em Viver com, defende a existência, em Derrida, de uma “política da ética” (CRÉPON, 2008; p.161). Esse pensamento é inseparável da questão do por vir da democracia42. Pelo que foi dito, o “Um soberano” da democracia deve permanecer indeterminado, heterogêneo, aberto. A democracia é um regime ambíguo: de um lado, há as oligarquias, que detêm o poder e as riquezas e que têm o controle do Estado. De outro lado, se as oligarquias querem preservar a aparência de democracia, o povo deve poder contestá-las, à partir de diversos meios, em nome da justiça e da igualdade: “Essa possibilidade é preciosa e merece ser defendida, cada um a sua maneira, com seu idioma e suas invenções singulares. Assim, uma segurança humana que não seja subordinada à segurança do Estado pode ser posta em marcha”43.
	Nas palavras de Ramond:
A desconstrução não fica ao largo da política, ao contrário: «Não há desconstrução sem democracia, não há democracia sem desconstrução» (Voyous,p.130); «A desconstrução, se qualquer coisa assim existe, permaneceria a meus olhos, antes de tudo, um racionalismo incondicional que não renuncia nunca, precisamente em nome das Luzes por vir, no espaço a abrir de uma democracia por vir, a suspender de forma argumentada, discutida, racional, todas as condições, as hipóteses, as convenções e as pressupossições, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades (...)» (ibid., p.197). A desconstrução diz ao mesmo tempo da relação paradoxal (crítica) que a democracia tem com ela mesma e o tipo de intervenções (prudentes, singulares, sempre contextualizadas, jamais dadas de antemão) de Derrida no que concerne a questões políticas. (RAMOND, C. Élements d’un lexique politique. Cités 2007/2 nº 30; p.143-151)

	Nossa conclusão é, então, que a ética que se anuncia desde os primeiros escritos de Derrida é indissociável de uma política, de um questionamento permanente à propósito da democracia, e da hipótese de uma democracia por vir. Esse imperativo – pensar a democracia, cuja base é sempre o outro – está presente, por exemplo, em Do direito à filosofia (1990):
(…) em nome de uma democracia sempre por vir como a possibilidade desse «pensamento», interrogar sem descanço a democracia de fato, criticar suas determinaçãoes, atuais, analisar a genealogia filosófica, descontruí-la em fim: em nome de uma democracia cujo ser por vir não é simplesmente o amanhã ou o futuro, sobretudo uma promessa de acontecimento e o acontecimento de uma promessa. Um acontecimento e uma promessa que constituem a democracia: não presentemente, mas num aqui-agora cuja singularidade não significa a presença ou a presença a si (DERRIDA. Du droit à la philosophie. p.70).

	Fernanda Bernado escreve à propósito da posição política de Derrida: 

Um pensamento em retirada do político que, apesar do apolitismo inerente à sua hiper-radicalidade – e apolitismo apenas em relação ao conceito tradicional e sempre ainda dominante do político -,  tem de si mesmo não apenas um singular aspecto «político-democrático», como (ele) aspira e chama uma outra política: a uma outra concepção e definição do política e da democracia. O mesmo quanto à revolução. Um pensamento irredentista que porta em si mesmo uma revolução do pensamento do político, da democracia e mesmo da revolução e que, para além das partilhas caducas, não pode, no entanto, não pode reverberar que como basicamente e necessariamente «de esquerda». (BERNARDO, F. L’héritage d’une promesse – la démocratie à venir de Jacques Derrida. Revue escritura e imagens 2001; p.167)

