Parte 3: O humanismo no Renascimento (O humanismo na história da filosofia)
- Martha Bernardo
- 28 oct. 2020
- 15 min de lecture
Conversações filosóficas 3: O humanismo histórico: o renascimento
(a bibliografia encontra-se no corpo do texto)
No último encontro, vimos que a dignidade humana estava pautada, em alguns padres da igreja e em Santo Agostinho, na semelhança do homem com Deus, bem como analisamos a herança da humanitas romana, como projeto pedagógico, nos humaniore literae, o estudo da tradição greco-romana, como parte do currículo medieval.
Hoje, veremos o humanismo renascentista. Dada a enormidade do tema, fizemos um recorte modesto, visando nossa exposição geral nessas Conversações. Comecemos por uma breve contextualização histórica, recuperando alguns acontecimentos de impacto que marcam o fim da Idade Média e o início do Renascimento. Em seguida, focaremo-nos em alguns pensadores do período apresentando a inovação que eles introduzem: Petrarca com seu elogio ao corpo e o privilégio dado por ele à vida interior do homem, considerado em sua concretude e existência, e não em sua idealidade; Marsílio Ficino com a ideia de uma divinização do homem e uma filosofia do amor; Maquiavel, como crítico e continuador do humanismo, através de seu humanismo cívico, de sua veia republicana e de sua redefinição do conceito de povo. Por fim, apresentaremos o projeto pedagógico renascentista brevemente: os studia humanitatis. Dentre as inovações, no campo das ideias, trazidas pelo Renascimento, destacaremos uma nova concepção do corpo humano, não mais aviltado ou rebaixado, como entre os estóicos e os cristãos; a ideia do Homem-Deus, que prepara o projeto de um domínio e de um controle técnico-científico da natureza e do mundo pelo homem, tanto em Descartes como em Kant (relação que apenas mencionaremos), a redefinição do homem a partir do conceito de ação humana, que põe de lado a definição reinante do homem a partir da biologia como animal racional, para pensá-lo em função do seu contexto histórico e a partir do jogo de forças social. Essas diferenças deslocam perspectivas fundamentais presentes na Idade Média e que já mencionamos, como a primazia da contemplação sobre a ação, dos estudos bíblicos sobre os estudos humanos, da alma sobre o corpo.
Alguns pesquisadores situam o renascimento no século XII e XIII, mas a grande maioria considera como marco os séculos XIV e XV. O século XII foi palco de inúmeras transformações políticas, econômicas e sociais. O crescimento da população, possibilitado, em parte, pelas inovações nas técnicas agrícolas, traduziu-se no aumento do comércio e do artesanato, que resultou no fortalecimento dos burgos e de um novo grupo social, os burgueses. Ocorreu também, insuflado pelo movimento das Cruzadas e pelo contato com artigos orientais considerados de luxo no Ocidente, o renascimento comercial, principalmente na Itália (ponto de partida histórico do humanismo), seja pela sua posição privilegiada no Mediterrâneo, seja pelas inúmeras rotas que a interligavam a pontos diversas da Europa, onde se produziu uma grande renovação literária e artística. Também nessa época houve o espólio de traduções nos campos da astronomia, da matemática, da biologia e da medicina, bem como um grande influxo de textos gregos, a multiplicação de universidades, que possibilitaram uma revolução cultural e intelectual nos séculos seguintes. No século XIII, as cidades italianas do norte – Florença , Milão, Veneza, Gênova – conheceram um período de grande prosperidade. O movimento religioso dos franciscanos, dentre outros, dirigia-se aos pobres, exaltando a beleza do mundo natural, a dignidade humana, a relação direta com Deus. É também desse período a obra de Dante Alighieri, centrada no homem e em sua interioridade. Nessa época, os humanistas são tradutores, aqueles que trabalham com a ciências das línguas e os textos antigos. No século XIV, o humanismo manifesta-se principalmente na Itália, cuja expressão são as obras de Giotto, Bocaccio, Petrarca e Salutati. Entre os séculos XIV e XV, redescobre-se as obras de Platão, Tucídedes, Xenofonte, Heródoto, Ptolomeu, Aristófanes e Ésquilo.
