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Parte 5: O anti-humanismo de Heidegger e Foucault

  • Martha Bernardo
  • 29 oct. 2020
  • 17 min de lecture

Conversações Filosóficas: O Humanismo na história da filosofia: da humanitas latina ao humanismo por vir de Derrida

Vimos, no último Conversações, a questão de um certo humanismo em Marx e em Nietzsche. Hoje trataremos do anti-humanismo em Heidegger e Foucault. Em Heidegger, esse anti-humanismo foi muitas vezes interpretado como uma defesa ideológica do nazismo, como no livro de Emmanuel Faye, Heidegger, uma introdução do nazismo na filosofia, interpretação esta considerada por vezes delirante, como em Mattié, que cede apenas na consideração de certa passagem de Heidegger pelo nazismo, entre 1933 e 1935, onde se inscreve seu famoso discurso do reitorado, conclamando a juventude universitária a unir-se à grande empreitada nacional-socialista. Longe do terreno do nazismo, trataremos também do questionamento de Derrida ao etnocentrismo, e ao viés colonizante da crítica ao humanismo de Heidegger, que permaneceria, para o filósofo franco-argelino, umbilicalmente ligado ao humanismo, apesar de seu objetivo de superá-lo, numa direção contrária a Sloterdijk, que vê em Heidegger um pós humanismo. Quanto a Foucault, abordaremos sua crítica ao humanismo, que incide particularmente sobre a subjetividade moderna, cartesiana, ao que ele contrapõe o pensamento do fora. Veremos que a arqueologia nos apresenta uma outra visão da história, onde a antropologia filosófica é vista como um determinado momento na organização dos saberes no mundo moderno e contemporâneo. Por isso, Foucault falará de um fim do humanismo e de um certo homicídio do homem, enquanto submetido, como objeto, ao método científico.

Comecemos, no entanto, por uma breve introdução desse anti-humanismo no mundo contemporâneo.

Tornou-se um certo lugar comum classificar a filosofia francesa contemporânea e alguns pensadores do período como anti-humanistas. O termo “anti-humanismo” foi criado por Jacques Maritain para qualificar as filosofias de Marx, Nietzsche e Freud e que teriam sua ressonância na atualidade. No último encontro, vimos essa querela na obra de Marx e em que sentido se poderia falar de um humanismo em Nietzsche, para dizer que esta interpretação não faz consenso entre os comentadores.

Mais próximo de nós, Philippe Lacoue-Labarthe (1987) relança a polêmica, afirmando que “o nazismo é um humanismo”, já que defende uma certa concepção de homem, de humanitas. Também Claude Lévi-Strauss escreve, em uma entrevista para o Le monde, de1979, o seguinte: “é contra isso que me insurgi, e no que sinto profundamente a nocividade, é nessa espécie de humanismo sem-vergonha saído, de uma parte, da tradição judaico-cristã, e, de outra parte, mais perto de nós, da Renascença e do cartesianismo, que faz do homem um mestre, um senhor absoluto da criação. Tenho o sentimento que todas as tragédias que vivemos, de início com o colonialismo, depois com o fascismo, enfim, os campos de concentração, se inscrevem não em oposição ou em contradição com o pretendido humanismo sob a forma que praticamos há séculos mas, diria, são quase seu prolongamento natural”.

Faye defende a filosofia como humanismo e o anti-humanismo como não filosófico, o que é questionável visto que o anti-humanismo por vezes tenta reconhecer e superar o humanismo histórico, o que não significa ir em direção à barbárie. Ele colheu muitas evidências à partir de obras, conferências, cartas de Heidegger e relatos dos que conviveram com ele. Segundo sua tese, o pensamento de Heidegger estaria a serviço do nazismo, o que, para Lacoue-Labarthe não exclui a elaboração de uma concepção do homem e de uma pedagogia para alcançá-lo.