	Mas que devemos compreender como uma democracia por vir? Quais são as aspirações dessa outra política? Derrida apresenta com detalhe, na passagem que segue, a articulação entre o dever e a democracia por vir:
Esse dever dita também de abrir a Europa, desde o cabo que se reparte por que ele é também uma costa: de abri-lo sobre o que não é, nunca foi e não será jamais a Europa. 
O mesmo dever dita também não somente de acolher o estrangeiro para integrá-lo, mas também para reconhecer e aceitar sua alteridade : dois conceitos de hospitalidade que dividem hoje nossa consciência européia e nacioinal.
O mesmo dever dita criticar (en-teoria-e-em-prática), infatigavelmente, um dogmatismo totalitário que, sob o pretexto de pôr fim ao capital, destruiu a democracia e a herança européia, mas também de criticar uma religião do capital que instale seu dogmatismo sob novos rostos que devemos aprender a identificar, e que é o futuro mesmo, não será de outra forma. 
O mesmo dever dita assumir a herança européia, e unicamente européia, de uma ideia de democracia, mas também de reconhecer que esta, como o direito internacional, não é nunca dada, que seu estatuto não é mesmo aquele de uma ideia reguladora, em sentido kantiano, sobretudo qualquer coisa que resta a pensar e por vir: não por que chegará certamente amanhã, não a democracia (nacional e internacional ou trans-estatal) futura, mas uma democracia que deve ter a estrutura da promessa – e entao a memória do futuro que porta o aqui-agora..
O mesmo dever dita respeitar a diferença, o idioma, a minoria, a singularidade, mas também a universalidade do direito formal, o desejo de tradução, o acordo e a univocidade, a lei da maioria, a oposição ao racismo, ao nacionalismo e à xenofobia (DERRIDA, J. Autre cap. p.75)

	Abertura de fronteiras, hospitalidade com o estrangeiro, reconhecimento da alteridade, respeito das diferenças: a ética porta já uma política. A desconstrução do humanismo coincide, assim, com a abertura de uma ética por vir, inseparável, como vimos nessa conclusão, de um pensamento do político, aliança que resta ainda por explorar. 
BIBLIOGRAFIA
(os outros textos estão indicados ao longo do artigo)
DERRIDA, J. Marges de la philosophie. Les éditions de minuit : Paris, 1972.
_________ D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie. Galilée, 2005.
_________ De la grammatologie. Les éditions de minuit : Paris, 1972 (2).
__________ L’écriture et la différence. Éditions du Seuil: Paris, 1967.
__________ La voix et le phénomène.  PUF : Paris, 1967.
__________ De l’esprit. Heidegger et la question. Galilée : Paris, 1987.
__________ DERRIDA, J. L’animal que donc je suis. Galilée: Paris, 2006.
CRITCHLEY, S. The ethics of deconstruction. Edinbourgh University Press : Edinbourgh, 1999.
FUH, Shyh-jen. Derrida and the problems of ethics. In: Concentric: Studies  in englise literature and linguistics. 29/01/2003; p.1-22
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KANT, E. Anthropologie du point de vue pragmatique. Flammarion : Paris, 1993.  
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NANCY, Jean Luc. La voix libre de l’homme. In: Les fins de l’homme.
NAULT, François. L’éthique de la déconstruction, “comme si c’était possible...”. In: Revue d’éthique et de théologie morale, 2005/2 (nº 234); p.9-45.
RAFFOUL, François. Derrida et l’éthique de l’impossible. In: Revue de métaphysique et morale, 2007/1 (nº 53); p.73-88.

1«E eis então que nessa Dobra a filosofia adormenceu num sono novo, não mais aquele do dogmatismo, mas aquele da Antropologia. Todo conhecimento empírico, visto que ele concerne ao homem, vale como campo filósofico possível, onde deve se descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e finalmente a verdade de toda verdade (…). A antropologia constitui talvez a disposição fundamental que comandeou e conduziu o pnesamento filósofia de Kant a nós » (FOUCAULT, 1966 ; p.353).

2 Derrida escreve, por exemplo, que «toda crítica ao humanismo que não ajunta, de início, a radicalidade arqueológica das questões esboçadas por Heidegger e que não desdobra as indicações que ele dá sobre a gênese do conceito e do valor de «homem» (retomada da paideia grega na cultura romana, cristianização da humanitas latina, renascimento do helenismo do século XIV ao XVI, etc.), toda posição meta-humanista que não se mantém na abertura dessas questões permanece historicamente regional, periódica e periférica, juricamente secundária e dependente, qualquer que seja o interesse ou necessidade que pudesse ainda guardar como tal» (DERRIDA , 1972 ; p.153).

