Parte 2 - O humanismo na história da filosofia: da humanitas latina ao humanismo por vir de Derrida
- Martha Bernardo
- 25 août 2020
- 14 min de lecture
Conversações filosóficas 2: O humanismo na Idade Média
Segunda conversa: O humanismo na Idade Média
Nós vamos falar hoje do humanismo na Idade Média. No último encontro vimos as múltiplas significações da palavra humanitas que está na origem da palavra humanismo, na tradição greco-romana e particularmente nas filosofias de Cícero e Sêneca. Aqui, vamos retomar a distinção entre humanitas em sentido estrito e humanismo em sentido abrangente, enquanto antropologia filosófica. Em sentido estrito, analisaremos as transformações que sofre o termo humanitas nas obras de Sidônio Apolinário e Jean Cassien, que escreveram no século V. Veremos que, sem abandonar seu caráter aristocrático, a humanitas, no texto desses pensadores, significa, sobretudo, hospitalidade. Em sentido mais abrangente, veremos brevemente alguns pontos importantes da dita antropologia filosófica em alguns padres da Igreja, como Justino e Taciano, bem como em Clemente de Alexandria, que escreveram no século II e, de forma um pouco mais detalhada, em Agostinho de Hipona. Nosso objetivo não é o de fazer uma análise exaustiva, mas frisar as alterações que cercam a compreensão do conceito de homem nesse período e que preparam o humanismo renascentista, que nós situaremos a partir do século XIII. Num terceiro momento, apresentaremos, como conclusão, uma certa herança da humanitas na escolástica, enquanto projeto educacional, a partir da distinção entre os humaniore litterae e os divioniores litterae, que antencendem os chamados studia humanitatis desenvolvidos ao longo do Renascimento.
Comecemos, então, pelo estudo da humanitas em sentido estrito, apoiando-nos no estudo de Emanuelle Raga, no artigo “O vocabulário da hospitalidade na Antiguidade tardia ocidental: o caso da humanitas e os novos aspectos da hospitalidade na idade do ascetismo cristão”. Segundo a autora, o dever de hospitalidade presente entre os antigos aparece, na Idade Média, como uma disposição em receber um membro exterior ao espaço doméstico, sendo indissociável da partilha dos alimentos. Os banquetes, assim, no quadro da hospitalidade, deveriam comportar ao menos um convidado. O dever da partilha de alimentos entrava em conflito com a mortificação e a dieta escassa como práticas do ascetismo cristão, considerado o modo de vida mais perfeito nessa época. Vejamos como a humanitas, no sentido de hospitalidade aparece nos textos de Sidônio Apolinário, um aristocrata e poitico romano, e Jean Cassien, pregador do ascetismo oriental.
Citemos um trecho de Apolinário: “À minha chegada, ele mesmo vem ao meu encontro, mas ele, que eu havia antes conhecido, o corpo direito (...), a voz segura (...) tinha um ar bem diferente (...). Seu hábito, seu passo, sua timidez (...) eram de um religioso (...) sua hospitalidade (humanitas) mesma, se permanecia amical, era frugal, menos abundante em carnes que em legumes (...)” (In RAGA). O trecho mostra a transformação de um homem voltado à vida publica, à vida ativa, em religioso, voltado à vida contemplativa, o que se reflete na sua hospitalidade: ele oferece ao convidado um dieta magra, composta de frutos e não de carnes, que eram o ponto alto dos banquetes. Para Sidônio, a mortificação privada não deve impedir a participação no banquete dos amigos.
Passemos agora a Jean Cassien, que referindo-se a um asceta escreve que: “partilhando então com ele, ele aceitava a comida em seu corpo, não para satisfazer sua necessidade mas por hospitalidade (humanitas) e por causa de seu irmão” (IN Raga). Vemos que a humanitas, nesse caso, comporta não apenas uma obrigação de acolher, mas um dever por parte de quem é acolhido. Esse dever de hospitalidade expressa-se também na seguinte passagem: “Quem pode ser atado à contemplação, em uma carne tão frágil, que seu pensamento não se ocupe nunca da chegada de um irmão, da visita de um doente, dos deveres de hospitalidade (humanitas) a conceder aos estrangeiros ou a toda gente que vêm?” (IN RAGA). A humanitas, nesse caso, é o que interrompe a vida contemplativa em função do acontecimento que é a chegada do outro.
