Parte 4 - O humanismo na modernidade: Marx e Nietzsche, humanistas ou anti-humanistas?
- Martha Bernardo
- 28 oct. 2020
- 16 min de lecture
Conversações FIlosóficas 4: O humanismo na modernidade: Marx e Nietzsche, humanistas ou anti-humanistas?
Expomos, na terceira parte do nosso encontro, o humanismo no renascimento. Vimos a importância que a história e a filologia assumiram para os humanistas. Vimos também que a concepção de homem tornou-se concreta, baseada na ação, e que houve uma reabilitação do corpo. Apresentamos a defesa de uma filosofia do amor em Ficino, assim como o ideal republicano e de um governo popular em Maquiavel, cujo fundamento foi chamado por alguns comentadores de luta de classes.
Hoje questionaremos a presença do humanismo nas filosofias de Marx e Nietzsche. A questão do humanismo em Marx é longa e complexa. Nossa estratégia será então a de marcar duas posições quase antípodas: a primeira, de Althousser, defende um anti-humanismo em Marx; a segunda, de Adam Schaff, defende o humanismo em Marx como uma antropologia materialista. Apesar de serem conflitantes, defenderemos uma síntese entre essas duas posições como uma co-existência, no corpus marxista entre a economia política e a antropologia. Em Nietzsche, veremos que, a despeito da crítica de Foucault, onde Nietzsche aparece como anti-humanista, é possível falar de um humanismo nietzscheano. Abordaremos esse humanismo que dilui as fronteiras entre o humano, o inumano e o além do homem, à partir da perspectiva da Grande Saúde.
Comecemos por Marx. Althousser, em “A querela do humanismo” qualifica o esforço de Schaff em promover o humanismo marxista como um erro conjuntural. Ele chega a conclamar todos os filósofos marxistas a “expulsar toda quinquilharia Humanista” revisionista que se despeja sobre o marxismo. Ele defende, ao contrário, a tese do anti-humanismo, ou melhor, do a-humanismo marxista, que se instalaria progressivamente partindo de um materialismo humanista de suas obras de juventude como os Manuscritos de 1844 e que seria incompatível com o materialismo dialético de O Capital. Althousser apóia-se no hoje famoso corte epistemológico que marcaria rupturas sucessivas no interior da produção de Marx. Esse corte seria o de um jovem Marx ainda idealista, inspirado pelas concepções de Feuerbach, que se resumem na frase: “ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora a raiz do Homem é o Homem” e de um Marx que alcança sua própria contribuição na história do pensamento, com o materialismo histórico e dialético, através de uma ruptura com Feuerbach e de uma crítica a Hegel.
O principal representante do humanismo teórico, com o qual Marx romperia, é Feuerbach. Parra este, o homem seria, escreve Althousser “o conceito único, originário e fundamental”, sendo ao mesmo tempo sujeito transcendental e empírico. O homem seria assim o real, o sensível, o concreto propriamente ditos, além do fundamento teórico de toda a filosofia. O que Feuerbach teria sacrificado, para Althousser, seria os conceitos de História e Dialética introduzidos por Hegel. Se o homem é uma natureza, então não há história, se não há história, então não há dialética.
Marx operaria um primeiro deslocamento na teoria de Feuerbach no livro Teses sobre Feuerbach, onde o filósofo afirma que a essência humana é o “conjunto das relações sociais”, abrindo o campo para o materialismo histórico, que privilegia não a religião como em Feuerbach, mas a economia, a política, a história das lutas sociais. Assim, se Marx não rompe ainda com o conceito feuerbachiano de gênero ou essência humana, atribuiria a eles uma dimensão histórica, uma praxis histórica.
Outro ponto de ruptura de Marx com o humanismo seria a obra de Stirner, O único e sua propriedade. Segundo Althousser, o livro de Stirner teria mostrado a Marx que “o Humanismo feuerbachiano (senão todo humanismo), e portanto o Humanismo ateu (todo humanismo ateu) não é nada mais que uma forma de ideologia religiosa, a forma moderna de religião (....), histórias de pregadores, uma ideologia moral de essência religiosa, pregada por pequenos burgueses à paisana”.
Entre os efeitos desse homicídio do Homem, como escreve Althousser, destacamos dois: a passagem do Homem genérico ao indivíduo e o problema de uma teoria da ideologia, do conceito ideológico de homem e da ideologia humanista. Lembramos, de passagem, que esse problema será central ao humanismo por vir de Derrida, liberto dos paradigmas de essência, gênero ou finalidade da espécie humana.
