Termos para a metafísica de Artaud
- Martha Bernardo
- 17 mai 2020
- 15 min de lecture
Dernière mise à jour : 17 août 2020
Termos para a metafísica de Artaud
Martha Bernardo
Resumo: Nossa intenção é propor uma breve introdução à metafísica de Artaud, considerando, sobretudo, seus escritos antes de Rodez. Selecionaremos três termos centrais para compreendê-la: o “impoder do pensamento” (l’impouvoir de la pensée), a carne (chair) e a crueldade (cruauté). Vamos percorrer alguns de seus escritos (como A correspondência com Jacques Rivière, O Pesa-Nervos, O umbigo dos limbos, Fragmentos de um jornal do inferno, O teatro e o seu duplo), esposando um conjunto de significações ligadas a esses termos.
Palavras-chave: Artaud, impoder do pensamento, carne, crueldade, metafísica
Résumé: Notre intention est de proposer une brève introduction à la métaphysique d’Artaud, en considérant surtout ses écrits avant Rodez. Nous allons séléctionner trois termes centraux pour la comprendre: l’”impouvoir de la pensée”, la chair et la cruauté. Nous allons parcourir quelques uns de ses écrits (comme Les correspondances avec Jacques Rivière, Le Pèse-Nerfs, L’ombilic des limbes, Fragments d’un journal de l’enfer, Le théâtre et son double), en exposant un ensemble de significations liées a ces termes.
Mots-clés: Artaud, impouvoir de la pensée, chair, cruauté, métaphysique
Por que falar de metafísica em Artaud? Certamente, por que ele revolucionou o sentido dessa palavra, num projeto poético-filosófico no qual ele inventa e introduz termos que estremecem as categorias tradicionais da metafísica, particularmente a separação entre ser e não-ser, corpo e espírito, sujeito e objeto. Artaud reflete sobre os pressupostos implícitos da metafísica ocidental, como a crença na gramática e no sentido, produzindo, ao mesmo tempo, uma nova linguagem, como as glossolalias, emancipada das regras formais e da exigência de significação, uma linguagem do corpo. Finalmente, é importante falar da metafísica de Artaud por que o Teatro da Crueldade é indissociável de uma nova compreensão positiva da metafísica.
O primeiro termo que vamos explorar é o “impoder do pensamento”, expressão criada por Blanchot, em O livro por vir, para descrever a contribuição ontológica da aventura de Artaud. O impoder do pensamento aparece já nas Correspondências com Jacque Rivière, através da descrição de um mal do espírito.
E eis então, Caro, todo o problema: ter em si a realidade inseparável e a claridade material de um sentimento tê-la no ponto em que ele não pode se exprimir, ter uma riqueza de palavras, de torneios aprendidos que poderiam entrar na dança, servir ao jogo; e no momento em que a alma se apressa para organizar sua riqueza, duas descobertas, essa revelação, nesse inconsciente minuto onde a coisa está sobre o ponto de emanar, uma vontade superior e vulga ataca a massa palavra-e-imagem, ataca a massa do sentimento, e me deixa, eu, sufocando como às porta da vida. (ARTAUD, Les correspondances avec Jacques Rivière, 6 juin 1924)
Um impoder em cristalizar inconscientemente, o ponto rompido do automatismos em qualquer lugar que seja. (ARTAUD, Le Pèse-Nerfs)
Ao poder da consciência em estabelecer uma relação entre as coisas e a linguagem, por meio da representação, o impoder opõe a impotência em determinar o que escapa ao pensamento a cada vez que ele se cristaliza ou se estrutura numa forma. Para Artaud, há, nesse momento, uma perda essencial, em que loja advém um mal desorganizador, uma vontade impessoal, não-egóica, capaz de romper com a organização da linguagem. Impedido de escrever pela irrupção desse mal do espírito, Artaud o toma como objeto de seus poemas defeituosos. Essa vontade superior e baixa, de caráter paradoxal, que o acomete como uma necessidade, vontade destrutiva, é também reveladora: ela nos mostra uma outra face do ser – uma espécie de insistência ou de determinismo que não se confunde com o não-ser.