No século XV ocorre uma primeira expansão do humanismo, que será visível no século XVI, na Inglaterra (com Thomas Morus) e na França (com Montaigne). O contexto dessa expansão é a invenção da imprensa protagonizada por Gutemberg, que popularizou o conhecimento, através de livros e jornais, antes propriedade da alta aristocracia. O século XV, momento de queda do Império Bizantino diante dos otomanos, também testemunhou a grande afluência de textos greco-romanos, preservado pelos sábios bizantinos em fuga para a Europa (a partir de 1453), o que produziu inúmeros comentários e traduções. Além disso, houve um incentivo e um apoio maior à produção artística, intelectual e científica, conduzidas pelo mecenas. No século XVI, o humanismo se espalha por toda a Europa. Ocorre aí a famosa controversa de Valladolid (em 1550) que opôs Sepúlveda e Boaventura a respeito da humanidade dos indígenas do Novo Mundo. Entre os séculos XVI e XVI, a centralidade do homem, do mundo terreno, também ganhou destaque na pintura, com as obras de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, Caravaggio, para citar os mais conhecidos, e na escultura, como em Donatello, Tulio Lombardo, Germain Pilon, bem como nos estudos de anatomia humana, nos quais destaca-se Andreas Vesalius. Nessas produções, o corpo com suas paixões, seus excessos, sua beleza, suas formas e seu funcionamento interior assumiram uma dimensão central e, talvez, única na história.
No século XV, encontramos em Pico Della Mirandola, no livro Discurso sobre a dignidade humana, essa supremacia do homem, não só em relação aos animais, mas ainda em relação às coisas celestes, narrativa já bem distante da humildade apregoada por Agostinho. Ele escreve: “felizmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. Coisa inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por isso o homem é dito e considerado justamente um grande milagre e um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado. (PICO DELLA MIRANODOLA; 2001, p.55). A supremacia do homem sobre a Terra e mesmo sobre o universo, o Antropocentrismo de que falam hoje os teóricos do antropoceno alcançam aqui seu auge.
Feita essa breve contextualização histórica, passemos aem revista três pensadores fundamentais do Renascimento: Petrarca, que escreveu no século XIV, Marsílio Ficino, que escreveu no século XV, e Maquiavel, que escreveu na segunda metade do século XV e começa do XVI.
Petrarca herda da Idade Média o conceito de condição humana. Entretanto, em seus textos, a condição humana não possui um sentido metafísico, como nos teólogos ou físico, como em Aristóteles, mas moral, existencial, concreto, histórico. A condição humana é atravessada tanto pelos acasos da fortuna como pelos conflitos interiores do homem. A meditação antropológica de Petrarca se inspira tanto nos antigos (Heráclito, Platão, Cícero, Sêneca) como na patrística, notadamente por Santo Agostinho. O tema privilegiado de Petrarca é o amor, que ele narra de múltiplas perspectivas em seus poemas. (LEONEL RIBEIRO DOS SANTOS. Petrarca: filósofo da condição humana. Philosophica, 34, Lisboa, 2009; p.415-437).
Contra o naturalismo aristotélico, voltado para a multiplicidade dos seres, Petrarca escreve: “De que vale conhecer a naureza dos animais e das aves e dos peixes e das serpentes e ignorar ou desprezar a naturea dos homens, aquilo pra que nascemos, de onde vimos e para onde vamos?” (IN: Leonel). Diferente dos teólogos, que justificavam a miséria da condição humana a partir do pecado original e da queda do Paraíso, Petrarca propõe “investigar a dignidade da condição humana” (LivroXVI, Ep.IX como ele escreve em carta (provavelmente de 1357), ao Grande Prior).