Haveria uma contradição na conjunção entre humanismo e nazismo? A partir da história do humanismo, pode-se concluir que este acabou transformando-se no seu contrário, ao expulsar da essência humana uma parte da humanidade, como é o caso dos bárbaros, dos infiéis, dos indígenas, dos migrantes. Ao revisitarmos essa história, comentamos sobre esses aspectos estarrecedores do humanismo histórico, enfatizando também seus avanços. Esse percurso visa um objetivo: mostrar a desconstrução do humanismo por Derrida e sua reconstrução desse conceito, tema do nosso próximo e último encontro. Considerando a história do humanismo pode-se, sim, afirmar que o nazismo é um humanismo. Mas apresentando, em contrapartida, a evolução desse tema em Derrida (poderíamos citar também outro autor que não abordaremos aqui: Lévinas), nada estaria mais nos antípodas de um humanismo por vir do que o nazismo. Em primeiro lugar, o humanismo por vir apoia-se não na noção de raça, mas na de margens. Essas margens estão em perene intertradutibilidade, em direção de uma democracia sempre por vir, pois nunca acabada, não se deixando subjugar por uma raça superior, nem pela potência do Estado. Em segundo lugar, o humanismo por vir não se apoia no biologismo, nos genótipos ou fenótipos para hierarquizar os seres. Ao contrário, trata-se de um humanismo estendido, que considera não apenas a perspectiva humana, mas mesmo a dos animais, como fica evidente no livro O animal que logo sou, não estando alinhado à perspectiva do homem como senhor da natureza, da qual tem o domínio e o controle. Em terceiro lugar, esse humanismo não está fundado sobre as noções de “sangue” ou “solo”, mas na ideia da coexistência das diferenças. Em quarto lugar, esse humanismo é um novo cosmopolitismo, capaz de abrigar todos os povos sem distinção, de onde se conclui que jamais um povo poderia ser eleito como seu detentor. Poderíamos enumerar, assim, uma lista longa do porquê o nazismo não é um humanismo tal qual ele se desenvolve na obra de Derrida. Além disso, o termo humanismo resiste, para lá de Derrida, como tentamos mostrar nessas Conversações, pela perspectiva antropológica e histórica que introduz na reflexão filosófica, por seu espírito crítico e racionalista, por sua relação com a democracia e os governos populares, por seu caráter por vezes revolucionário, pelo tema da hospitalidade como ética, entre outros. Uma posição maniqueísta não consegue, pois, atingir o problema do humanismo, sendo em tudo contrária à proposta desconstrutiva de Derrida.

Levantamos essas questões como preâmbulo de nossa discussão com Heidegger, não para isentá-lo completamente das afirmações de Faye, nem para instaurar um novo auto da fé de suas obras, mas para mostrar a complexidade do terreno que, por ora, adentramos.

Quando Heidegger escreve Carta sobre o humanismo, criticando a relação entre o humanismo e a metafísica ele tem em mira uma nova dignidade humana. Separando completamente o homem da animalidade, Heidegger defende seu ser próprio, que seria o de interpretar o próprio Ser. Para Faye, o humanismo em Heidegger seria não apenas a afirmação de uma superioridade dos homens sobre os animais, mas da superioridade dos alemães em relação à humanidade. O humanismo, em Heidegger, comportaria a afirmação de um humanismo nazista, o que para Faye, é sinônimo de um anti-humanismo.

Nós nos deteremos aqui no texto Carta sobre o humanismo, em que estas afirmações de Faye, ao menos nas traduções portuguesa e francesa, não encontram lugar. Além disso, como bem esclarece Mattéi, o estudo de Faye não analisa a fundo a filosofia de Heidegger, apressando-se, a nosso ver, em destacar uma cumplicidade entre esta e o nazismo, sob o argumento de que a escrita de Heidegger seria criptografada, escondendo seus reais objetivos, hipótese que consideramos, no mínimo, muito arriscada. Assinalamos, porém, sua leitura de Heidegger como algo que merece maior atenção nas pesquisas, e nos conduz a um certo cuidado na abordagem desse autor.