O impoder se relaciona, assim, a um “fenômeno central do espírito” e a suas “possibilidades centrais de expressão” (e não a um fenômeno de época: Artaud frisa que não se trata de uma questão estética, mas ontológica): um “afundamento” de seu pensamento, que lhe escapa em todos os níveis1. Artaud não propõe uma leitura psicológica do seu “caso”, uma vez que ele seria o desvelamento de uma doença do ser2.
O “impoder do pensamento” perturba as categorias ontológicas tradicionais. Apesar das similitudes, não se trata simplesmente de uma inversão que afirma, como em Heráclito, que o não-ser é, o ser do devir. A lei do mundo se encontra muito mais em um vazio ativo: a falha, a falta são antes do ser, no ser. Estas não são o não-ser – pois agem – nem o ser, pois não se fixam numa forma, ainda menos se fecham na estaticidade do Mesmo. Ao contrário, esse vazio produz um desmoronamento, barra a formação de palavras, frases e impõe o fragmento3.
Mas nessa falha transcendental habita a possibilidade do pensamento, que não é um dado, mas um transbordamento de potência (como reconhece o interlocutor de Artaud nas cartas, o escritor Jacques Rivière), um sinônimo de criação. É assim que Artaud na impossibilidade de se exprimir acaba por alcançar o máximo de expressão:
(…) em respeito ao sentimento central que me dita meus poemas e pelas imagens ou torneios fortes que pude encontrar, eu proponho, apesar de tudo, esses poemas à existência. Esses torneios, essas expressões mal vindas que me reprova, eu as senti e aceitei. Lembre-se: eu não as contestei. Elas provém dessa incerteza profunda do meu pensamento. Fico feliz quando essa incerteza não é substituída pela inexistência absoluta, de que sofro por vezes.
(…) importa-me muito que as poucas manifestações de existência espiritual que pude me dar a mim não sejam considerada como inexistentes pela falta de (..) expressões mal vinda que as constelam. (ARTAUD, Les correspondances avec Jacques Rivière, 5 juin 1923)
Pois não posso esperar que o tempo ou o trabalho remediarão essas obscuridade e essas falhas, eis por que reclamo com tanta paciência e inquietude essa existência mesmo abortada. (ARTAUD, Les correspondances avec Jacques Rivière, 5 juin 1923)
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Tudo o que age é uma crueldade (ARTAUD, Le théâtre et la cruauté)
Em O teatro e a crueldade, Artaud pensa a crueldade como uma força4, que o teatro pode direcionar, trabalhar. Trata-se de uma força cósmica que se manifesta no plano humano e que é ligada ao crime, à ruptura de uma lei, mas também à criação, ao estabelecimento de uma nova lei também instável, etc. Enquanto força cósmica que atinge a quietude e a verdade do ser, a crueldade é necessária. Assim, Artaud pode considerar um cataclismo, um fratricídio e o pensamento como manifestações da crueldade.
O que é uma força? É tudo o que age. A crueldade é da ordem da ação (e há uma ação mesmo na passividade – o pólo feminino, em muitas culturas – como podemos constatar pela influência de Julia Moesa e Julia Domna sobre Heliogabalo). A crueldade se opõe, então, ao imóvel, ao fixo, ao Mesmo, características do Ser desde Parmenides.
O teatro da crueldade (primeiro manifesto) mostra que a operação mágica do teatro visa o corpo do espectador (através de uma técnica, indicada em Um atletismo afetivo, entre outros textos). A crueldade, que trabalha a encenação, tem o poder de “se exercer organicamente (..) como exorcismos renovados” (ARTAUD, Le Théâtre de la cruauté (premier manifeste)). Essa passagem do abstrato ao concreto, do invisível ao visível é a cirurgia teatral, quer dizer, o momento onde o teatro coloca a metafísica em movimento ou em atividade nos corpos: “É que a verdadeira poesia, quer queiramos ou não, é metafísica e é mesmo, diria eu, seu caráter metafísico, seu grau de eficácia metafísica, que faz o verdadeiro preço” (ARTAUD, La mise en scène et la métaphysique).