Não se trata ainda da defesa da excelência humana, como vimos na passagem de Pico della Mirandola, mas de um pensamento que se move na ambivalência da condição humana. Os motivos que concorrem para tornar digna a existência humana é de cunho teológico: o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. No entanto, diferente da tradição platônico-teológica insinua-se em Petrarca um elogio ao corpo. Se a alma é imortal, o corpo também é exaltado, pois está preparado para suprir a alma e prover as necessidades humanas. O segundo motivo é o lugar privilegiado que o homem ocupa entre as criaturas, já que Deus se fez homem e, ao fazê-lo, fez o homem Deus, igual ao seu Criador, incarnação esta que é espiritual e física ao mesmo tempo. Essa compreensão, de um lado faz retornar o tema da humanitas ciceroneana, em que o homem deve abandonar seu lado selvagem para tornar-se humano. Por outro lado, Petrarca, vai além, afirmando, a partir da tradição cristã, que o homem abandone sua humanidade para se tornar Deus. Só através da humanização o homem pode alcançar a divinização. Veremos, no último Conversações, que esta ambivalência é um traço constitutivo, para Derrida, da tradição humanista ontototeleológica, caracterizado por ele como essa busca de fazer do homem Deus.
Não é verdade que os humanistas esforçam-se por fixar a natureza humana, enclausurá-la. Marsílio Ficino (1433-1499) afirma, por exemplo, “O homem não nasce homem, ele se torna”. Ficino se apresenta como um sucessor de Platão e de Plotino, propondo uma conciliação ou conjunção entre neoplatonismo e filosofia. Essa última torna-se revelação, iluminação da mente, uma vez que a disposição da alma produz transformações no intelecto, tornando-o apto para recolher a luz da revelação. Na escala dos seres, o homem ocupa um papel intermediário, não sendo divino (como Deus e o anjos), nem material (como a qualidade e a matéria). Deste ponto, o homem retira sua singularidade: ele é a unidade entre esses dois pólos e participa deles através da alma. Apesar da alma ser o tecido do mundo, atravessando tanto seres celestes como os seres vivos, Ficino volta-se para a investigação da alma humana. O que singulariza a alma humana é sua parte reflexiva, a alma racional, inteligência ou espírito, no que el dialoga com a tradição.
No entanto, Ficino defende o amor platônico como meio para o homem alcançar o absoluto, aproximando-se do pólo divino de sua natureza. Fazer-se divino é amar todas as coisas em Deus. Esse parentesco evidencia-se no conceito de “espírito” cuja origem e princípio seriam os mesmos nos homens e em Deus. Deus passa a ser um correlato da consciência da dignidade humana.
Além disso, Ficino abandona a contraposição entre corpo e alma, afirmando que o homem é uma unidade sui generis do material e do inteligível (The reinassance. Philosophy of man. p. 187). Para Ficino, o ser humano justifica-se, sobretudo, pelos seus atos morais, éticos e religiosos. Diferente do homem do medievo – contemplativo, submisso aos desígnios de Deus, o homem de Ficino lança-se na vida ativa – que foi caracterizada por Hannah Arendt (em Vie active et vie contemplative au Moyen âge et au seuil de la Renaissance) como aquela do trabalho (particularmente desprezado pela tradição greco-romana e medieval), da obra e da ação, aproximando-se, neste ponto, do humanismo cívico de Maquiavel.