Sem posse desses documentos, Derrida interpreta essa dignidade de que fala Heidegger como o que está por vir (não tendo em mente certamente que esse por vir se confunda com o estado nacional-socialista, como o pretende Faye), como a essência contida num futuro que ainda não chegou, mas que já está presente. Para Derrida, Heidegger não poderia ser, por razões históricas, um ideólogo do nazismo, como gostaria Faye, mas como pensa Mattéi, um grande filósofo, que marcou profundamente toda pesquisa sobre o humanismo através da genealogia e da interpretação que produziu deste. Faye mostra que, em inúmeros textos consultados mais recentemente, essa dignidade está ligada ao destino da comunidade ariana, excluindo todo estrangeirismo e centrando-se sobre o Estado, e que, mesmo entre os arianos, em um manifesto publicado por estudantes nazistas, numa cerimônia de queima de livros judeus da qual Heidegger participou e que subscreveu como Reitor, os alemães que não velassem pelo espírito alemão deveriam ser considerados traidores.

Para Sloterdijk (num escrito que já foi considerado nazista e que foi duramente criticado por Habermas – Regras para um parque Humano – uma resposta à Carta de Heidegger sobre o humanismo), Heidegger em Carta sobre o humanismo teria inaugurado uma nova reflexão sobre o ser humano, trans-humanista ou pós-humanista. O problema que Heidegger colocaria em cena, seria de que o humanismo com sua exaltação do homem, com seus sistemas metafísicos, de auto-elevação e auto-explicação do ser humano teria conduzido à catástrofe do presente, como a Segunda Guerra Mundial. Assim, para Heidegger, os três remédios contra a crise europeia – o marxismo, o cristianismo, o existencialismo – não souberam colocar a questão da essência humana, que é existencial-ontológica. Diferente de Sloterdijk, que reanima o tema da seleção humana, através da programação genética, no que consistiria o pós-humanismo, para Faye, Heidegger se distancia do racismo eugenista da época para afirmar a diferença entre as raças a partir do espírito, que seria essa dimensão existencial-ontológica e que conduziria à superação do humanismo.

 	Na superficie do texto, no entanto, a crítica de Heidegger ao humanismo é próxima daquela de Lévi-Strauss: as piores barbáries cometidas pela humanidade foram feitas sob o signo do humanismo. Citamos Heidegger em Carta sobre o humanismo, que responde a pergunta feita por seu interlocuto: «O senhor pergunta: como dar um novo sentido à palavra humanismo? Essa pergunta provém do propósito de conservar a palavra. Pergunto-me se é necessário. Será mesmo que ainda não está bastante clara a desgraça que provocam todos os títulos dessa espécie?». Mais à frente, ele propõe sua célebre tese:  «todo humanismo ou se funda numa metafísica ou se converte a si mesmo em fundamento de uma metafísica. Toda determinação da Essência do homem, que já pressupõe, em si mesma, uma interpretação do ente sem investigar – quer o saiba ou não – a questao sobre a verdade do Ser, é metafísica».  Essa metafísica que englobaria a tradição filosófica desde Platão, encobriu a real pesquisa sobre o ser, tarefa da filosofia. O pensamento humanista não poderia ultrapassar a limitação da antropologia, por que tem como base o homem, enquanto o ponto de partida deveria ser o Ser. Dito de outra forma, o pensamento antropológico como fundamento do humanismo inaugura sempre uma metafísica, pois parte desse ente que é o homem, enquanto seria necessário partir da ontologia, do Ser, para depois chegar à antropologia. Para Heidegger, a humanitas não se funda no sujeito, ponto que, veremos, ele partilha, por razões diversas, com Foucault, mas na interpretacao do Ser. O sujeito está jogado no Ser e não é seu produtor. O humanismo – marxista, sartreano ou ateu – é acusado por ele de impor uma interpretação fixa ao ente e, a partir dela, de dar um sentido à essência do homem. Por exemplo, a determinação do homem como animal racional repousa, para Heidegger, não na singularidade de sua essência mas na diferença entre os homens e os animais. Essa interpretação da essência do homem se funda assim sobre uma interpretação fixa do ente, mesmo que ela não seja falsa, ela seria, segundo Heidegger, condicionada metafisicamente.