Assim, como explícita Raga, a humanitas assume, ao menos nesses autores, um sentido diferente de caritas. A caritas designa, de maneira geral, o acolhimento do outro, enquanto a humanitas envolve uma partilha (no caso, de alimentos), sendo uma relação concreta de dupla via e que envolve as particularidades da vida ativa.
A humanitas distancia-se, assim, da ideia de natureza ou de essência humanas, sendo atribuída a uma atitude, a um comportamento considerado parte da boa educação e que impõe limites ao ascetismo religioso, comportando deveres e direitos.
A significação da humanitas como hospitalidade é de suma importância no mundo contemporâneo e estará presente no humanismo por vir de Derrida. Isso por que os estrangeiros, os migrantes, os refugiados, os apátridas compõem hoje o que chamamos margens da humanidade. Os direitos humanos, de caráter internacional, deveriam garantir o acesso dessas pessoas ao acolhimento e à hospitalidade nos países de destino. Vemos, entretanto, que os discursos nacionalistas e mesmo xenófobos servem como justificativa política para abandonar uma parte considerável da humanidade à própria sorte, submetendo-a à condições desumanas de vida ou mesmo à morte indiscriminada. Veremos, no nosso último encontro, que Derrida propõe como possíveis soluções para esse problema a noção de “hospitalidade incondicional” e a criação de cidades-refúgio como categorias de um humanismo por vir.
Dito isso, passemos à segunda parte de nossa exposição: se a humanitas é uma característica indispensável do homem bem formado, que dizer do conceito deste último na Idade Média? Percorremos, brevemente, em seguida, algumas concepções do conceito de homem antes de Agostinho, que preparam e fundamentam esse período, em que a grande fonte de conhecimento são as escrituras sagradas. Comecemos então por citar um trecho da Bíblia:
“Façamos o homem à nossa imagem, segundo nossa semelhança, e que ele domine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra”. (Gênese, I, v.26).
Deus é o autor e regulador de toda ordem e movimento do mundo. Imóvel, incompreensível e imutável, seu poder envolve todo o universo, sua criação. Essa seria a concepção geral do universo segundo os cristãos que perdurará por séculos, como afirma Gilson em Filosofia na Idade Média. Assim, todos os povos lhe devem igualmente homenagem, tanto bárbaros como gregos, abrindo espaço para um novo cosmpolitismo, o cosmpolitismo cristão, onde os homens são, ao mesmo tempo, o ápice da obra divina e as criaturas capazes de experimentar e avaliar a criação. Já Paulo dizia que, não importa nossa origem ou classe social, pois somos todos irmãos em Deus. A conversão ao cristianismo, baseada na superação das diferenças em nome da fraternidade, seria pois, a via direita para o destino da humanidade.
Esse fragmento da Bíblia percorre os escritos de Justino (100-165), de Taciano (120-172) e de Clemente de Alexandria (150-215) para justificar a natureza humana. Os autores antigos são mobilizados ou despretigiados em função da autoridade da Bíblia. Com efeito, Gilson explica que o termo filosofia, desde os séculos II e III, passa a ser compreendido como filosofia pagã. Mesmo reconhecendo que os gregos, principalmente através da razão, entreviram as verdades contidas nas revelações divinas, há um esforço geral e muitas vezes violento para desvencilhar-se da filosofia grega e do politeísmo, apresentando a sabedoria cristã não apenas como herdeira, mas como superior àquela, como em Justino e Taciano, seu discípulo, que escreveu, entre 166 e 171, o Discurso aos gregos, considerado por Gilson uma “declaração dos direitos dos bárbaros, isto é, dos cristãos e do cristianismo, contra os helenos e sua cultura” (GILSON, 1995; p.9). Essa distinção entre o conhecimento pagão e teológico será, como veremos, fundamental para o projeto pedagógico vigente em grande parte do medievo. Veremos que um dos esforços dos pensadores do renascimento será o de reabilitar o conhecimento filosófico, seja propondo uma síntese entre este e a teologia como em São Jerônimo, seja afirmando suas especifidades, esforço já presente na Suma Teológica de Tomás de Aquino, que defende uma certa autonomia da razão.