3 Derrida transforma a ontoteologia heideggeriana numa onto-teo-teleologia. A histótia do conceito de ontoteologia remonta a Kant, para designar a prova ontológica na dialética transcendental. «Kant faz da ontoteologia a verdade inelutável da metafísica, designando por ela seu coroamento por um ideal transcendental, a prova ontológica sendo então o que pretende fechar a unidade sistemática da ontologia». Em Heidegger, a ontoteologia articula uma série de conceitos, que não podemos expor aqui. Em termos gerais, ontoteologia designa uma interpretação do ser com Deus: «o ser é compreendido especulativamente, enquanto mediação, é a unidade que assume toda particularidade e ultrapassa toda contradição. Ela é o coração lógico do absoluto». O «teo» não significa uma relação direta com a teologia como disciplina, mas indica que a lógica é teológica. Heidegger, em O que é a metafísica, explica o sentido dessa metafísica onto-teo-teleológica, e faz sua genealogia: «Precisamente por que ela porta a representação do ente enquanto ente, a metafísica é em si, dessa forma dupla e una, a verdade do ente na sua generalidade e seu mais alto cume. Ela é, segundo sua essência, ao mesmo tempo ontologia em sentido estrito e teologia (…) O caráter onteológico da ontologia não se deve, pois, ao fato que a metafísica grega foi mais tarde assumida pela teologia da igreja do Cristianismo e transformada por ela. Deve-se, sobretudo, à maneira pela qual o ente, desde a origem, se distinguiu enquanto ente. É essa distinção do ente que de início tornou possível que a teologia cristã se valha da filosofia grega para seu proveito ou sua perda, os teológos decidirão». (HEIDEGGER, M. Qu’est-ce que la métaphysique?, 1959; p.42). Les observations de cette note empruntent à la lecture de l’article de Olivier Boulnois, Heidegger, l’ontothéologie et les structures médiévales de la métaphysique. In: Revue philosophoire. 1999/3 nº 9 ; p.27-55).

4 «O domínio da filosofia em sentido cosmopolita «Weltbürgerlichen» conduz às seguintes questões: 1) Que posso eu saber? 2) Que posso eu fazer? 3) O que me é permitido esperar? 4) O que é o homem? À primeira questão responde a metafísica, à segunda a moral, à terceira, a religião, à quarta, a antropologia. Mas, no fundo, poderíamos tudo conduzir à antropologia, por que as três primeiras questões se reportam à última» (KANT, E. Logique. Vrin: Paris, 2007; p.25)

5 Zarader, J. Les vocabulaire des philosophes : philosophie contemporaine (XXe siècle). Ellipses : Paris, 2002.

6 Segundo sua etimologia, o falogocentrismo significa o imperialismo do falo e do logos, a domminação sem partilha do homem enquanto encarnação da razão soberana. Se o falogocentrismo é um tema maior da desconstrução, é por que Derrida quer recusar o caráter unitário do significante fálico. (ONDOUA, H. Jacques Derrida et la déconstruction du genre et de l’identité: vers une nouvelle approche médiatique et anthropologique. In Revue Signes, Discours et Sociétés. http://www.revue-signes.info/document.php?id=3228).

7 É preciso reconhecer que esse apagamento não é suficiente para Derrida, uma vez que a filosofia o formula, mesmo se ela considera o fora como o negativo. Em Margens da filosofia, lemos que «A filosofia também o diz: dentro,porque o discurso filosófico entende conhecer e controlar a sua margem, definir a linha, enquadrar a página, envolvê-la no seu volume. Fora, porque a margem, a sua margem, o seu fora, são fora: negativo com o qual não haveria nada a fazer, negativo sem efeito no texto ou negativo trabalhando ao serviço do sentido, margem superada (aufgehobene) na dialética do Livro. Nada se terá dito pois, em qualquer caso nada se terá feito ao declarar "contra" a filosofia ou "da" filosofia que a sua margem está dentro ou fora, dentro e fora, simultaneamente a desigualdade dos seus espaçamentos internos e a regularidade da sua orla. Seria simultaneamente necessário, po meio de análises conceituais rigorosas, filosoficamente intratáveis, e pela inscrição de marcas que não pertencem já ao espaço filosófico, nem mesmo à vizinhança do seu outro, deslocar o enquadramento, pela filosofia, dos seus próprios tipos. Escrever de outro modo.» (DERRIDA, J. Marges de la philosophie. Éditions Minuit : Paris, 1972.) Veremos que esse apagamento não é suficiente por que ele prevê ainda um dever e uma responsabilidade em direção do outro.

8 O Dasein não é o sujeito transcentral de Sartre que olha a série de perspectivas na qual o objeto transcendente e o sujeito empírico se inserem, mas é a própria abertura em direção ao aberto (o Ser) e é por isso que as definições habitualmente atribuídas ao homem não o determinam.