A metafísica não é, dessa forma, compreendida como a mais teórica das disciplinas filosóficas, mas pensada como uma praxis que tem por objeto os corpos. O prefixo meta, com efeito, não significa “além”, mas “em meio de”. Colocar a metafísica em atividade é, através da força da crueldade, atingir o ponto em que é possível romper com os automatismos inconscientes dos corpos, tarefa do Teatro da Crueldade
A Crueldade: sem um elemento de crueldade nq base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência em que estamos, é pela pele que faremos entrar a metafísica nós espíritos. (ARTAUD, Le théâtre de la cruauté (premier manifeste))
O centro dessa metafísica é o corpo e não a ideia, quer dizer, ela tem caráter experimental. Não se trata, no entanto, de uma experimentação científica, mas poética, alquímica. Os conceitos filosóficos são abstratos face ao dinamismo da carne. O corpo-sem-órgãos seria, como um horizonte ao qual não se chega jamais, esse corpo que se dá e que vive sua própria lei dinâmica – os fluxos, as intensidades, os gradientes, como diria Deleuze.
“Nel acredito nem no Mal nem no Bem, se me sinto com tal disposição a destruir, se não há nada na ordem dos princípios a qual eu pudesse racionalismo aceder, o princípio mesmo está na minha carne” (ARTAUD, Manifeste en langage clair). Artaud fala dessa tendência iconoclasta presente no Teatro da crueldade. É que há um princípio na carne que rompe a harmonia e os princípios estabelecidos: a crueldade. Esta não repousa mais sobre uma visão moral do mundo. Ela escapa aos imperativos do Verdadeiro, do Belo e do Bem que caracterizam a ideia (de herança platônica) ou deus (de herança judaico-cristã). À verdade, a crueldade opõem fragmentos em conflito, paradoxos, dramas, sonhos. Ao Belo, a crueldade se apresenta imunda, como escreve Camille Doumulié, nos conduzindo ao trágico e aos lados sombrios da natureza humana expurgados pela moral. Ao Bem, a crueldade nos mostra a justiça cruel do mundo, que não obedece à racionalidade, mas responde aos acasos, ao imprevisível, à lei do ilógico (como diziam os surrealistas no seu Manifesto de 1924).
Como Artaud escrevia em O teatro e seu duplo: “nous ne sommes pas libres. Et le ciel peut encore nous tomber sur la tête”. O pensamento de Artaud é uma cataclismologia, forma de pensamento também presente em muitas sociedades tradicionais, como entre os tarahumara. A cataclismologia tem um sentido diferente da patafísica de Alfred Jarry (que inspira o Teatro Alfred Jarry, anterior à concepção do Teatro da crueldade) como ciência que estuda os fenômenos de exceção, ciência da exceção. A cataclismologia de Artaud se orienta em direção a um tipo específico de fenômenos de exceção, aqueles capazes de produzir um cataclisma, como um meteoro, a peste, um processo revolucionário, não necessariamente ligado à destruição e ao desastre, como uma representação teatral. O Teatro da Crueldade é um catalisador de cataclismos, no corpo do espectador, atravessado em sua carne pela dinâmica da crueldade, e no corpo social, que deve abrigar no seu interior um tal acontecimento. A necessidade que nos encerra nesse corpo, nesse espírito, nessa língua, nesse povo, nessa espécie, nesse tempo… é a crueldade. Uno Kuniichi em A gênese de um corpo desconhecido5, prefere falar em crueldades, no plural, o que corresponde ao sentido de sua utilização por Artaud.
A carne viva é o lugar onde se exerce a crueldade. A carne tem uma experiência, ela aparece como uma forma de intelectualidade, de inteligência6.
Essa classificação instantânea das coisas nas células do espírito, não verdadeiramente na sua ordem lógica, mas na sua ordem sentimental, afetiva
(O que não se faz mais)
(ARTAUD, L’ombilic de limbes)
É possível formular então um conceito filosófico-poético – a Carne – como um princípio metafísico: “Mas é preciso que eu inspecione esse sentido da carne que deve me dar uma metafísica do Ser” (ARTAUD, Position de la chair)
Há para mim uma evidência no domínio da carne pura, e que não tem nada a ver com a evidência da razão. O conflito eterno da razão e do coração se repartem na carne mesma, mas na minha carne irrigada de nervo. No domínio do imponderável afetivo, a imagem trazida pelos meus nervos tomaa forma da intelectualidade a mais alta, a Quem me recusa arrancar seu caráter de intelectualidade. E é assim que eu assisto à formação de um conceito que porta em si a fulgaração mesma das coisas, que chega sobre mim como um ruído de criação (ARTAUD, Manifeste en langage clair).