Assim, desde A ideologia alemã não seria mais o Homem o sujeito da história, mas o indivíduo concreto, empírico, vivendo em condições materiais sócio-históricas. Citamos Althousser: “Em face desses indivíduos empíricos (...), que exteriorizam objetivamente suas “forças essenciais” em um processo de alienação que, pelo efeito de divisão do trabalho, separa-os de seus produtos e de suas condições de existência, que os dominam então como uma força estrangeira (..), enfim, face aos indivíduos, não se encontra mais o Homem”.
Finalmente, em O Capital, Althousser declara o fim do humanismo teórico em Marx. Aí, não se trataria mais da história dos homens ou de partir dos indivíduos, sendo os conceitos principais da ciência da história, os de modo de produção, forças produtivas e relações de produção, superestrutura jurídico-política e ideológica. Althousser argumenta que essa concepção genérica de Homem, que ele associa ao jovem Marx, não se adéqua ao materialismo histórico e dialético. Afirmar uma especificidade do homem – como o trabalho – para além das estruturas sociais espaço-temporais, seria o fundamento de uma antropologia especulativa e abstrata. Em segundo lugar, supor o homem como sujeito da história é esquecer que a história é um processo dialético sem sujeito, proposição que Marx manteria de Hegel. Dizer que não há um sujeito na História ou na Natureza é dizer que não se pode determinar em um dado momento do processo, um sujeito que seja sua causa ou origem. Todo processo envolve n variáveis em jogo.. Nesse sentido, as filosofias de Marx e Hegel distanciar-se-iam da antropologia filosófica, na qual o homem é o fundamento e a origem, para afirmar a autonomia do processo em si mesmo do qual os indivíduos são parte integrante. Em terceiro lugar, a visão da história fora de um processo dialético, como em Feuerbach, faria com que a alienação seja percebida não no campo das transformações de um processo histórico, mas no campo das significações. A desalienação ocorreria, portanto, na consciência do homem e não através do combate ativo nas barricadas, constituindo a base do revisionismo que Althousser condenava no humanismo teórico de Feuerbach-Marx.
Adam Schaff, em O humanismo marxista, de 1968, assim como Althousser não pensa os múltiplos significados que o humanismo assumiu ao longo da história e o define como “um sistema de reflexões sobre o homem para o qual o homem é o bem supremo, e que busca assegurar na prática, as melhores condições de felicidade”. Veremos que, para Derrida e como tentamos mostrar nessas Conversações, o humanismo dificilmente pode ser reduzido a uma definição única, dada sua multiplicidade constituinte.
O marxismo, para Schaff, é um humanismo radical, de onde sua força de atração sobre os oprimidos que querem suprimir, na prática, os obstáculos à sua felicidade – proposição que parece ter sido recebida jocosamente por Althousser que proponha o conceito absurdo de um “humanismo de classe”, um humanismo restrito aos operários contra os burgueses, e, portanto, um humanismo que só consideraria uma parte da humanidade. Como o artigo de Althousser abre-se com uma crítica a Schaff e desenvolve uma longa oposição ao humanismo teórico, pensamos que é uma definição desse tipo que Althousser têm em mente quando escreve sobre o humanismo.
Para Schaff, a antropologia seria a chave da concepção de mundo de Marx. A crítica da religião chega a essa doutrina “em que o homem é, para o homem, o ser supremo. Ela chega então ao imperativo categórico de reverter todas as condições sociais onde o homem é rebaixado, sujeitado, abandonado, desprezado”. Não se trata aqui, nos parece, de uma pregação religiosa, ao menos no sentido que Althousser acusa o humanismo marxista, pois o homem não é o ser genérico e sim aquele submetido à condições sociais. Nem se trata, a nosso ver, de um pensamento pequeno-burguês, pois Schaff conclama a todos à justiça social.