9 Sartre proclama o existencialismo ateu que define o homem como nada antes de o conceber em seu devir: ele será alguma coisa à partir da existência e ele será o que devém. Assim, o nada surge no mundo através da realidade humana e esta é produzida à partir do nada. A essência é posta na exisência do homem e, de certa forma, se concretisa na realidade humana.

10 CABESTAN, P. Phénoménologie, anthropologie. Husserl, Heidegger, Sartre. In: Alter, revue de phénoménologie. 23/2015; p.226-242.

11Ver, por exemplo, essa passagem de Sartre: «O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Ele declara que se Deus não existe, há ao menos um ser em que a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito e que esse ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana» (SARTRE. L’existencialisme est un humanisme. Cf. https://www.eudes-semeria.fr/api_website_feature/files/download/2557/Sartre-Existentialisme.pdf, p.3). Derrida defende a ideia que mesmo em seu ateísmo, existe uma estrutura de pensamento teológica que habita o pensamento sartreano, na medida em que o homem vem, de certa maneira, ocupar o lugar de Deus, já que ele não pode ser definido por nenhum conceito.

12 VISCHER, L. Un débat sur l’humanisme, Heidegger et E. Grassi. In: Revue philosophique de Louvain, 1995, 93-3; p.287.

13 «O humanismo de Marx não necessita de nenhuma retorno à Antiguidade, não mais que o de Sartre. No sentido largo indicado precedentemente, o cristianismo é também um humanismo na medida em que, na sua doutrina, tudo é ordenado para a salvação da alma, e que a história da humanidade se inscreve no quadro da história da salvação. Também, por diferentes que sejam essas variedades de humanismo pelo fim e o fundamento, o modo e os meios de realização, ou pela forma da doutrina, elas permanecem, no entanto, de acordo sobre o ponto em que a humanitas do homo humanus é determinada à partir de uma interpretação já fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, quer dizer, do ente na sua totalidade. Todo humanismo se funda sobre uma metafísica ou faz dela seu próprio fundamento. Toda determinação da essência do homem que pressupõe já, que ela saiba ou não, a interpretação do ente sem pôr a questão sobre a verdade do ser, é metafísica. Por isso, se consideramos a maneira em que é determinada – a essência do homem, o próprio do homem, o próprio de toda metafísica se revela em que ela é «humanista». Da mesma forma, todo humanismo permanece metafísico. Não apenas o humanismo, na sua determinação da humanidade do homem, não coloca a questão do ser como essência do homem, mas ele impede mesmo de colocá-la, não a conhecendo nem a compreendendo, por essa razão que ele tem sua origam na metafísica» (HEIDEGGER, M. Lettre sur l’humanisme. p.77)

14 «Nesse sentido, o pensamento que se exprime em Ser e tempo é contra o humanismo. Mas essa oposição não signfica que um tal pensamento se oriente para o oposto do humano, interceda pelo inumano, defenda a barbárie e rebaixe a dignidade do homem. Se pensamos contra o humanismo é por que ele não situa suficientemente alta a humanitas do homem. A grandeza essencial do homem não reposa certamente em que ele seja a substância do ente como «sujeito» deste último, para dissolver na tão célebre «objetividade», enquanto que depositário da potência do Ser, o ser-ente do ente. O homem é mais, sobretudo, «jogado» pelo próprio Ser na verdade do ser (..) (HEIDEGGER, p.87).

15 «O valor da proximidade, quer dizer da presença em geral, decide então da orientação essencial dessa analítica do Dasein» (DERRIDA, 1979, p.151).

16 «Essa estratégia não é uma simples estratégia no sentido em que se diz que a estratégia orienta a tática a partir de um desígnio final, um telos ou o tema de uma dominação, de um controle e de uma reapropriação última do movimento ou do campo. Estratégia, finalmente, sem finalidade» (DERRIDA, 1972; p.7)

17 Derrida já havia insistido em De uma economia restrita a uma economia geral, sobre a tarefa de uma redução do sentido contra a redução ao sentido husserliana: «seria necessário falar de uma epoché do sentido, de uma colocação entre parêntesis – escrita – suspendendo a epoché fenomenológica; esta última se conduz em nome e em vista do sentido. É uma redução nos desdobrando em direção ao sentido. A transgressão soberana é uma redução dessa redução: não mais uma redução ao sentido, mas uma redução do sentido» (L’écriture et la différence, Seuil, « Points », p. 393)

18 «Devo lembrar que isso contra o qual, desde os primeiros textos que publiquei, tentei sistematizar a crítica desconstrutiva, é precisamente a autoridade do sentido, como significado transcendental ou como telos, dito de outra forma, da história determinada em última instância como história do sentido, a história da representação logocêntrica, metafísica, idealista, (…) e até nas marcas complexas que ela pôde deixar no discurso heideggeriano? » (DERRIDA, J. Positions. Éditions Minuit : Paris, 2014; p.67).