. Justino, a partir do evangelho de São João, afirma que o verbo ilumina todo homem e que, portanto, todo gênero humano participa do Verbo, que está subordinado ao Pai. A primeira revelação é pois a do Verbo (anterior à filosofia grega), e a segunda quando este fez-se carne com Cristo. Assim, todos os homens que viveram segundo o Verbo são cristãos mesmo antes de Cristo, havendo portanto, mesmo antes dele, anticristãos. Justino herda uma visão tripartite da natureza humana, associada a Paulo e aos estóicos, em que ela se divide em corpo, alma e espírito (pneuma). O corpo é o componente material do homem, sua parte inferior, que deve ser comandada pela alma. A alma deve ser recompensada ou punida na outra vida de acordo com suas ações, sendo esta a ideia de justiça divina. O espírito é a parte elevada da alma, que caracteriza o próprio do homem, como sede de seu intelecto. O homem é assim, responsável por seus atos, estando a noção de livre-arbítrio associada àquela de dignidade, diferente dos antigos, para os quais o homem nunca é inteiramente responsável por suas ações, sendo passível de erros, dos jogos do acaso e mesmo do capricho dos deuses.
Já Taciano se distancia claramente do paganismo afirmando Deus não como princípio imanente de todas as coisas, mas como sua causa transcendental. Deus domina toda a Criação e, causa de tudo, não possui ele próprio causa. Já que tudo deve seu ser a Deus, podemos conhecer o Criador, como diz Paulo, a partir de suas obras, as criaturas. A antropologia é assim, subsídio e complemento da teologia. Taciano divide a alma humana, em que se define sua natureza, em duas partes: a psikhé ou animus comum a todo o mundo material, de natureza material, mas diversa segundo o ente que anima. A segunda parte é o espírito ou pneuma, parte superior da alma, imaterial, onde reside no homem a imagem e semelhança de Deus.
Em Clemente de Alexandria, a ética, o combate às paixões e pecados humanos são o tema principal. Como nota Ménard, essa ética é indissociável de uma antropologia (MÉNARD, 1967, p.273). Se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, seu fim é aspirar a essa imagem e aproximar-se dela. O filósofo busca uma nova conciliação entre a filosofia grega e o cristianismo. No entanto, ele acentua o tema das origens bárbaras do pensamento grego, citando como exemplo Platão e Pitágoras. Segundo Muckensturm-Poulle, pela primeira vez, o nome de Buda aparece num texto ocidental. Os gnosofistas e sábios indianos, os caldeus da Assíria, os druidas gauleses, os magos persas são admitidos na sabedoria, ao lado dos santos da Igreja. No entanto, esse descentramento tinha ainda por base mostrar a anterioridade do universalismo cristão, que, de certa maneira, englobaria todas essas expressões e daria o sentido de uma humanidade una. Uma das bases da filosofia de Clemente é a pedagogia que, como vimos, é uma das principais significações de humanitas entre os antigos. Embora os homens sejam pecadores, o Verbo, que se expressou no logos gregos como em toda parte, Criação divina, é comum a todos eles. O único pressuposto para a ação do Verbo divino no homem é a aceitação da fé cristã, por meio do batismo. Assim, em suas obras, como no Discurso de exortação aos gregos e o Pedagogo, alternam-se, respectivamente a conversão dos pagãos na via do único e verdadeiro Deus e um tratado de moral prática para uso dos cristãos.