A primeira especificidade desse humanismo é que se trata de um humanismo realista, expressão do próprio Marx, quer dizer, um Humanismo materialista baseado no indivíduo real, concreto, por oposição às tendências idealistas e espiritualistas, que aproximam a natureza humana da consciência ou do espírito. Compreendemos, assim, que o homem de que fala Schaff não é um homem genérico, mas sim o indivíduo em sociedade. O humanismo de Schaff marca assim, de início, sua distância de Feuerbach, que seria para Althousser uma das bases do humanismo marxista. A segunda característica, é que esse seria um humanismo autônomo, no sentido de que independe de especulações religiosas ou potências supra-mundanas, já que afirma a ideia de que, transformando o mundo, o homem pode criar seu próprio mundo e essa natureza criadora tem consequências diretas e indiretas no seu desenvolvimento, afastando, pois, Schaff do humanismo marxista cristão. A terceira característica é que se trata de um humanismo combativo, associado à luta revolucionária. Não se trata, pois, de um humanismo dirigido à consciência, nem que foge das barricadas, como havia afirmado Althousser. Schaff cita o Marx da Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel: “Da mesma forma que a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas intelectuais. E desde que o clarão do pensamento terá penetrado a fundo esse simplório terreno popular, os Alemães se emanciparão e se tornarão homens”. Assim prossegue Schaff: “A chave de concepção do mundo de Marx se encontra em sua antropologia. Marx parte do indivíduo vivo, real; ele parte não de uma contemplação do mundo, mas da ação, da transformação do mundo (...) compreendendo por ação, a ação humana”. É no sentido de liberar o homem de sua redução às estruturas criadas historicamente por eles (ponto ao qual Althousser parece bastante conectado), que Schaff fala da possibilidade de um processo de auto-emancipação do homem e investe na sua capacidade de auto-criação. Cito Schaff: “O socialismo de Marx, é fundado precisamente sobre a ideia de auto-emancipação do proletariado; este, para se liberar enquanto classe deve liberar a humanidade inteira. Se quiser realizar-se, esse humanismo deve admitir o princípio da luta e tornar-se, assim, um humanismo combativo”. Trata-se, para Schaff, de criar uma sociedade sem classes, um humanismo integral visando todos os homens. Outro ponto de partida do humanismo marxista seria o protesto contra a desumanização do homem que ele rebate com um “amor do homem” compatível com uma raiva do inimigo, o sistema de produção capitalista. Assim, para Schaff, a raiva nos comunistas é consequência de um amor impedido por circunstâncias exteriores, diferente dos fascistas que partem de um ódio aos homens, o que Schaff qualifica de anti-humanismo.
Althouasser, no entanto, tem razão quando afirma que os humanistas marxistas, como Schaff, apóiam-se em obras anteriores ao Capital. Fica a pergunta: seria a evolução da obra de Marx incompatível com certas linhas de continuidade com o humanismo? Para além da crítica do humanismo histórico, não teria Marx elaborado um outro humanismo? O que podemos tirar dessa querela entre o anti-humanismo e o humanismo de Marx? Althousser atualiza o pensamento marxista com base na crítica estruturalista. Com ele, aprendemos que a crítica mobilizada no Capital, com pretensões científicas em relação à economia política, não pode ser reduzida a uma antropologia, visto que a história é um processo sem sujeito. No entanto, defendemos aqui que essa antropologia co-existe no texto marxista, como mostra Schaff, não sendo estranha a essa ciência que é a economia politica, mas seu complemento indissociável, bastante presente em sua obra de juventude e cujos ganhos, mesmo se subordinados à economia política, encontram-se presentes no Capital como orientação geral do comunismo. Defendemos que, com essa visão de conjunto, associando economia política e antropologia, podemos melhor compreender Marx, síntese que não poderemos fazer aqui. Apontamos apenas, seguindo Schaff, que esse amálgama contempla todo um pensamento da diferença e da diversidade humana em Marx, bastante estrangeiro à herança stalinista e às práticas do Partido Comunista adotadas por Althousser.
Passemos agora a Nietzsche. Para Foucault, Nietzsche é um precursor do anti-humanismo. Isso por que em sua obra abalar-se-ia o fundamento do humanismo moderno: o discurso fundado no Eu. Nietzsche inauguraria o que Foucault denomina pensamento do fora, através da multiplicação de máscaras – principalmente no livro Ecce Homo – que, jogando entre o inumano, o demasiado humano e o além do homem, explodiram a noção de subjetividade cartesiana. O nome próprio Nietzsche seria o guarda-chuva de uma multiplicidade que não se diz mais de um centro – o sujeito – impossibilitando qualquer unidade possível sob a qual pudesse etiquetar-se o rótulo humanidade. Considerando a crítica de Foucault, veremos com Constatinidès, Gontier, Ponton e Faustino em que sentido pode-se falar de um humanismo nietzscheano.