19 O texto Os fins do homem recebeu, por exemplo, uma série de críticas apresentadas no livro Os fins do homem. À partir do trabalho de Jacques Derrida, onde encontram-se artigos de Luc Ferry e Alain Renault (A questão da ética depois de Heidegger) e de Jean Luc Nancy, A voz livre do homem. Cf. Lacoue-Labarthe; Nancy. Les fins de l’homme. Hermann Éditeurs: Paris, 2013.

20 Ver BLOOM, Harold; DERRIDA, Jacques; DE MAN, Paul; MILLER, J. Hillis; HARTMAN, Geoffrey. Deconstruction and criticism. Routledge&Kegan Paul ltd.: London, 1979.

21 HÄGGLUND, M. Radical atheism. Derrida and the time of life. Stanford university press: California, 2008.

22 CRICHTLEY, S. The ethics of deconstruction: Derrida and Lévinas. Edinburgh university press: Edinburgh, 1999.

23 RAMOND, C. Présentation. Politique et déconstruction. In: Derrida politique. La déconstruction de la souveraineté (puissance et droit). Revue Cités, nº30, 2007.

24 Nault, F. L’éthique de la déconstruction, « comme si c’était possible... ». In : Revue d’éthique et de théologie morale, 2005/2 nº234 ; p.9-45.

25 FERRY, Luc ; RENAULT, A. La question de l’éthique après Heidegger. In : Les fins de l’homme. À partir du travail de Jacques Derrida. Hermann : Paris, 2013.

26 Para Critchley, a recepção de Derrida no mundo de língua inglesa foi marcada por um esquecimento da questão ética. Ela caracteriza duas ondas de recepção: a da escola de Yale, composta por críticos literários (Harold Bloom, Hillis Millers, Paul de Man, Geoffrey Hartman) que publicaram juntos, em 1979, Desconstrução e criticismo, livro fundamental para a história da recepção da obra de Derrida, no momento preocupado com a ideia de apagar as fronteias entre filosofia e literatura, mas também de criar novas ferramentas comuns de crítica textual. A segunda onda é aquela marcada pela recepção filosófica da desconstrução por Rodolphe Gasché, Irene Harvey, John Llewelyn e Christopher Norris. O problema dessas duas ondas é que «elas esquecem ou menosprezam a importância da relação entre ética e a leitura desconstutiva» (CRITCHLEY, p.2)

27 Ver, como exemplo, o livro de John Caputo (CAPUTO, J. Against ethics: contributions to a poetics of obligation with constant reference to the deconstruction. Indiana University Press: Indiana, 1993): «Foi Heidegger quem pela primeira vez pôs essa ideia na minha cabeça (….). Foi Heidegger quem primeiro preencheu minha mente com esses pensamentos ímpios sobre a ética, o primeiro que me fez pensar que nós não temos necessidade de ética, que há alguma coisa a dizer para ir além da ética ou mesmo tomar posição contra a ética (CAPUTO, 1993; p.1). J

29 Christopher Norris,Uncritical Theory : Postmodernism, Intellectuals & the Gulf War, Amherst, University of Massachusetts Press, 1992, p. 18.

30 FUH, S. Derrida and the problem of ethics. Concentric: Studies in english literature and linguistcs, 2003/01,p.1-22.

31 Nault considera como exemplos dessa manifestação dos leitores, em direção de um questionamento ético: F. Guibal, « Lettre à Jacques Derrida », em Penser à Strasbourg, Paris, Galilée/Ville de Strasbourg, 2004, p. 68 ; Giovanna Borradori, « La déconstruction du concept de terrorisme selon Derrida », em Le «concept [» du 11 septembre, p. 197 ; John D. Caputo, « Beyond Aestheticism : Derrida’s Responsible Anarchy ; Continental Philosophy and the Question of Ethics »,Research in Phenomenology 18 (1988), p. 59-73 ; Olivier Dekens, « L’espace de la philosophie, note sur l’itinéraire philosophique de Jacques Derrida ». In: Études phénoménologiques 17, no 33-34 (2001), 197-207.