Apesar da crítica violenta que dirige contra o humanismo, para Derrida, Heidegger permanece ligado a essa tradição por alguns pontos. O primeiro seria a noção de próprio, a ideia de que há um próprio do homem, que é sua essência. Citamos Heidegger: “Não haverá nesse apelo ao homem, não haverá na tentativa de preparar o homem para tal apelo, um esforço pelo homem? Para onde se dirige a “Cura” senão no sentido de reconduzir o homem de volta à sua Essência? O que significa senão tornar o homem humano? Destarte é a humanitas a preocupação de um tal pensamento. Pois humanismus é curar e cuidar para que o homem seja humano e não inumano, isto é, estranho à sua Essência. Todavia em que consiste a humanidade do homem? Ela repousa em sua Essência.” Parece-nos, por essa passagem, que Heidegger não está determinado a destruir o humanismo em nome de um anti ou pós-humanismo, mas em ajustá-lo segundo à perspectiva de sua filosofia.

A essência do homem não está determinada, ela aparece a partir da relação do homem com o Ser, do próprio desta relação. Derrida, seguindo Nietzsche, preferirá ressaltar o impróprio do homem, considerando esse conceito de propriedade inseparável de uma certa concepção econômica da propriedade, que ele combate a partir do conceito antropológico de dom. A temática da essência como propriedade percorreria toda a ontoteologia e não haveria uma ruptura de Heidegger com ela. O segundo ponto é que, apesar de o Dasein – esse que porta a relação com o ser - não ser exatamente o homem da metafísica, já que ele é definido não a partir da diferença entre homens e animais, mas em relação ao ser, também não seria outra coisa que o homem. O Dasein é aquele que questiona e interpreta o ser, sendo essa proximidade que o constitui. Ora, o único ente que se debruça sobre tais questões é o homem. O Dasein não é, pois, o além do homem, antes se manifesta em sua história mesma. Em terceiro lugar, Heidegger mantém o tema principal da metafísica humanista que ele quer destruir: a questão do sentido do ser. Derrida considera que há um certo etnocentrismo na afirmação dessa questão, já que nem todas as línguas e culturas pensam a partir da ideia de ser. Essa ideia está presente particularmente nas línguas indo-européias, e a ânsia predatória de Heidegger em definir, de certa forma, a filosofia a partir dessa busca parece retomar o movimento colonizatório tão característico do humanismo. Em quarto lugar, para Derrida, a promessa de uma destruição da metafísica, e com ela, do humanismo, não pode se efetivar pela própria natureza da linguagem, que reinstaura pontos de continuidade com a tradição. Veremos, no próximo e último Conversações, que Derrida fala de uma desconstrução e não de uma destruição da metafísica, como Heidegger, e de seu fechamento, não de seu fim. Essa presença do humanismo em Heidegger estaria presente no emprego do pronome pessoal “nós”, “nós que questionamos o sentido do ser”, uma vez que a metafísica se apoiaria nesse universalismo antropológico, reinscrevendo uma unidade da humanidade lá onde essa unidade deveria não mais existir. Um quinto ponto é que, na sua discordância com o humanismo, Heidegger retoma seu valor principal e histórico: a dignidade humana. Ele escreve: “Se pensamos contra o humanismo, é por que o humanismo não situa alto o suficiente a dignidade humana” (p.87). Tal tentativa, como Heidegger mesmo escreve, se distancia do inumano e do anti-humanismo, e se pensa como uma renovação do significado da palavra humanismo.

Derrida não teve acesso aos mesmos textos que Faye sobre as relações de Heidegger com o nazismo. Mas põe-no sob suspeita em outra chave, por essa ruptura brutal que ele introduz entre o homem e o animal. Para o Derrida de 1968, Heidegger é um anti-humanista na medida em que ele é um crítico feroz do humanismo, mas não um pós-humanista, como gostaria Sloterdijk, pois permaneceria devedor da metafísica humanista. Nessa crítica, Derrida entrevê o etnocentrismo que Faye desenvolve como um anti-humanismo a tudo o que não é o espírito alemão. Nossa intenção, trazendo Faye, Mattéi, Sloterdijk, Derrida para falar do anti-humanismo em Heidegger, é apenas a de apresentar essas interpretações, deixando para o ouvinte a possibilidade de se aprofundar nelas, tarefa que não podemos propor aqui.