Apesar de reconhecer que a palavra humanismo é portadora de um problema fundamental, na medida em que ela pretende dizer o que é o humano, deixando escapar o inumano como impróprio do homem, apoiando-se, geralmente numa visão moral de mundo, Constantinidès escreve: “Não é exagerado afirmar que Nietzsche é um humanista, na medida em que sua obra inteira se apresenta como uma tentativa para enobrecer o homem, torná-lo mais forte”. Ele se opõe simplesmente ao humanismo moral, cujo fim é o de domesticar o homem como adestramos a natureza selvagem (...)”. Ele cita uma passagem de Nietzsche de 1872, em La nuit chez Homère (não encontrei tradução para o português)): “Quando falamos de humanidade, fundamo-nos na ideia que ela poderia bem ser o que separa o homem da natureza e dela o distingue; mas, em realidade, essa separação não existe: as propriedades naturais e aquelas que dizemos ser propriamente “humanas”, estão misturadas de modo indissociável. Em suas faculdades mais nobres e mais elevadas, o homem é inteiramente natureza e porta em si a estranheza dessa dupla característica natural. Suas aptidões duvidosas e que temos por inumanas são talvez mesmo o solo fecundo de onde pode surgir alguma humanidade sob a forma tanto de emoções, como de ações e obras”.
O nascimento da tragédia (1872) conteria essa crítica implícita ao humanismo moral, na medida em que este se distancia da visão trágica do mundo e do que nela ultrapassa a medida humana. Às verdades do sábio, do homem de letras, à mistificação humanista do conhecimento, a tragédia oporia a ignorância, constituiria a ignorância não como algo a ser superado, mas como parte constitutiva do conhecimento. Além disso, as tragédias mostram o lado inumano do homem, que teria sido, segundo Nietzsche, paulatinamente excluído do pensamento pela moral socrático-cristã. Essa crítica ao humanismo, não impede que Nietzsche desenvolva um olhar especial sobre o Renascimento já em Humano, demasiado humano (1878).
Segundo Gontier, ocorre uma transformação da apreciação de Nietzsche sobre a Renascença, a partir do aprofundamento e da postura crítica em relação à obra de Buckhardt. Se, em seu curso de filologia de 1871, o Renascimento era visto como um movimento de reforma passadista, que, entretanto não soube reviver com vigor a expressão maior do gênio grego – a tragédia, em Humano, demasiado humano sua avaliação encontraria um ponto de virada, como vemos na seguinte passagem: “A Renascença italiana encobre em seu seio todas as forças positivas às quais se deve a civilização moderna: a emancipação do pensamento, o desdenho das autoridades, o triunfo da cultura sobre a insolência do nascimento, o entusiasmo pela ciência e o passado científico da humanidade, a liberação do indivíduo, a chama da veracidade, a aversão pela pura aparência e a pesquisa do efeito (...). Melhor ainda, a Renascença tinha forças positivas que não encontraram ainda, até o presente, a mesma potência na nossa civilização moderna. Ela foi a idade de ouro desse milênio, apesar (...) de todos seus vícios”.
Já em O Anti-Cristo (1888), Nietzsche escreve que: “Não houve questão mais crucial que aquela que colocava a Renascença – minha questão é a mesma que ela colocava”. Essa questão, ele explícita, é aquela de uma alta civilização, de sua emergência, de seu declínio, de seu valor e, sobretudo, como ela pode tornar-se um remédio para os males contemporâneos. Nesse mesmo livro, Nietzsche se opõe veementemente ao humanismo judaico-cristão, que culpabiliza e avilta o homem como pecador e algo de vergonhoso. Ele mobiliza uma crítica ao idealismo, a uma certa ideia de homem que desvaloriza o homem real; além de uma crítica a uma ideologia do progresso, pois a humanidade, para Nietzsche, não se aproximará de uma perfeição almejada, pelo contrário, é preciso aceitar e suportar o homem como ele é.
Ponton afirma que essa crítica ao humanismo é contemporâneo ao projeto de um novo humanismo, que consistiria em afrontar as coisas humanas, levando em consideração inclusive o demasiado humano, do qual devemos nos liberar e purificar, mas também afirmar, pelo riso e pela festa. Para Ponton, Humano, demasiado humano é um livro anti-idealista e anti-metafisico, pondo em marcha o método crítico-genealógico, bem como um realismo antropológico. A tradição clássica, notadamente Platão, mas como vimos, também os estóicos tendem a excluir as coisas demasiado humanas, em nome de uma aproximação com o divino. Ou melhor, eles associam a essência do homem às coisas mais nobres. Contra essa tendência, Nietzsche afirma que o filósofo deve, em realidade se ocupar das coisas realmente humanas, que seriam o próximo, o pequeno, o fraco, contingente, evanescente, problemático, absurdo e ilógico, explorando o devir e a multiplicidade do sensível.