O fragmento da Bíblia que citamos foi usado frequentemente para justificar a dignidade humana. A dignidade e a miséria humana, a condição humana, foi um tema recorrente na filosofia teológica medieval. O papa Inocente III, em 1195, consolida o tema da miséria humana com Sobre a miséria da condição humana. Observa-se, no entanto, que a literatura em geral aborda mais o tema da miséria humana que aquele da dignidade - Deus fez o homem da poeira da terra – o que será explorado, como veremos, por Nietzsche. Esse duplo estatuto, forma, em Agostinho, no século IV, a ideia de uma dignidade humana heterônoma. A dignidade humana é dada pelo exterior, já que vem de Deus, por isso a ênfase na humildade e o resfriamento do orgulho. Uma alma doente é uma alma dominada por vícios e paixões. Sente-se o eco da moral aristotélica e estóica: “Não há melhor indício de um espírito mal formado do que a instabilidade e a permanente oscilação entre a afetação pela virtude e o amor pelo vício” (SÊNECA, 1991; p.676).
O questionamento em torno do homem, em delimitar sua natureza, é bem presente nas Confissões. Agostinho escreve: “Grande abismo é o homem, Senhor! Tendes contados os seus cabelos, e nenhum se perde para Vós. Contudo, os seus cabelos são mais fáceis de contar que os afetos e movimentos do coração” (IV, 14, 22), “Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece” (X, 5, 7), “E que sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza? Uma vida variada de inumeráveis formas com amplidão imensa” (X, 17,26). O homem é definido como magnum miraculum, milagre, maravilha, grandeza, como vemos pelas passagens que seguem: “o próprio escravo vale muito mais do que não importa que veste preciosa, pelo fato de ser homem” (Do livre-arbítrio, III, 11, 34), “Entre todos os animais terrenos ocupa o primeiro lugar o homem...” (Cidade de Deus, XII, 27, I), “Estamos acostumados a ver a maravilha que somos” (Cidade de Deus, XXII, 4), “Com efeito, de todos os milagres de que o homem é instrumento, o maior milagre é o próprio homem” (Cidade de Deus, X, 1).
Para Pirateli, em O conceito de homem em Santo Agostinho, é em si mesmo (mais precisamente no seu coração) que o homem deve encontrar a resposta para a pergunta “o que sou eu?”. O coração é o lugar da disposição ou vontade racional do espírito, e é nesse sentido que Novak escreve que “o coração é o eu do homem, é o ponto de apoio da ação divina” (In Piratelli). É no sentido dessa autoinspeção, desse conhecimento de si por si, que Agostinho escreve: “Os homens vão admirar os píncaros dos montes (...) e nem pensam em si mesmos” (Confissões, X, 8, 15).
Assim como os estóicos, Agostinho reconhece na unidade entre natureza e corpo a natureza humana: “Que o corpo se une à alma para formar e constituir o homem total e completo, conhecemo-lo todos. Testemunha-o nossa própria natureza” (A cidade de Deus, X, 29, 2). A finalidade do homem é adquirir a virtude, entendida como eficácia da alma em reger o corpo. Diferente dos estóicos, no entanto, que pregam uma espécie de libertação e um certo desprezo pelo corpo, considerado um entrave para a liberdade da alma, Agostinho defende o processo de encarnação. Como diz Sciacca (2003) “O Deus cristão encarna-se: isto foi um grande escândalo para o mundo grego, porque significa contaminar Deus com a matéria” (In Piratelli). A alma, criatura divina e, portanto, mutável, como escreve Pirateli, encontra-se inteira e espalhada por todo o corpo, que é subordinado a ela. O homem é assim um animal mortal de natureza intelectual, fazendo eco à definição aristotélica do homem como animal racional. Agostinho, entretanto, atribui uma nova faculdade ao homem, que lhe é específica – o livre-arbitrio. Pirateli escreve: “Mesmo que a alma, por natureza, não seja independente de seu Criador, poderia até contrariá-lo (pelo dito pecado), mas, sob certa pena a pagar”.
Apoiando-se não apenas nos antigos, mas também na Bíblia, Agostinho defende a ideia da superioridade dos homens em relação aos animais: “E, certamente, uma grande coisa é o homem, pois feito à imagem e semelhança de Deus! Não é grande coisa enquanto encarnado num corpo mortal, mas sim enquanto é superior aos animais pela excelência da alma racional” (citação presente no artigo de Piratelli).