Passemos, na sequência, a Foucault. Diferente de Heidegger, Foucault sempre esteve ligado às margens, como bem mostram seus livros História da loucura, História da sexualidade, Vigiar e punir. O anti-humanismo de Foucault é, portanto, bastante distante do que vimos de Heidegger. Ele se diz justamente daquilo que o humanismo não consegue englobar, ao que sempre escapa por não ter formas nem fronteiras definidas. Esse fora do humanismo, Foucault o compreende, sobretudo, como o fora da compreensão de sujeito moderna. O “eu” de Descartes, grande fundamento da tradição humanista racionalista, seria uma grande ficção.

Após a morte de Deus em Nietzsche, Foucault vinha anunciar a morte do homem. A antropologização do homem, uma ciência do homem seria, para Foucault uma invenção moderna. Mas essa descoberta se apoiaria em um falso fundamento: o Eu, o sujeito, o ego, a consciência, para citar alguns termos correlatos que estão na base dessa fundação. Assim, à afirmação de Kant ou de Hegel de que o que define a humanidade do homem é a afirmação egoísta ou o sujeito, Foucault põe em questão a emergência de um pensamento do fora na literatura moderna (com Sade, Nietzsche, Artaud, Bataille, etc) que não estariam calcados nessas instâncias.

Assim, para começar, citemos duas passagens de Foucault:

“Imaginamos de boa vontade que o humanismo sempre foi a grande constante do pensamento ocidental. Assim, o que distinguiria esta cultura seria o humanismo. Comovemo-nos quando reconhecemos vestígios deste humanismo noutro lugar, num chinês ou árabe, e temos então a impressão de nos comunicar com a universalidade do tipo humano. Ora não somente o humanismo não existe nas outras culturas, mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem (...) não é tanto por que se teve um cuidado moral como ser humano que se teve a ideia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário por que constituiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo” (FOUCAULT, 1996, p.2)

A segunda passagem diz o seguinte:

«A filosofia adormeceu num sono novo; não mais aquele do Dogmatismo, mas aquele da Antropologia. Todo conhecimento empírico, visto que ele concerne ao homem, vale como campo filosófico possível, onde se deve descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e finalmente a verdade de toda verdade.(...) A antropologia constitui talvez a disposição fundamental que comandou o pensamento de Kant até nós” (FOUCAULT, 1966; p.353).

A pesquisa de Foucault examina a constituição do conceito «homem», sua emergência na modernidade e na formação das ciências humanas, seus limites, sua historicidade. A partir do exposto nas citações, parece-nos que Foucault se refere ao humanismo na sua forma moderna, racionalista, uma vez que o humanismo antigo, medieval e renascentista, como vimos, não possui pretensões científicas mas ético-políticas e metafísicas, que se transformam com o surgimento da antropologia como disciplina. O humanismo aparece como uma disposição da cultura ocidental, mas essa disposição mesma é oriunda do século XVIII, tendo a palavra “humanismo” surgido apenas nesse século, para designar, num movimento de conjunto, os movimentos que antecederam sua forma moderna. Assim, o embate de Foucault não é contra Cícero, Sêneca, Agostinho ou Pico Della Mirandola, mas contra Descartes, Kant, Hegel. A moral de que ele fala, a moral no mundo contemporâneo surge menos de especulações éticas ou metafísicas, do que propriamente científicas, calcadas na medicina e na biologia. Nesse sentido, ele escreve em As palavras e as coisas: «O homem é uma invenção que a arqueologia de nosso pensamento mostra a data recente. E talvez o fim próximo». Contra a ideia de um sentido evolutivo da história, em que a razão estaria cada vez mais próxima da verdade, o método arqueológico de Foucault entende a história de forma descontínua, limitada a uma determinada organização dos saberes e a um regime de verdade cujas condições de possibilidade ela investiga. Esse seria um primeiro argumento que o distanciaria dos humanistas racionalistas.