Quanto ao demasiado humano, Nietzsche o associa, segundo Ponton, a tudo que é feio, mesquinho, pequeno, desprezível no homem. Mas o demasiado humano não é um privilegio de uma classe, de um povo, de uma identidade, como vemos na afirmação de Zaratustra: “Em verdade, mesmo o maior (homem dentre eles), achei-o demasiado humano” ou ainda “o maior homem e o menor: muito semelhantes um ao outro”.
Seria nesse sentido que Nietzsche veria uma certa superioridade dos gregos em relação aos modernos. Nietzsche escreve: “Os gregos ofereciam por assim dizer festa a todas as suas paixões, a todas as suas más tendências naturais, e haviam mesmo estabelecido uma espécie de programa de festividades de seus lados demasiado humanos” e, em outro trecho: “em lugar de aviltar (seus lados demasiado humanos), (os gregos) (...) nomeavam divino tudo o que tem alguma potência no homem, eles o inscrevem sobre os muros de seu céu” ou ainda “sem crueldade, não há festa”. Os instintos baixos tinham, pois entre os gregos, instituições sociais por meio da qual liberar-se e satisfazer-se, sendo a tragédia uma delas É precisamente essa inumanidade dos gregos que traduziriam seu humanismo superior, seu amor pelas coisas humanas, sua ausência de vergonha em ser homens. Assim, finaliza Ponton: “tornar-se homem, é ao mesmo tempo se liberar das coisas demasiado humanas e aceitá-las, reconhecer nelas um direito de existência”. A fórmula desse novo humanismo, desse amor pelos homens que passa pelo desgosto dos homens seria assim expressa em O crepúsculo dos ídolos: “O homem verdadeiro não vale infinitamente mais que não importa qual homem, inventado a golpes de desejo, de sonhos, de grosseiras mentiras? Que não importa qual homem ideal?”
Assim, à ideia cristã de uma igualdade entre todos os homens, Nietzsche oporia a dessemelhança e a diferença entre eles. Esse humanismo superior não seria, então, um projeto coletivo, como bem descobre Zaratustra ao ser desprezado em praça pública pelo povo ao tentar divulgar sua doutrina do super-homem, mas seria um projeto individual.
Destacamos, a seguir, um aspecto desse projeto pedagógico em Nietzsche, revelador de sua antropologia: a Grande Saúde. Seu projeto filosófico, em certo sentido, se confunde com uma medicina, ideia que será desenvolvida por Nietzsche em A Gaia Ciência. (1887).
A grande saúde não se contenta com o homem atual e promove um outro ideal de bem-estar, ao mesmo tempo humano e sobre-humano, que parecerá frequentemente com o inumano. Segundo essa perspectiva, Faustino defende que a filosofia em Nietzsche deve ser vista como uma terapêutica, e não como uma busca pela verdade ou apenas como uma crítica da cultura. O filósofo é aquele que diante da doença – que nós tratamos aqui como o rebaixamento moralizante do homem pela cultura judaico-cristã – avalia os sintomas e emprega um diagnóstico, adotando uma terapia. Assim, em Humano demasiado humano, dentre as tarefas que ele propõe para a filosofia, ele escreve: “defender a vida contra a dor e destruir todas as conclusões que, como cogumelos venenosos, tendem a crescer da dor, da desilusão, do tédio, do isolamento e de outros terrenos pantanosos”. Para Nietzsche não existe uma saúde pura, sendo às vezes mesmo necessária a doença, para produzir forças de combate e de superação em um indivíduo. Assim, a transvaloração do conceito nietzscheano de saúde consiste não em pensá-la como um estado pleno, mas como uma relação dinâmica visando a luta contra o sofrimento e a doença que são, pois, parte integrante do processo, e não algo que possa simplesmente ser eliminado.