Para tal, Ficino propõe o conceito de “amor humanus” e toda uma filosofia do amor enquanto religião natural que ignora a inquietude do pecado e se direciona na pesquisa pela saúde, que ele denomina, retomando os estóicos, de serenidade. Segundo Lucchesi, em O livro do amor em Marsílio Ficino, o amor humano é uma preparação para o amor divino. A semelhança é a base do sistema de Ficino e é ela que induz ao amor, como vemos na passagem que segue do seu livro Comentário ao banquete de Platão: “A semelhança gera o amor. A semelhança é uma certa natureza igual em vários. Pois se eu sou semelhante a ti, tu também és necessariamente semelhante a mim. Portanto, a mesma semelhança, que impele que eu te ame assim como tu me ames, obriga-te também a me amares”. A nostalgia, o sofrimento e a melancolia que acomete os amantes ocorre pelo desconhecimento daquilo que amam no outro. Para Ficino, o que amamos no outro é a presença de Deus, a imagem imperfeita do Pai. Citamos Ficino: “Se amamos os corpos, os espíritos, os anjos, na verdade não amamos estes, mas Deus nestes. (..l então, amando (...) nós nos tornaremos homens íntegros”. A filosofia é, para Ficino, amor e regresso a Deus, escreve Lucchesi, que citamos para exemplificar o desejo do homem renascentista, muito distante do que vimos no medievo, em tornar-se, ele próprio, Deus: “O maior desejo do homem consiste em tornar-se onipotente. (...l O céu não lhe parece tão alto. O centro da Terra tão profundo. E o abismo já não lhe causa mais terror. As distâncias espaciais e temporais já não o impedem de chegar aonde bem entende. (....) Não lhe basta a conquista da Terra”. É esse desejo de Ser Deus que conduz e aparece como horizonte do conhecimento de Deus, finalidade de todo conhecimento.
Assim, com Petrarca e Ficino renova-se a concepção ontológica, o ser do homem. O que marca o modo de vida dos homens não é o amor solitário a Deus, mas o amor entre os homens, visto como correlato e como preparação necessária àquele. O amor ainda não teria sido substituído pelo racionalismo científico, do século XVII, nem pela subjugação da natureza pela ciência. Vejamos agora, com o humanismo cívico de Maquiavel, a reorientação política da Renascença.
A expressão “maquiavélico” é usada comumente para designar uma ação sem escrúpulos, perversa, para não dizer inumana. Maquiavel foi, sem dúvida, um crítico de certas ilusões do humanismo. Entre elas Claude Lefort em Formação e autoridade: a educação humanista, destaca três: a ilusão de que os dirigentes têm domínio da ciência política, a ilusão de que Deus vela pelo destino da cidade, a ilusão de que a cidade deveria revertir-se dos valores de Roma. Bruni, por exemplo, pensador humanista de envergadura, chegou a condenar uma revolta popular contra os Médici, em função do ideal greco-romanos de ordem social. Apesar da crítica que mobiliza a esses aspectos do humanismo, Maquiavel não abandona certa herança dos studia humanitatis, como o apego à história, o humanismo cívico de Bruni (como nos mostra Bignotto em O humanismo e a linguagem política do renascimento: o uso das Pratiche como fonte para o estudo da formação do pensamento político moderno) bem como mobiliza uma interpretação do humanismo baseada na ação humana. Nas palavras de Laurentis e Silva, no artigo Nicolau Maquiavel: realismo e humanismo na teoria política: “Maquiavel quer também mostrar que a ação humana – e principalmente a ação republicana, a única que corresponde à natureza do homem-cidadão – não pode ser pautada unicamente por princípios estanques que desconsiderem a natureza específica das situações enfrentadas”. O humanismo de Maquiavel teria uma base realista e, segundo Leo Strauss, materialista. Mas esse materialismo seria indissociável de uma moral social (distanciando-se da ética individual dos cristãos), e não seria absoluta, mas dependente do contexto, salvo a tirania, considerada cruel e oposta à virtude.