32DERRIDA, J. Voyous. Editions Galilée: Paris, 2003.

33 Derrida escreve: « O acontecimento desse « Vem » precede e chama o acontecimento. Ele seria isso à partir do qual há acontecimento, o vir, o por vir do acontecimento, que não podemos pensar sob a categoria dada de acontecimento. « Vem » me pareceu chamar ao « lugar » (mas a palavra lugar devém aqui muito enigmáticca) digamos em lugar, ao tempo e ao acontecimento do que na apolíptica em geral não se deixava mais conter simplesmente pela filosofia, a metafísica, a onto-escato-teologia e por todas as leituras que elas propuseram do apocalipse” (DERRIDA, 2005, p.91)

34 À propósito dessa relação e da determinação do inconsciente como alteridade radical, Philippe Cabestan escreve : « uma tal leitura [a leitura derrideana de Freud] está longe de ser sem benefício para a própria psicanálise. Ela permite a Derrida, ao contrário de uma interpretação psicanlista ou coisista do insconsciente, ditada pela dominância do ente e da entidade como presença, de agarrar o inconsciente freudiano na sua alteridade radical a todo modopossível de presença. Com efeito, por que ele não saberia se apresentar em pessoa, o inconsciente não é uma “presença a si escondida, virtual, potencial”. Ao contrário, o inconsciente para Derrida se difere. O que significa ao mesmo tempo que ele se tece de diferenças, e que ele envia ou delega mandatários sem no entanto – sublinhemos – o mandante (o inconsciente) “exista”, esteja presente em algum lugar e pudesse tornar-se consciente. Nesse sentido senti, (…), o inconsciente não é mais uma “coisa” que outra coisa, não mais uma coisa que uma consciência virtual ou mascarada. (CABESTAN. P. Spectres de Freud: Derrida et la psychanalyse. In: Revue de métaphysique et de morale 2007/1 nº53, p.61-71.)

35 Os pressupostos que orientam a ética não são naturalizados (encontramos aqui uma questão semelhante àquela de Lévii-Strauss em relação ao incesto : como uma proibição pode ser natural ? Se há uma proibição é por que havia antes a prática do que a lei interdiz. Da mesma forma, como pode haver uma lei universal, algo como uma ética ? À partir de que – a violência, a « justiça », por exemplo ? - ela tornou-se possível e aplicável?).

36 A propósito dessa relação, Fernanda Bernardo escreve : « Que pode esta conjunção [Levinas et Derrida], que pode este e dar-nos já a escutar, senão mesmo a pensar, a nós leitores e leitoras e de Levinas e de Derrida – e…e, quer dizer, imediatamente endividados a mais de um –, da singularidade da relação existente entre Lévinas e Derrida? Entre o pensamento de Emmanuel Levinas (um pensamento do infinito, do “absolutamente outro” (“Tout autre”), da “ética”, da “intriga ética mais precisamente, numa palavra, da “santidade” (kaddosh) ou da “separação”) e o pensamento de Derrida – um pensamento do impossível, da incondicionalidade, da interrupção, da “interrupção ininterrupta” mais precisamente, ou seja, do “absolutamente outro” (“tout autre”), do evento ou da singularidade? (...) uma relação de amizade e pessoal e de pensamento, essa, nada tem de banal! É antes da “ordem” do ex-cepcional, para o dizer na grafia desta outra palavra que pertence, como bem sabemos também, ao léxico filosófico de Emmanuel Lévinas: uma palavra que aponta já para a desmesura do fora-de-série e, portanto, do singular – do absolutamente singular. Do absolutamente singular ou do absolutamente outro (tout autre) que foi, como bem sabemos, a paixão do pensamento destes dois filósofos. Uma hiper-radicalidade, «uma espécie de apologia do excesso ou do desvio», dirá Derrida, que se testemunha no autrement qu’être ou au-delà de l’essence de Emmanuel Levinas e no aporético pas au-delà da desconstrução derridiana que sugerem a hipérbole ou a exorbitância de um pensamento ditado, magnetizado, locomovido e dobrado à excepcionalidade e à intangibilidade/intocabilidade do outro, do absolutamente outro, separado ou secreto (BERNARDO, F. Levinas e Derrida. “Um contato no coração de um quiasma”. Revista Filosófica de Coimbra. Nº33, 2008, p.41-43).