Nesse mesmo livro, Nietzsche defende uma doutrina da saúde recomendada como disciplina voluntária às gerações vindouras, como o caminho para uma nova saúde. Em A Gaia Ciência, ele escreve sobre um novo filósofo, o “médico filósofo, no sentido excepcional do termo”. Se a saúde é um critério para a filosofia nietzscheana, esse critério passa, segundo Faustino, por uma transvaloração. Em primeiro lugar, a saúde não seria um conceito fechado e universal, independente das particularidades de um indivíduo, segundo uma norma geral. Assim, a terapia seria algo de absolutamente individual que depende, segundo Nietzsche “do teu objetivo, do teu horizonte, das tuas forças, das tuas impulsões, dos teus erros, e, especialmente, dos ideais e dos fantasmas da tua alma”. A saúde é, pois, fluida, relativa a cada organismo e o que provoca saúde numa pessoa pode adoentar outra. Para cada indivíduo deve haver uma dieta específica assim como uma singular economia de valores, como vemos na seguinte passagem de A Gaia Ciência: “A famosa fórmula médica da moral, “a virtude é a saúde da alma”, teria, pelo menos, para ser aproveitável, de ser alterada da seguinte forma: “a tua virtude é a saúde da tua alma”. Pois uma saúde em si não existe (...) existem incontáveis saúdes do corpo.” Qual o critério, então, dessa saúde esvaziada de uma definição geral? Faustino defende que a vontade de potência é uma noção central para a antropologia nietzscheana e permitiria compreender melhor a ideia de uma Grande Saúde. A vontade de potência seria o oposto de uma essência ou natureza, pois significaria conceber o homem e o mundo como forças, criação, transformação, mudança intermitente. O mundo da vontade de potência não é o das substâncias, mas os das relações – existem sempre muitas forças em jogo, limitando-se umas às outras. Contra a ideia de Darwin de que o que predomina nos seres vivos é uma tendência à conservação da vida, Nietzsche afirma a vontade de potência dos viventes como uma força de afirmação e de prevalência sobre as outras forças e que estaria na base de toda valoração. Assim, longe de opor-se à cultura, escreve Faustino, a vontade de potência explica seu desenvolvimento e pretende orientá-la. E a potência de uma vontade está relacionada com a quantidade de sofrimento que um indivíduo pode suportar e transformar em seu proveito.
Dessa forma, a Grande Saúde, seria, por assim dizer, a saúde normal, mas, escreve Faustino, “maximizada, superlativada ou exponenciada, tanto quantitativa como qualitativamente. A sua peculiaridade consistirá, assim, por um lado, na sua extraordinária força, plasticidade, persistência, audácia e robustez (..) mantendo a capacidade de superar (as doenças) e, assim, de se superar também a si mesma, num movimento contínuo de auto-regeneração, fortalecimento e superação” (p.249).
Finalmente, tentamos mostrar que a recepção por Marx e por Nietzsche do humanismo é textual, mas encerra não apenas uma crítica mais ou menos violenta à tradição, como possui especificidades e ressignificações. Marx com a ideia de estrutura e de revolução das estruturas, Nietzsche com o inumano e o além do homem onde se inscreve o tema da Grande Saúde, modificaram, talvez permanentemente, o solo a partir do qual se pensa a humanidade.
No próximo Conversações, veremos o anti-humanismo de Heidegger e de Foucault. Para Heidegger, o humanismo é indissociável da metafísica, junção que deve ser ultrapassada em função de um outro plano de pensamento. Para Foucault, o humanismo é inseparável da metafísica moderna da subjetividade, que se revela, sobretudo, na linguagem, devendo dar lugar para uma nova forma de investigação sobre a organização e constituição dos saberes, particularmente da antropologia, bem como a uma nova experimentação da linguagem que ele qualifica como o pensamento do fora e que teria sua expressão em Sade, Nietzsche, Artaud, Bataille, entre outros.
Bibliografia
Marx. Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. O Capital (livro 1). São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Althousser. La querelle de l'humanisme. In: Écrits philosophique et politiques I e II. Paris: Éditions Stock/Mec, 1995.
Schaff, A. L'humanisme marxiste. Revue L'homme et la société, 7, 1968.
Nietzsche. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1977.
______. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
______. A Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das letras, 1999.
______. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
Magnard, P. Nietzsche et l'humanisme. Noesis, 10, 2006.
Ponton, O. L'inhumaine humanité des Grecs ou comment surmonter le dégoût de l'homme. Noesis,10, 2006.
Gontier, T. Nietzsche, Buckhardt et la question de la Renaissance. Noesis, 10, 2006.
Constantinidès, Y. “Le désert croît...” Nietzsche et l’avilissement de l'homme. Noesis, 10, 2006.
Faustino, M. Nietzsche e a grande saúde. Para uma terapia da terapia (tese). Universidade Nova de Lisboa, set, 2013.
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