Maquiavel não demonstra a mesma simpatia pelo gênero humano que Ficino e Pico Della Mirandola, o que se revela na seguinte passagem dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio: “Os homens nunca fazem bem algum senão por necessidade; (...) por isso se diz que a fome e a pobreza tornam os homens industriais e que as leis os tornam bons” ou ainda que o legislador deve “pressupor que todos os homens são maus e que usarão a malignidade de seu ânimo sempre que para tanto tiverem ocasião”. Apesar dessas considerações, as interpretações de Lefort, Skinner e Cardoso defendem a hipótese não de um Maquiavel defensor da tirania e da violência, como se tornou comum, e sim de um Maquiavel republicano, que defende a existência de leis comuns a todos e considera a República o melhor regime político para tal. Assim, como escreve Cardoso no artigo Em direção ao núcleo da “obra Maquiavel”: sobre a divisão civil e suas interpretações: “Monarquias e principados em geral, mesmo quando constitucionais (..) e, portanto, capazes de garantir a segurança do povo contra o arbítrio, não proporcionam aos súditos instrumentos suficientes para impedir que o monarca violente as leis e sirva aos seus interesses próprios e não ao interesse comum. Só a República garante de modo eminente o império da lei, a liberdade, e também a virtude, em suas expressões maiores”. Para Virolli, em Machiavelli, dos regimes republicanos, o mais apto seria, para Maquiavel, o regime popular, por seu caráter inclusivo e pela liberdade de expressão que proporciona. Já Skinner defende que, em Maquiavel, há um forte apelo à ampla participação dos cidadãos na vida política. As passagens que incentivam o conflito no livro O Príncipe devem ser, segundo Virolli, contextualizadas: Maquiavel apenas admite os conflitos baseados na disputa (portanto, na constitucionalidade) e não no combate, e entre aqueles apenas os que resultam em leis. Assim, para que a liberdade, bem maior, seja preservada, é preciso que a inimizade natural entre o povo e os nobres seja regrada pelas instituições, evitando a servidão do povo na tirania e o governo das facções.
Sobre esse conflito, Ames, em Liberdade e conflito: o confronto dos desejos como fundamento da ideia de liberdade em Maquiavel e Cardoso, no artigo já citado, insistem que Maquiavel distingue duas condições diferentes: o pessimismo em relação à condição humana em geral, como citamos acima e uma pulsão própria do povo, que não resulta de sua suposta natureza ou paixões, mas pelo fato de não querer ser dominado.. Assim, continua Cardoso, “entre tirania e anarquia, alguma liberdade propriamente política só seria, assim, possível na medida em que grandes e povo consigam barrar a efetivação do desejo oposto de impor-se e de “governar sozinhos”, enquanto mantém-se ativa a rivalidade que impede a corrupção da cidade” e que não pode ser eliminada, pois não há composição possível entre as partes. Haveria, assim, segundo Lefort, uma dinâmica própria da política marcada pela cisão civil. Essa perspectiva de Maquiavel romperia com a tradição clássica que veria no progresso das leis o horizonte de uma República perfeita, apostando na figura do Legislador. Outro ponto de ruptura do discurso de Maquiavel seria o da imagem da nobreza que tradicionalmente era vista como mais culta, como mais apta para governar, como representantes de Deus e que agora são pintadas como gananciosas, arrogantes e inimigas do povo. O terceiro ponto de ruptura do pensamento maquiavélico seria o da representação do povo, considerado tradicionalmente como a turba, a plebe estúpida, anárquica e que agora aparece como guardião e promotor da República.
Esse desejo do povo portaria um conteúdo político positivo, seja na defesa da lei e de seus modos de vida, seja nas insurreições criadoras de leis e de instituições, em que se pauta, de maneira geral, a liberdade. Ao perguntar-se como esse desejo popular pode reverter-se numa atividade política construtiva, Cardoso responde: “no quadro institucional da cidade, recusar a dominação seria, então, de algum modo, implicar-se no governo; seria, para o povo, reivindicar o direito de partilhar as magistraturas ou, enfim, de participar do poder”. Mas a participação popular no governo não é suficiente: é preciso que a participação do povo no poder resguarde-se da opressão dos grande, ao invés de participar dela.
Assim, o pensamento de Maquiavel produz uma revolução no mundo político. Não se pode mais falar do Homem em geral, sem considerar sua condição histórico-social, sua ação propriamente dita, que substitui as especulações religiosas visando os fatos. O amor humano sem distinção dá lugar à luta de classes e à preservação de interesses particulares de classes irreconciliáveis, através de conflitos, tendo em vista o bem comum.
Feitos esses deslocamentos em relação à Idade Média, passemos agora a uma característica mais geral do humanismo, no sentido de compreendê-lo não como um projeto filosófico ou político, mas como um projeto pedagógico : os studia humanitatis.