37 Jack Reynolds marca as diferenças entre Levinas e Derrida : « Para os propósitos desse ensaio, é significativo que em Violência e metafísica, Derrida busque revelar que, por mais que o outro qseja infinito e absoluto como o exige Lévinas, o outro deve ser igualmente reconhecido como « outro que eu ». Derrida sugere que a noção de alteridade requer esse aspecto relacional (ser outro que eu), para ser concebida. Sugerindo que a dissemtria seria impossível sem alguma forma de simetria, Derrida pouco crê em imbuir alteridade cim as qualidades do absoluto que estão envolvidas na singularidade do encontro face-à-face levinasiano. É também forçoso reconhecer que, segundo Derrida, a posição de Lévinas se trai em parte, pois o inteiramente outro só é absolutamente outro se ele é humano e, então, em parte idêntico. Enquanto Derrida está totalmente convencido de que seu trabalho evita o humanismo residual o qual ele sustenta como discernível nos primeiros trabalhos de Lévinas, insistindo sobre o fato que a alteridade deve ser « outro que si » (não sendo concebível que em relação a si), Derrida tacitamente reconhece uma verdade mínima ao que Levinas denigre enquanto que « imperialismo fenomenológico do mesmo » - a saber a noção que o outro é sempre condicionado por horizontes e contextos que o sujeito doa a essa alteridade. É um exemplo entre outros da distância que Derrida pretende estabelecer entre seu próprio trabalho e o de Lévinas. É igualmente evidente que a dívida de Derrida em direção de seu predecessor desconstrutivo não é suficiente para, por si só, justificar uma lógica de oposição enquanto este último examina a relação de Levinas com a concepção fenomenógica de alteridade » (REYNOLDS, J. L’autre de la déconstruction derridienne: Levinas, phénoménologie, et la question de la responsabilité. Revue Minerva - An Internet Journal of Philosophy; Vol. 5 2001.)

38 «O fato que Derrida não tenha estado implicado na política e na ética é um mal-entendido de longa data, mesmo se já em 1967, Derrida tivesse começado sua discussão com Emmanuel Lévinas (….). No entanto, é Nancy que tinha já sublinhado, em 1981, a força imperativa que está na raiz do trabalho de Derrida: a recorrência do é necessário – one must (por exemplo, é necessário pensar, é necessário responder) como indicação precisa dessa força. Ver: “A voz livre do homem” (…). »In: DEVISCH, I. Jean-Luc Nancy et la question de la communauté. Bloomsbury: Londres, 2012, p.193.

39 Derrida escreve: «A questão já começou, nós o sabemos e essa estranheza concernente a uma outra origem absoluta, uma outra decisão absoluta, se assegurando do passado da questão, libera um ensinamento incomensurável: a disciplina da questão» (DERRIDA; 1967; p.118)

40 “Ora quem somos nós? Aqui, não o esqueçamos, somos de início e somente determinados à partir da abertura à questão do ser. Mesmo que o ser nos deva ser dado por isso, não só estamos nesse ponto e só sabemos de «nós» por isso, o poder ou sobretudo a possibilidade de questionar, a experiência do questionamento. (…) Ora precisamente este ente que nós somos, esse «nós» que, no início da analítica existencial, não tinha outro nome que Da-sein, ele só é escolhido como ente exemplar para a questão do ser à partir da experiência da questão” (DERRIDA, J. De l’esprit. Heidegger et la question. Galilée: Paris, 1987; p.36).

41 CRÉPON, M. Vivre avec, la pensée de la mort et la mémoire des guerres. Hermann : Paris, 2008

42 Em Voyous, Derrida expõe a dificuldade de falar de democracia, por que seria impossível dar a ela um sentido único. Isso suporia um consenso sobre a significação da palavra. Assim, a democracia não tem nem conceito, nem ideia, nem essência pois ela difereria sempre dela mesma. Se a democracia tem caráter antinômico, senão auto-imunitário, como podemos falar dela com clareza ?

 
 
 

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