A carne unifica a oposição metafísica binária entre a razão e o coração (a sensibilidade). Diferente da razão – que tem a tendência de conciliar-se com sua própria lógica e operações – a Carne é “irrigada de nervos”, quer dizer, ela se abre ao exterior, ao outro (“E eu disse: nada de obras, de língua, de palavra, de espírito, nada, nada, senão um belo Pesa-Nervos ”7) . Todo um pensamento sobre a alteridade se desenha em torno da carne, rompendo o senso comum da crítica que vê a esquizofrenia de Artaud como uma alienação, uma clausura. Artaud propõe também uma escritura da carne: “refaço a cada uma das vibrações da minha língua todos os caminhos do pensamento em minha carne”.
A Carne é cruel. Milhares de pulsões de desejos, de emoções, de sensações, mas também o inconsciente, a animalidade erótica do homem livre, interditam sua unidade, a unidade ideal do corpo pleno, perfeito, que não muda. A crueldade ou as crueldades agem no corpo, impedindo sua redução a uma entidade ou produção idealista, em uma palavra, a um conceito acabado. É a crueldade que força a carne a pensar.
Sou um gênio inato... Há imbecis que se crêem seres, seres por inatidade. Eu, eu sou aquele que para ser deve chicotear sua inatidade. Aquele que por inatidade é aquele que deve ser um ser, quer dizer, sempre chicotear essa espécie de negativo canil, ó cadelas de impossibilidades... Sob a gramática, há o pensamento que é um opróbrio mais forte a vencer, uma virgem muita mais imperiosa a ultrapassar quando o tomamos por um fato inato. Pois o pensamento é uma matrona que nem sempre existiu. (Artaud citado por Deleuze in Différence et répetition. Paris: PUF, 1968; p.192)
A ideia e o pensamento não são inatos no homem. O que é inato é a crueldade na carne que força o homem a utilizar sua inteligência, como um determinismo superior.
Podemos muito bem imaginar uma crueldade pura, sem dilaceramento carnal. E filosoficamente falando então que é que significa a crueldade? Do ponto de vista do espírito, crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. (ARTAUD, Lettres sur la cruauté)
A crueldade é um desafio ao destino, um combate contra a ordem estabelecida das coisas. Ela nos convida a exteriorizar nossa perspectiva no caos do mundo. As manifestações do espírito humano são vistas como garras no tecido de irracionalidade que governa o cosmos. Para isso, é preciso rigor, aplicação, determinação, diz Artaud. Ele continua a passagem seguinte escrevendo que “o determinismo filosófico mais corrente, é, do ponto de vista de nossa existência, uma das imagens da crueldade.” (ARTAUD, Lettres sur la cruauté). Crueldade significa necessidade, assim como um filósofo determina um conceito ou uma noção necessária no seu sistema ou no seu pensamento. Assim, crueldade pode significar mal físico, mas por erro:
É por erro que damos à palavra crueldade um sentido de rigor sangrento, de pesquisa gratuita e desinteressada do mal físico (...). Há na crueldade que se exerce uma espécie de determinismo superior (...). A crueldade é antes de tudo lúcida, é uma espécie de direção rígida, a submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada.
A crueldade perdeu seu sentido transcendental e passou a significar o prazer no sofrimento do outro, o derramamento de sangue, a perversão. Nietzsche fala de uma espiritualização das paixões (como a crueldade), do embelezamento, da divinização das paixões em O crepúsculo dos ídolos. Artaud, através do Teatro da crueldade, quer agir nos quadros íntimos do cérebro, atingir o corpo-espírito para trabalhar os aspectos mais obscuros do corpo e da vida psíquica, para curar o homem moderno, que é doente, cortado de suas forças vitais, como ele afirma em O teatro e a cultura. Assim, não se trata de reprimir ou de esconder nossa crueldade, de colocá-la fora do humano (na loucura ou na animalidade). O Teatro da crueldade tem por tarefa exorcisar a crueldade reprimida (através de uma atmosfera de crime, de incesto, de absurdo) e de expurgá-la, direcionando-a para a construção do Si mesmo, numa ótica próxima àquela de Nietzsche, como Doumulié mostrará em Nietzsche e Artaud. Por uma ética da crueldade.