              No caso da antropologia, ela transforma o sujeito de conhecimento em objeto de conhecimento. Para Foucault, a antropologia, tal como ele a conhece em sua época, é uma produção moderna, historicamente localizada, inscrita numa visão científica e metafísica do mundo que associa disciplinas como a biologia, a economia e os estudos linguísticos, revelando o projeto moderno de dominação e de controle do mundo, através de uma supervalorização do humano.

A arqueologia é uma crítica à filosofia cartesiana da subjetividade. Diferente da epistemologia, que estuda as teorias e objetos da ciência produzidos por um sujeito pensante, a arqueologia não se inscreve no registro da consciência e não está condicionada pelo sujeito pensante, debruçando-se sobre o impensado e o inconsciente dos materiais com que trabalha, revelando, através das práticas e discursos, os a priori históricos nos quais o sujeito se inscreve.

Dessa forma, a arqueologia realizaria um duplo homicídio do homem: como método e como questão ontológica. A arqueologia conduz a ideia de que a antropologia, tal como Foucault a conhecera, era uma expressão moderna do saber a da verdade. Como questão ontológica, pois o homem não pode ser compreendido, segundo Foucault, como um ser finito, disposto como um objeto do saber.

                Apanágio desse homicídio do homem, citamos um trecho de A arqueologia do saber, quando Foucault faz uma síntese de seu trabalho: “Trata-se de uma empresa pela qual se tenta medir as mutações que se operam, em geral, no domínio da história; empresa onde são postos em questão os métodos, os limites, os temas próprios da história das ideias; empresa pela qual se tenta desfazer as últimas sujeições antropológicas; empresa que quer, em troca, mostrar como essas sujeições puderam se formar”. É nesse sentido que Foucault pode prever um fim do homem, como um fechamento ou transformação das condições que permitiram a aparição das ciências humanas. Não se trata, pois, de uma escatologia, como no humanismo marxista, mas de uma análise do que permitiu a formulação do objeto chamado «homem».  
           Nessa mesma entrevista que concede a Bonnefoy (Arts et Loisirs, n,38, 15-21, Junho 1966), em que responde à pergunta «O homem está morto?», Foucault traça uma breve genealogia contemporânea de um ultrapassamento do humanismo, com Nietzsche e Hiedegger. Foucault defende que os grandes temas da filosofia eram Deus, a existência, as paixões etc., mas não o homem que apenas se tornou possível com os saberes positivos modernos, cujos dispositivos avançam no século XVIII, e que teriam formulado, no século XIX, esse novo objeto científico.
	Dissemos que a crítica de Foucault sobre o humanismo moderno incide na questão da subjetividade cartesiana e apresentamos brevemente a concepção de história da arqueologia. O «eu» cartesiano aparece como origem do discurso, evidente, sempre idêntico a si mesmo, indivísivel, garantindo a continuidade do ato de pensar, ocultando sua diferença interna. O que há de infinito e de ilimitado nesse sujeito e em seu discurso, é que ele recobre com sua transparência universalizante (sua fortaleza) a totalidade da possibilidade discursiva como um pensamento sem margens. Contrariamente, o pensamento das margens questiona a soberania do Eu, opondo-lhe uma soberania provisória que na sua furtividade deixa aparecer o vazio de seu conteúdo. Não somente por causa das contradições, dos paradoxos próprios ao discurso, mas, seguindo Blanchot,  em O livro por vir, por um impoder essencial ao pensamento, uma impossibilidade de pensar, como diria Artaud, de forma totalizante, o pensável, mas também possibilidade de pensar o impensável. Nos dois casos, o «Eu» é esse soberano que vê o acontecimento do pensamento.