Citamos a conclusão de Pirateli: “em suma, o homem fora definido como criatura, mutável, racional; todavia, por ser capaz de abrigar a Verdade – Deus -, tem um destino para além do temporal (...) Em face disso, mesmo Deus e o cosmo, para serem compreendidos, passam pelo Homem”. Assim, o conhecimento das coisas humanas, a antropologia, não é incompatível com a teologia, mesmo que esta última envolva a fé. Por isso, é de suma importância conhecer não apenas a Bíblia, mas as produções humanas em geral, pois através do conhecimento – e não pela sua negação – nos aproximamos de Deus.
Eugênio Garin, em 1938, sublinhou a estreita conexão entre o conceito de homem dos humanistas Italianos e as noções de dignidade e excelência que foram postas em andamento em Agostinho. Essas noções se encontrariam presentes nas primeiras fases do pensamento cristão, com os Padres da Igreja, como tentamos mostrar, e entre os padres gregos dos séculos IV e V (Gregório de Nysse, Saint Basile, Némésis, São João Crisóstomo), que não poderemos abordar aqui. Outras fontes medievais seriam o hermetismo e o neoplatonismo que teriam chegado ao humanismo renascentista por intermédio de Abelardo, Alain de Lille, Hugues de Saint-Victor e Guillaume Saint-Thierry. Todas essas fontes vinham subsidiar o combate contra a escolástica.
Passamos, finalmente, à terceira parte de nossa exposição. Talvez, a herança mais presente da humanitas latina com o sentido de paideia na Idade Média seja a expressão humaniore litterae, oposta e complementar à divioniores litterae, segundo Larrousse1. Ambas compõem a formação básica do indivíduo na Idade Média (a escolástica), sendo as humaniore litterae ensinadas nas faculdades de artes e as divioniores litterae ensinadas nas faculdades de teologia. Os escolásticos são aqueles que pertencem às escolas, mas o termo compreende também as pessoas letradas, quer dizer versadas no trivium e no quatrivium, formação que é uma herança romana, mas revestida, cada vez mais ao longo dos séculos, pela verdade cristã. Assim, o termo escolástico, na Idade Média, designa tanto o astrônomo, como o gramático e o filósofo, mas a partir dos humanistas do século XIV e XV, a palavra passou a ter um cunho ideológico, designando sobretudo os filósofos e, dentre estes, sobretudo os teólogos (particularmente os occamistas, os tomistas e os scotistas).
Ao que parece, presentes na Universidade de Oxford e outras, a partir ao menos do século XI, a divisão entre letras humanas, os escritos greco-romanos, e a palavra divina, exposta na Bíblia, remontam ao início da era cristã, a Tertuliano e Cassiano, no seculo II. Essa divisão, que teria se consolidado na Idade Média, permanecendo em uso até o século XVIII (como indica Souza), tem, portanto, uma fundamentação teológica e não epistemológica, o que será objeto das humaniore litterae (cuja tradução seria “letras mais humanas”) consistia tanto no estudo da Roma e da Grécia antigas, da língua e da filosofia greco-romanas, como, nos primeiros tempos, no estudo da matemática e das ciências naturais. Assim, se é verdade que a Bíblia foi a fonte maior de conhecimento da humanidade durante os quase dez séculos de Idade Média, não podemos dizer que ela era exclusiva, mas envolvia uma esforço de integração e interpretação de outras formas de conhecimento, oriundas não apenas da antiguidade greco-romana, mas do que antes era compreendido como a barbárie.
A esse esforço de separação entre as coisas divinas e as coisas humanas, opunha-se, já no século V, a obra de São Jerônimo, aclamado pelos humanistas cristãos do século XV e XVI, como Lorenzo Valla e Erasmus de Roterdã (GIBERT, 2010, p.176). São Jerônimo era o protótipo do humanista: era trilíngue, dedicava-se à tradução e à exegese de textos pertencentes à cultura judaico-cristã e à cultura greco-latina, tentando compreendê-las num mesmo e único esforço, incorporando a última à primeira. Essa tendência será retomada a partir do século XIV numa luta contra a escolástica.