Se a crueldade é um princípio anárquico – se ela pode modificar o corpo e o pensamento em suas organizações, em seus funcionamentos e suas estruturas, nos seus automatismos – a crueldade significa a criação de um novo corpo próprio.
E que fizeste de meu corpo, Deus?/ Meu corpo refez-se apesar de tudo/ contra/ e através de mil assaltos do mal/ e do ódio/ que o deterioravam a cada vez/ e me deixavam morto/ Fui por demais supliciado(...)/Trabalhei demais para ser puro e forte(…) Busquei demais ter um corpo próprio.
Como dizia Artaud em O Pesa-nervos8: essa metafísica da carne confunde-se com a fabrificação do Si mesmo (Artaud quer se construir: “Eu Antonin Artaud, sou meu filho, meu pai, minha mãe e eu” ). Essa operação, mágica não tem nada de sobrenatural, ela pertence aos corpos. Fazer Teatro da crueldade é então uma ação revolucionária, mas não se trata mais do sentido usado da palavra revolução, como uma substituição radical das relações de poder. O gesto de Artaud se aproxima, como dirá Vera Lúcia Felício (no livro Em busca da lucidez em Artaud9), da tradição libertária que privilegia o indivíduo, sua reeducação como forma de intervenção sobre o “real”.
A crueldade é a força que produz os Duplos, que os multiplica – Artaud-Dionísio, Artaud-Cristo, Artaud-Uccello. Ela impede a adequação entre as palavras e as coisas, entre o pensamento e sua expressão, entre a alma e o corpo, a condensação das frases num poema. Mas ela quer dizer também experimentação lúcida (mesmo quando nós devemos abandonar nosso “Eu” como nos rituais) de outros em nós.
Como agimos em relação às crueldades da vida que nos aparecem, a tudo que rouba nosso sonho de harmonia, de unidade ou nosso desejo de verdade? Como fazer da crueldade apenas superfície em nossas peles, cicatrizes de combate, mas sem jamais atacar esse centro frágil de forças que é a vida do corpo – não a vida cotidiana do corpo, mas esse corpo exuberante, criador, atlético? Esse corpo, Artaud o criou sob eletrochoques, em meio a dores insuportáveis tanto ao nível físico como psicológico. Uma questão resiste: que meios Artaud se fabricou para construir esse corpo pleno sempre produtivo, mesmo na loucura?
A crueldade é um anti-princípio metafísico: ela rasga a unidade do Um, impedindo a harmonia e a síntese em função do corpo e de sua “anatomia furtiva”, expressão de Évelyne Grossman. Ela produz a instabilidade na fixação dos contrários (operação dialética) e sua multiplicação em outros termos irredutíveis à oposição binária.
A crueldade é antinômica, paradoxal, emana do ser (como veneno ou doença).
A metafísica de Artaud quer implodir a arquittura higienista da metafísica ocidental, suas oposições binárias, onde o ser ocupa sempre uma posição hierárquica superior ao não-ser, às subsistências e as insistências. Com esses três termos – o impoder, a carne, a crueldade – Artaud questiona a supremacia do fundamento egóico do conhecimento, atento a outras experiências que ultrapassam o sujeito, como os estados alterados de consciência. Sua escritura, que não passa sempre pelo crivo desta última, oferece, nessa ausência de sujeito central, um fluxo interminável de sensações, de percepções, de pontos de vista contraditórios, não-sistemáticos. Ele denuncia também o esquecimento do corpo, a separação entre corpo e espírito, o esquecimento do primeiro ou sua vigilância constante, sua secundariedade em relação ao espírito
Apesar da sua crítica à metafísica ocidental, Artaud quer pôr em andamento uma outra metafísica – como tentamos mostrar – inspirada nas relações que outras culturas mantém com o corpo e a espiritualidade. Ele busca entre os tarahumaras (pouco após um momento onde, na França, os indígenas eram ainda expostos em zoológicos humanos na Exposição colonial de 1932) ou no livro tibetano dos mortos, na cultura celta, chinesa, japonesa e balinesa, na Cabala, os princípios de uma cultura universal que teriam se perdido ao longo da história, como defende Monique Borie (Antonin Artaud et le retour aux sources).