Os humanistas conclamavam os concidadãos a uma vida citadina, que acompanhava um projeto pedagógico, os studia humanitatis, retomando as filosofias de Cícero e Gelius, que expomos brevemente na parte 1. Esses ensinamentos incluíam a retórica, a gramática, a poesia, a história e a filosofia moral, considerados indispensáveis à vida prática. Petrarca, por exemplo, na Carta a Tommaso de Messina escreve: “eu te exorto a melhorar junto comigo não só a vida e os costumes, o que é a primeira obrigação da virtude, mas também o hábito de falar, com o estudo de uma elaborada eloquência”. Esse trecho evoca não apenas o papel fundamental da vida terrena, mas também dos studia humanitatis. Assim, como escreve Sousa, em sua dissertação de mestrado A herança do humanismo civil renascentista na reflexão sobre história e política em Maquiavel: “Tal programa essencialmente ético-político, como alguns estudiosos atestam, era um grande projeto de renovatio humana. Com ele se estabelecia os fundamentos de uma nova paideia: verdadeira conquista da consciência da possibilidade criativa do homem”. Essa formação visa uma nova sociabilidade, aliando um projeto de educação cívica a partir de experiências históricas orientado por uma preocupação com o presente.
Além da formação do novo homem, os studia humanitatis propagavam a importância da vida civil, da vida ativa e da convivência social. Os indivíduos são exercitados a lidar com os antagonismos, mas perseverando no logos (a razão, a palavra), exigindo como solo a democracia ou, no mínimo, a República. A finalidade do saber deve ser prática, pois o conhecimento deve ser útil à vida cotidiana dos homens. Todas essas orientações direcionavam-se, como escreve Salutati, para uma redefinição da virtude.
Outro ponto relevante dos studia humanitatis são os estudos de história, antes subordinados a outras artes, como a poesia e a gramática, e então elevados à arte, operação indissociável da crítica filológicos das fontes históricas. Rompia-se, assim, como afirma Sousa, com a prática das crônicas medievais como forma de organizar os acontecimentos, as quais passaram a servir como fonte de dados para elaborar a verdadeira história. Assim, havia uma grande preocupação em bem elaborar o fio dos acontecimentos e não apenas narrá-los. Essa sabedoria das coisas passadas era vista como um modo de melhor informar os cidadãos para que pudessem julgar sobre as coisas presentes e futuras, de onde a necessidade de preservar a memória como processo de aprendizagem.
A última questão sobre os studia humanitatis que gostaríamos de ressaltar é a imitação dos antigos. Delgado afirma, em Sob o signo de Circe, que, se o humanismo tem como primeiro cenário uma Itália dividida, é esse mesmo cenário que torna possível a unificação de um sonho humanista: a reconstrução de uma civilização. Contra a ameça da guerra, como as Guerras dos Cem anos e as guerras locais, em meio ao Cisma da Igreja, e a ação dos tiranos, os humanistas opunham uma verdadeira efervescência cultural e artística, buscando nas fontes greco-romanas elementos para a ação política.
Assim, o homem do renascimento afasta-se do devoto em claustro em direção à vida social. Concede um grande privilégio à linguagem e à razão,, buscando fundamenta-se na história. Vê a si próprio como o centro do mundo, para o qual o mundo e a natureza estão disponíveis. Na política, observa-se uma grande defesa da República e dos regimes populares, em detrimentos das monarquias e tiranias.
Veremos no próximo Conversações, o humanismo em dois grandes pensadores da modernidade: Marx e Nietzsche. Sobretudo no jovem Marx, a presença do humanismo é textual. Esse homem concreto, histórico do Renascimento será compreendido, progressivamente, a partir do materialismo histórico e dialético. Exporemos a crítica feroz de Althousser ao humanismo em Marx e sua defesa por Schaff. Veremos ainda o debate sobre o humanismo em Nietzsche: a revivência e a crítica da Renascença em sua obra, bem como a ideia central para sua reformulação do humanismo, que não exclui o inumano e o para além do homem: a Grande Saúde.
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