Finalmente, essa confluência entre humanitas, no sentido dos humaniore litterae, e o cristianismo possuem também consequências políticas. Cassirer propõe uma convergência entre a concepção de política e aquela de homem. Ele lembra que, ao longo da alta Idade Média, onde pouco se tinha acesso às obras de Platão e Aristóteles, a concepção estóica da igualdade fundamental dos homens foi não apenas aceita, mas tornou-se a chave das teorias éticas medievais, como em Gregório ou Ulpiano. A base dessa igualdade é a razão, imagem de Deus. Assim, Santo Agostinho pode afirmar na Cidade de Deus, que se os homens têm poder sobre os animais, não o têm em relação a outras almas humanas. A autoridade do poder político não é absoluta, mas deve ser limitada pelas leis da justiça. Mesmo sendo comum o argumento de que a autoridade do governante emana de Deus, São Tomás de Aquino insiste que os súditos não são obrigados a obedecer a uma autoridade usurpadora ou injusta. Ainda segundo Cassirer: “a ordem secular não é meramente “temporal”; possui uma verdadeira eternidade, a eternidade do direito, e, portanto, um valor espiritual próprio” (CASSIRER, 2003; p.133). Assim, desde Cícero, a humanitas apesar de consistir num projeto pedagógico, possui consequências políticas.
Veremos, no próximo Conversações, a crítica dos humanistas propriamente ditos a teologia medieval, ao seu sistema de ensino e a seu modo de vida, a que eles opunham a filosofia, os studia humanitatis e a vida ativa. Longe de romperem com o cristianismo, esses humanistas deram-lhe uma nova interpretação, através de uma exegese rigorosa e conclamando outras fontes e tradições para subsidiar suas perspectivas. Não apenas o questionável movimento das Cruzadas mostrou ao Ocidente as maravilhas e as conquistas nos campos da medicina, da matemática, das ciências, das artes e da filosofia, presentes no Oriente, mas, a partir do século XV, outro movimento também questionável, o das Grandes Navegações, revolucionou completamente a imagem que o homem tinha de sua própria humanidade, gerando uma imensa e imparável discussão sobre a existência de uma natureza do homem.
BIBLIOGRAFIA
GILSON. A filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Disponível em: https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2012/04/e-gilson-a-filosofia-na-idade-mc3a9dia.pdf
RAGGA, E. Le vocabulaire de l’hospitalité dans l’Antiquité tardive occidentale : le cas d’humanitas et les nouveaux enjeux de l’hospitalité à l’âge de l’ascétisme chrétien. Hospitam, mai/2016.
Disponível em: https://hospitam.hypotheses.org/265
CASSIRER, E. O mito do estado. São Paulo: Codex, 2003.
GIBERT, J. Patrística y humanismo: San Jerônimo y San Augustín. In: Teoria del humanismo. Madrid: Editorial Verbum, 2010.
MÉNARD, J. La morale de Clément d’Alexandrie et le nouveau testament. Études d’histoire et de philosophie religieuses, 61, 1967).
Disponível em:
Muckensturm-Poulle. Clément d’Alexandrie et les sages indiens. Collection de l’Institut des Sciences et Techniques de l’Antiquité, 93, 2003.
Disponível em: https://www.persee.fr/doc/ista_0000-0000_2003_ant_903_1_2016
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultura, 1999.
__________ O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 2001.
__________ A Cidade de Deus: contra os pagãos. Petrópolis: Vozes, 1999.
SÉNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Madrid: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
PIRATELLI, M. O conceito de homem em Santo Agostinho. VIII Jornada de estudos antigos e medievais: o conhecimento do homem e da natureza nos clássicos.
Disponível em: http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2009/pdf/66.pdf
SOUZA, R. Belas letras: ascensão e queda (UERJ), p.85-93.
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