Assim, a arqueologia e o pensamento das margens conduzem Foucault a pensar na emergência de um outro tipo de sujeito não-cartesiano, ou mesmo em uma desaparição do sujeito, fato que teria sido marginalizado justamente em função da interiorização do sujeito cartesiano. A esse acontecimento, Foucault nomeia “pensamento do fora”. Foucault faz a arqueologia do pensamento do fora, a partir de Sade, Hölderlin, Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Bataille, Klossowski. Vemos que, para Foucault, o pensamento do fora caminha por outras perspectivas que aquelas do humanismo moderno.

O espaço neutro e infinito produzido pelo discurso se emancipa do Eu para abrigar sujeitos despedaçados, dispersos, fragmentados. Diferente da forma clássica, onde o Eu cria o espaço do discurso, com a literatura moderna o sujeito se confunde com esse espaço mesmo (FOUCAULT, 1966. p.519).

Assim, a linguagem escapa, primeiramente, de suas funções tradicionalmente reconhecidas como próprias (por exemplo, a representação, a adequação, a comunicação, o lirismo) em direção a novos territórios difíceis de enquadrar (o corpo, o acontecimento); segundo, ela abandona seu ser metalinguístico (como um reposicionamento ou regulação do sentido) em direção a uma dispersão, uma abertura do sentido.

Ao ser despedaçado da linguagem, à dissolução ou disseminação do sujeito corresponde uma nova imagem do homem. Não se trata mais, como em Hegel, Kojève ou Sartre, de definir uma natureza ou uma essência do humano sempre em vias de reapropriação, apesar da permanência - no que concerne ao pensamento – do elemento universalizante (o vazio): mas aqui, essa essência e essa universalidade não se dizem mais de uma unidade fundamental (como o Eu), una, indivisível, mas justamente da multiplicidade de formas de expressão e de suas plasticidades. Nesse vazio recoberto de traços do impensável, o vazio converte o que aparece como negatividade em positividade onde se move o pensamento do fora como um cintilamento do nós.

Nesse movimento de ultrapassamento do humanismo, Foucault destaca o desenvolvimento de uma razão analitica. A expressão dessa nova racionalidade pode ser vista em Russel e Witgenstein, na linguística e em Lévi-Strauss. Essa razão analítica do século XX, é herdeira daquela do século XVIII, que se interessava pela natureza mais que pela existência e praxis humana. Seu problema não é o homem, mas o saber. Ela se interroga sobre as relações entre os conhecimentos e o não-saber. Outro lugar de expressão dessa racionalidade não-dialética que concorre para um desaparecimento do homem é a literatura, como em Mallarmé, onde esse desaparecimento do sujeito efetua-se em benefício da linguagem: de sua autonomia, de seu jogo próprio. Em Mallarmé, com a desaparição do sujeito, a linguagem aparecia no seu ser próprio, segundo Foucault.

Derrida incorpora em sua filosofia essa crítica da subjetividade moderna de Foucault através de uma série de conceitos: traço, diferença, espectro, crueldade, que veremos mais detalhadamente no próximo encontro. Mas, diferente de Foucault, a desconstrução não quer instalar-se no fora, mas no entre, explorando os múltiplos pontos de contato e conexão que surgem ao borrar-se as polaridades e os binarismos, ao investir-se nas suas misturas e plasticidades. Assim, Derrida não se instala fora do humanismo, embora recupere a crítica desses dois grandes anti-humanistas, Heidegger e Foucault, no seu próprio legado. A oposição frontal não é jamais a via da desconstrução, mas o que Derrida chama o oblíquo. Diferente de Heidegger e Foucault, a tarefa a que se propõe Derrida não é inquerir sobre o sentido do ser nem mesmo a forma como se articulam ou se organizam os saberes, mas pensar o impensado dos conceitos e da tradição, orientando-se por um conceito indesconstrutivel de justiça e relançando-as num porvir, garantindo desde já sua existência e espectralidade por meio da escritura. É nesse jogo, nessa dobra entre tradição e fora, doxa e desconstrução, que vemos sugir o humanismo por vir.

No próximo encontro, então, trataremos do humanismo por vir, ensaiando uma síntese entre o pensamento de Derrida sobre o tema e o que vimos até aqui.

Bibliografia

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