A metafísica surge, pois, da afirmação de um outro Real; ela é a técnica, a arte, de fazer passar o Real (encoberto pela realidade ordinária) no real; cujo ponto de intervenção é o homem e cujo fim é a produção de um corpo próprio. Assim, desde as Correspondências com Jacques Rivière até Heliogabalo (considerado por Artaud um “metafísica da desordem”), a discussão metafísica passa por vários momentos na obra de Artaud, dos quais buscamos apresentar alguns exemplos.
BIBLIOGRAPHIE
ARTAUD, A. Les correspondances avec Jacques Rivière.
__________ L’ombilic des limbes. Disponible: https://ebooks-bnr.com/ebooks/pdf4/artaud_l_ombilic_des_limbes.pdf
_________ Le Pèse-Nerfs suivi de Fragments d’un journal du enfer.
_________Le théâtre et son double.
1 “Essa desordem nós meus poemas, esses vícios de forma, essa desaceleração constante do meu pensamento, é necessário atribuí-las não a uma falta de exercício, de possesão do instrumento que eu manejava, de desenvolvimento intelectual, mas a um afundamento central da alma, a uma espécie de erosão,essencial e ao mesmo tempo fugaz, do pensamento, a não possessão passageira dos benefícios materiais do meu desenvolvimento, a separação anormal dos elementos do pensamento (a impulsão a pensar, em cada uma das estratificações terminais do pensamento, passando por todos os estados, todas as bifurcações do pensamento e da forma). Há então alguma coisa que destrói mmeu pensamento, alguma coisa que me de ser o que poderia ser, mas que me deixa, se posso assim dizer, em suspenso. Qualquer coisa de furtivo que me tira as palavras que encontrei (...)”. (ARTAUD, Les correspondances avec Jacques Rivière, 29 janvier 1924).
2 "Doença que afeta a alma na sua realidade mais profunda, que infecta suas manifestações. Doença do ser. Uma verdadeira paralisia. Uma doença que te tra a palavra, a memória, que te desenraiza o pensamento” (ARTAUD, Les correspondancesavec Jacques Rivière, 25 mai 1924)
3“Sofro de uma assustadora doença do espírito. Meu pensamento me abandona a todos os níveis. Desde o fato simples de pensar até o fato exterior de sua materialização em formas. Palavras, formas de frase, direções interiores do pensamento, reações bsimples do espírito, estou na busca constante do meu ser intelectual” (ARTAUD, Les correspondances avec Jacques Rivière, 5 juin 1923)
4 É por isso que, em torno de personagens famosos, de crimes atrizes, devoções sobre humanas, tentaremos concentrar um espetáculo que, sem recorrer às imagens expiradas dos vemos Mitos, se révèle capaz de extrair as forças que agem neles. (ARTAUD, Le théâtre et la cruauté)
5 KUNIICHI, Uno. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 edições, 2012.
6 Em “Fragmentos de um jornal do inferno”, ele escreve: “Fecho os olhos da minha inteligência, e deixo falar em mim o informulado, dou-me a ilusão de um sistema cujos termos me escapariam”. Esse informulado, a carne, e esse sistema, o corpo, serão a base da metafísica de Artaud.
7 Artaud, Le Pèse-nerfs.
8 “Ele me fala de Narcisismo, retruco-lhe que se trata da minha vida. Tenho culto não do eu mas da carne, no sentido sensível da palavra carne. Todas as coisas só me tocam enquanto afetam a minha carne, que coincidem com ela, nesse ponto mesmo onde elas a qapagam, não além. Nada me toca, só me interesse o que se endereça diretamente à minha carne. E nesse momento ele me fala do Si. Eu lhe retruco que o Eu e o Si são dois termos distintos e a não confundir, e são muito exatamente os dois termos que se balançam do equilíbrio da carnem.” (ARTAUD, Le Pèse-Nerfs)
9 FELÍCIO, Vera Lúcia. A Procura da Lucidez em Artaud. São Paulo: Perspectiva, 1996.
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